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farol n.º 17 - mil novecentos e sessenta e quatro ♦ sessenta e cinco, págs. 19 e 20.

Nuvens que passam

Maria Teresa Silva
(5.º ano)
 

NELLY levantou-se e dirigiu-se à porta do quarto que fechou cautelosamente. Depois virou-se e contemplou a boneca loura que dormia na sua própria cama. – Pobre Tucha, vais ficar sozinha! Amanhã abre o colégio... mas não te zangues, não? – Dizia baixinho a Nelly para não a acordar.

Os seus olhos verdes, grandes, expressivos, afastam-se mais e mais. Parecem agora dois imensos lagos rodeados pela mais impenetrável floresta. Nos lábios frescos baila um sorriso e, como se abraçasse alguém, cruza os braços no peito e aperta-os com fervor. Oh, sim, iria vê-la, a querida madre. – Coragem – dizia a si própria a Nelly – Hei-de dizer-lhe que gosto muito dela, não é Tucha? – procurava inquieta a opinião da boneca – Não a conheces, pois não? Qualquer dia hei-de levar-te ao colégio para a veres. É linda, tão linda... parece uma nuvem, tão branquinha...

Mas de repente, oh importuno!

– Nelly, oh Nelly, abre a pooorta... Vamos brincar aos polícias e aos ladrões, vens? Nelly...

A criança desperta assustada do seu belo sonho e, abrindo a porta, claro, quem havia de ser? Só o Paulo!

– Não quero, não quero, não quero e pronto!

– Oh, Nelly, vem lá! Assim não gosto mais de ti, vais ver!

E o sardento Paulo fazia beicinho. Nos seus olhos, castanhos como as folhas húmidas de Outono, estavam prestes a rebentar as lágrimas. Então a Nelly sorriu e estendeu a mão.

No dia seguinte Nelly levantou-se cedo, muito cedo. Estava impaciente.

Oh, o enfadonho pequeno almoço. E para mais, o Paulo ainda em pijama!

– Paulo, despacha-te! Assim não espero por ti. Mamã, diz ao Paulo para comer depressa, sim?

Mas a mamã não percebe a ansiedade da pequena; já é crescida!

– Nelly, para quê tanta pressa?

Na rua, enfim! Agora é questão de correr. Mas o Paulo, sempre o Paulo.

– Olha Nelly, um carro de bombeiros... olha mais outro. Quando eu for grande, hei-de ser bombeiro, e tu? Nelly, estás zangada? Não gostas dos bombeiros?

Oh, os rapazes não compreendem nada. Quero ir depressa, quero vê-la, quero dizer-lhe...

– Paulo, não fiques pasmado!
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Mas quê! Lá continuava ele, com o nariz colado ao vidro da montra.

– Nelly, olha um polícia sinaleiro... Ena! Olha aquele Mercedes Benz!

Quando eu for grande hei-de ter um carro de corridas, e tu?

– Eu não! – responde irritada a Nelly.

Finalmente, oh felicidade, pôde transpor o portão do colégio. O Paulo desapareceu no momento mais oportuno. E então podia correr pelos corredores.

O coração batia apressado. Ia vê-la, enfim! Lá adiante surge o vulto duma freira. Nelly corre para ela mas, em vez do sonho:

– Bom dia Nelly. Estás atrasada, vai depressa.

– Sim, minha madre.

E o vulto desaparece no próximo corredor enquanto Nelly, parada, o seguia, com olhar olhar triste humedecido.

Cabisbaixa, caminha lentamente, tentando esconder a desilusão que lhe enche a alma.

Ao meio dia Nelly espera o Paulo à saída. Mas que rapaz aquele! Primeiro que se decida aparecer... até que:

– Estiveste a fazer-te bonito?

– Nelly olha, o Zé tem uma bola tão grande, tão grande, tão grande! Hei-de ter uma bola assim, não hei-de?

Caminharam algum tempo, de mãos dadas, silenciosos. O Paulo admirava os eléctricos, a Nelly ia triste.

– Nelly, estás zangada?

Por Deus! Tudo, menos chorar ao pé do Paulo. Mas havia uma coisa a arranhar a garganta.

– Nelly, quem te fez mal? Quem foi Nelly? Não dizes ao Paulo? Mas eu gosto de ti! Nelly...

– Pronto, já não choro mais.

O Paulo tranquiliza-se depressa; é rapaz! Então:

– Nelly, quando fores grande hás-de ser o quê? Médica não, pois não? Era o mesmo que costureira, não era?

A Nelly continuava silenciosa, mas ele não via.

– ...coser carne ou pano é a mesma coisa, não é? Eu hei-de ser bombeiro! E tu? Queres ser professora?

– Não!

– Então Nelly, diz lá...

– Quero ser o que sou!

O Paulo não compreendia linguagem tão complicada, portanto, franziu as sobrancelhas e mudou de assunto.

– Nelly, olha o jardim. Queres que te apanhe uma borboleta? Há muitas, sabes?

E correram para o jardim. Mas o lago era paragem obrigatória. Então, o Paulo, irritado com a quietude das águas, atira uma pedrita. Mas a Nelly acha absurdo.

– Paulo, porque fizeste isso?

A resposta foi um riso sem timbre, um riso fresco que lhe ilumina o olhar.

– Pronto, Nelly, a água já está parada.

– Paulo, olha o céu, ali em baixo.

E quedaram-se, algum tempo, silenciosos, admirando o céu sem nuvens que se reflectia nas águas calmas do lago.

 

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08-06-2018