Agostinho V. Pinho
(6.º ano)
A
noite, teatro dos mais variados dramas sociais e políticos, é
escolhida por mim, como testemunha de um acontecimento chocante.
Isto passa-se numa daquelas grandes cidades, populosas e
barulhentas, em que a miséria dos corpos é mais profunda que na vida
calma das aldeias e cidades provincianas.
Quanto maior é o aglomerado urbano, maior é, também, a
desgraça, a miséria e a corrupção. Todos este factores vivem ligados e
concorrem para a ruína e morte de milhares de seres, no ambiente
«tóxico»
da cidade moderna.
O tráfico tinha parado e o maciço das casas condensava-se mais e
mais... Era mais de meia noite... Vagueava eu nas ruas tortuosas e
disformes de uma zona secundária da cidade. Encostei-me a uma
esquina e
quedei olhando o céu tingido de nuvens movediças e silenciosas. Não
fiquei ali: o tempo chamava-me; não conseguia concentrar-me naquele
lugar solitário e feio.. Assim, caminhei adiante... pensativo...
De quando em quando a
boca escancarada dos esgotos, com os dentes carcomidos pela
ferrugem, surgia na parte inferior dos passeios. Mais além, era um
candeeiro eléctrico que emitia sua luz amarela e uma sombra muito
esguia, muito comprida. Ali, era uma janela que deixava coar uns
raios ténues da iluminação interior da habitação. De um lado e
doutro, as casas aconchegavam-se umas às outras, como que
protegendo-se contra os frios e tragédias nocturnos. Dei uns passos
calmos e deparei com uma mulher sentada no rebate da porta de uma pequena
casa (era mais uma choupana que uma casa), com uma criança adormecida (parecia adormecida!) ao colo. A pobre criatura chorava...
Continuei o meu rumo, mas fui procurar um ponto de observação: um vão
de uma porta. Aquele quadro impressionava-me. Estive ali, embrenhado
em pensamentos errantes, durante uns dez minutos... Nisto, surge na
esquina próxima uma figura que ia crescendo, crescendo, tornando-se
mais distinta.
/ 24 /
Consegui ver um homem cambaleante, que cantava baixinho: «e... a
vida... é assim». Passa por mim, mas não me nota; segue deixando
atrás de si um vapor azedo, semelhante àquele hálito incomodativo
que lançavam os esgotos...
Chega junto da mulher e atirando o chapéu ao solo, berra: «Maria, já para dentro!» A pobre levanta-se rapidamente e, agasalhando
a criança, dirige-se para o seio da pequena habitação (poderá
chamar-se seio?). Logo a seguir o homem entra, depois de levantar o
chapéu, e bate a porta com estrondo...
Aproximei-me. Ouvi estas palavras ásperas: «Venha a ceia»
e
uma resposta submissa e misturada com choro: «não temos ceia».
Diante desta crise, afastei-me rapidamente, ainda mais pensativo que
anteriormente e recordando a miséria do mau pai de família, que
gasta na taberna aquilo com que poderia fazer feliz a mulher e os
filhos.
Mas estes problemas familiares há-os a cada passo e o remédio não
chega a aparecer... é o mal das grandes cidades, onde desgraças encobertas
são muitas vezes postas em evidência, como o demonstra esta situação
crítica daquela família... |