Carla Maria Campos Sá
(7.º ano – Letras)
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Descalça vai
para a fonte
Leanor pela verdura:
vai fermosa e não segura. |
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Leva na cabeça o pote,
o testo nas mãos de prata,
cinta de fina escarlata,
sainho de chamalote.
Traz a vasquinha de cote
mais branca que a neve pura:
vai fermosa e
não segura.
Descobre a touca a garganta,
cabelos de ouro entrançado,
fitas de
cor de encarnado,
tão linda que o mundo espanta;
chove nela graça
tanta,
que dá graça à fermosura;
vai fermosa e não segura.
(Camões) |
A talha leva pedrada,
pucarinho de feição,
saia de cor de limão,
beatilha soqueixada;
cantando de madrugada
pisa as flores na verdura:
vai fermosa e não segura.
Leva na mão a rodilha,
feita da sua toalha;
com ua sustenta a talha,
ergue com outra a fraldilha;
mostra os pés
por maravilha,
que a neve deixam escura:
vai fermosa e não segura.
As flores, por onde passa,
Se o pé lhe acerta de pôr,
ficam, de
inveja, sem cor,
e de vergonha com graça;
qualquer pegada que faça
faz florescer a verdura:
vai fermosa e não segura.
Não na ver o sol lhe val,
por não ter novo inimigo;
mas ela corre
perigo
se na fonte se vê tal;
descuidada deste mal,
se vai ver na fonte pura:
vai fermosa e não segura.
(Rodrigues Lobo) |
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Não há dúvida que o lirismo é
uma constante da nossa literatura.
Nem é de admirar, uma vez que ele constitui o fundo estrutural da sensibilidade
lusíada. Foi porventura para lhe dar expressão que
a doce fala galaico-portuguesa
/ s / começou a modelar
os sons, «manselinho, manselinho», como o
murmúrio do arroio por entre os seixos, ou o suspirar da brisa
matutina. Com semelhante
fada ao berço, a língua tinha de obedecer ao seu condão: chorar
coitas de amor, ou «dar graça à fermosura», onde quer que a
encontre: num palácio ou num casebre; de testa coroada ou de pé
descalço; castelã que sonha, debruçada das ameias, num entardecer
nostálgico, ou simples camponesa que vai à fonte,
sobraçando o cântaro, e numa canção alegre, solta a voz clara na
manhã ridente. Ontem, hoje, e sempre. E é quando despe o artifício,
desataviada e pura, na sua beleza um pouco selvagem, impregnada dum
aroma a flores silvestres, rescendendo ao rosmaninho e à urze do
monte, é então que ela atinge uma graça incomparável, a sua
verdadeira personalidade e a suprema beleza. É reparar em quantas obras primas a poesia de feição
popular tem feito chegar até nós, desde os primitivos cancioneiros,
em que um rei apaixonado compõe, diz-se, o primeiro cantar de amigo
para a sua amada entoar, tangendo à tiorba, a fim de enganar a
solidão e preencher de algum modo o vazio criado no seu
coração pela ausência do «amigo» (ele, pelo menos, assim desejará...):
«Muito me tarda
O meu amigo na Guarda...»
Sensíveis à beleza singela de tais composições, vemos, em pleno Renascimento, os maiores expoentes do nosso classicismo cultivarem
este género de poesia, a par da de carácter italianizante. Assim,
as seduções e o requinte do «dolce still nuovo» não puderam destruir
a força da atracção exercida pela beleza agreste e sadia das velhas
trovas. É o que nos mostra o maior poeta do tempo, e o maior de
todos os tempos – Camões. Ele, a personificação do Humanismo e do
Renascentismo português, espírito espantosamente culto, conhecedor
das literaturas antigas e modernas, enriquecido pelo comércio de Guidio, Virgílio, Horácio, e ainda de Tasso, Sannazaro, Bembo,
Boscan e Garcilaso, ele, o aristocrata da expressão, não desdenha
esquecer tudo isto, de quando em vez, pela despretensiosa redondilha, para trovar à boa velha maneira dos cancioneiros. E
então, dá-nos delicadíssimas filigranas, como esse mavioso
vilancete: «Descalça vai para a fonte...».
É curioso verificar que, no século seguinte, em pleno apogeu do
barroco, Rodrigues Lobo, que na juventude cultivara o estilo
gongórico, continua, todavia, e como ninguém no seu tempo, a
tradição lírica camoniana, indo ao ponto de desenvolver motes já
glosados por Camões, como acontece precisamente com o citado
«descalça vai para a fonte». Claro, os dois não estão assim tão
distanciados no tempo, e o facto apontado explica-se, talvez, por um
certo número de disposições idênticas. Se bem repararmos, as trovas
tradicionais de Camões não são de todo isentas de preciosismo,
embora ténue e discreto. Por outro lado, em Rodrigues Lobo, este
carácter precioso acentua-se, claro está (impossível subtrair-se à
influência da época e do meio), mas ele reage
quanto pode contra o formalismo vigente.
É certo que Rodrigues Lobo foi corajoso, para não dizer ousado,
em
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retomar os temas dum poeta da estatura de Camões. Mas a verdade é
que não se saiu muito mal, pelo menos quando glosou o mote de que
vimos tratando, pois não é fácil, à primeira vista, decidir a qual
das duas aguarelas que encabeçam este trabalho, cheias ambas de
frescura e de cor, dar a nossa preferência. Só depois de ler e
reler muitas vezes uma e outra, a ponto de as saber já de cor,
acabamos por eleger a versão de Camões, talvez por lhe acharmos mais
cadência, graças a uma maior perfeição do verso. E, depois da longa
divagação... lírica, passaremos a uma análise técnica.
Em Rodrigues Lobo, há alguns versos um tanto frouxos: «pisa as
flores na verdura», «as flores por onde passa». Notam-se, ainda
algumas colisões:
«sustenta a talha», «faz florescer» «vai ver», além de que emprega
duas vezes a palavra «verdura», para rimar com «segura», do terceiro
verso do mote. Em Camões, há apenas um verso que não lisonjeia o
ouvido: «mais branca que a neve pura», em cuja leitura descuidada
pode haver cacófato. Há ainda, na nossa opinião, um vocabulário
menos poético em Rodrigues Lobo do que em Camões: a «touca» agrada
mais que a «beatilha», que também não gostámos de ver «soqueixada»,
e chocou-nos aquela «pegada», que nos pareceu demasiado material e
grosseira. Tem muito mais graça o «sainho de chamalote» (embora
não saibamos com precisão o que entender por «chamalote»), do que a
«saia cor de limão» e a «fraldilha». Dizer que «chove nela graça
tanta» é muito mais sugestivo, diz muitíssimo mais do que «faz
florescer a verdura», ainda por cima com a aliteração. Mas tudo isto
são pormenores técnicos, que não bastariam, porventura, para
justificar uma referência, se outras razões não houvera.
Quanto a nós, Camões, nas duas únicas voltas com que glosou o mote,
foi muito mais eloquente do que Rodrigues Lobo, que precisou do
dobro das voltas para dizer menos. E isto porque Camões não quis
senão sugerir, dar-nos, em poucas pinceladas de mestre, uma visão
deliciosa. As suas tintas são «neve»,
«prata» e «oiro», em que melhor sobressai a nota vibrante da
«escarlata». Rodrigues Lobo perde, a nosso ver, por ter descido ao
pormenor demasiado concreto: a «beatilha soqueixada», a «rodilha
feita da toalha». Camões fica-se pelo «vai fermosa e não segura»,
sem nos dizer onde reside a insegurança da moça, onde se esconde o
perigo que ela corre, para no-lo deixar adivinhar. Para Rodrigues
Lobo, o perigo é a vaidade que poderá sentir, se, ao chegar à fonte,
vendo a sua imagem reflectida na água, compreender quanto é bela. A
não ser que ele receie venha a fermosa Leanor a ter a sorte de
Narciso... Mas nós imaginaríamos um perigo muito diferente...
Em suma, Camões inspirou-se, por certo, no original, numa
Leanor
autêntica, e Rodrigues Lobo no retrato que dela pintara Camões – é
precisamente esta a diferença: a que existe entre o original e o
retrato... |