Maria Alexandrina Pinto
(6.º ano)
ESTE é um conto que o leitor não esquecerá com facilidade.
Eu... jamais!
Quando ouvi pela primeira vez a história estranha dos dois homens
isolados pela dura tempestade na
montanha agreste algo vibrou na minha alma, algo que não mais
deixará de vibrar.
A montanha envolvida assim na melodia fantástica, da
noite era a realização do belo, dum terrível belo!...
O silêncio penetrava as almas sozinhas, a solidão
seguia-as como uma sombra...
A tempestade havia começado sinistra, medonha, e o
nevão invadira de repente a montanha imensa.
Estellow, jovem robusto e Carney velho de corpo e de
espírito continuaram na noite acossados pela neve e pelo frio,
arrebatados por um desespero atroz de sobrevivência.
Os seus passos tornavam-se cada vez mais penosos e os corpos
encharcados e doridos eram farrapos levados sem rumo pela força
indomável da natureza.
– «Estellow», disse o velho tossindo e curvando as pernas
dolorosamente, «paremos. Eu quero dormir. Vou fazer um abrigo e
esperar...».
Estellow voltou-se admirado para o companheiro.
– «Esperar? A morte!?
/
18 /
Mas o seu olhar toldou-se-lhe ao ver o pobre Carney... Ia dizer
algo contra o céu, contra Deus que os entregava tão duramente à
morte quando de repente, e como um louco, soltou um grito de
esperança.
Recortada contra o remoinho negro do temporal
estendia-se uma linha coberta de neve.
– « Carney! Carney, o
fio, o fio do Telégrafo!»
Carney encolheu os ombros e fez uma careta.
– «Para
onde? E a que distância?» E começou de novo a tossir e a dormitar.
– «Vamos», comandou Estellow
«esta deve ser a linha que
estenderam na Primavera e que liga a cabana do cume ao caminho de
ferro da vila. É só trepar um bocado.»
E arrastou o companheiro enfraquecido, durante meia
hora, meia hora de luta contra a morte.
Na cabana havia lenha, e numa prateleira algumas maçarocas de milho
seco. Um porco espinho guinchava nos ramos de uma árvore e Estellow
abateu-o com o revolver. A ameaça da fome já não o preocupava. Mas
Carney ardia em febre e depois de o aquecer meteu-o na cama dum
quarto interior. O telégrafo era uma esperança; Carney sabia
transmitir.
De manhã o velho cambaleou até à mesa e deu a volta ao interruptor.
Com uma voz hesitante conseguiu comunicar com o telegrafista, que
se julgou doido ao perceber o código quase inteligível: «dois
homens isolados no cume e um deles com pneumonia.»
Esta foi a primeira e a última comunicação. A linha
ficara interrompida pela neve e pela ventania.
Carney piorava e passava o dia na cama a tossir.
Na terceira tarde Estellow saiu da cabana à procura de
lenha e deixou o amigo deitado como de costume. Quando chegou Carney
estava sentado, tranquilo em frente do aparelho.
– «Estellow», disse ele calmamente, «acho que estou a morrer, mas
ouve», pediu o velho com o olhar brilhante, «não me enterres sem
teres a certeza de que morri. Pode ser apenas um estado de coma. Não Estellow, peço-te, não
me enterres vivo E a voz fraca sumiu-se-lhe num fio.
A voz e os olhos de Estellow, um Estellow abatido pela
dor fizeram uma promessa solene.
E foi nessa noite. Quando o rapaz cozinhava o resto do
porco-espinho, Carney saiu do quarto, arrastou-se para o seu lugar à
mesa e ali morreu.
/ 19 /
Queria ver e não via, queria falar, mas a voz
estrangulava-se-lhe na garganta, queria reagir, mas os seus membros
pareciam pedras.
Pobre e desgraçado Estellow... Dirigiu-se enfim para
a porta fez uma cova na neve e, quando se certificou da
morte de Carney, enterrou o cadáver gelado e tapou a sepultura...
Depois voltou à grande cozinha e, sem saber porquê,
parou a tremer, atento e desconfiado.
Sentia-se observado, cravado, penetrado por olhos sem
fim, olhos que pareciam despidos de vida, olhos que brilhavam na
noite sem sombras, sem luz e sem cor...
Deitou-se a tremer, cerrando as pálpebras com
violência, tentando apagar do espírito aquela presença assustadoramente vivida da solidão, tentando fugir aos olhares
gélidos da morte.
Passou horas terríveis de pesadelos constantes e, quando
acordou, suores frios cobriam-lhe o corpo.
O vento gemia lá fora; e a chuva caía mais forte e mais
fria; e o tempo parecia desnudo de amor, na agreste montanha.
Quando Estellow saiu da cama de manhã e ia deitar lenha no lume,
Carney estava sentado à mesa, imóvel, silencioso, de olhar parado...
A vida quedou, a luz prateada da manhã apagou-se
lentamente e o homem pensou por um instante ter perdido os
sentidos. Oh! Mas não. Lá estava ele... e ao seu lado e
atrás de si e em qualquer parte para onde se voltasse, ela,
a outra... a solidão.
O rosto pálido de Estellow tremendamente desfigurado,
era bem uma imagem da luta fantástica que se começava a
travar no seu espírito alucinado. Ficou o dia todo olhando
um ponto fixo no nada, num desespero fatigante de fuga,
numa sede delirante da vida.
Ao cair da noite, num último rasgo da sua
consciência aniquilada e tentando não perder o sentido da
realidade Estellow levou de novo o cadáver para a sua sepultura.
A noite passou-a ele em permanente agonia. Pela
manhã, coração a palpitar furiosamente e o corpo em horríveis
convulsões, estendeu a mão para a porta que dava para a sala grande.
Carney lá estava
direito, sereno, no seu lugar à mesa...
O medo que se apossara do jovem era de tal modo
apavorante que numa última tentativa de libertação quis fugir
àquele mundo tenebroso e estranho que o transtornava e o
/ 20 /
prendia... Com as mãos furiosamente crispadas no rosto tentou
atravessar a sala sem despregar os olhos da porta;
mas como num terrível pesadelo, as pernas negavam-se-lhe à fuga, o
corpo forte e entroncado imobilizava-se-lhe num torpor doentio e
nervoso. Finalmente Estellow conseguiu respirar a liberdade.
Vagueou como louco pelo monte e quando o dia começou a declinar e
se viu à porta da cabana, apercebeu-se, pelo menos
subconscientemente, de que não era, de que não podia ser livre...
Ao abrir devagar a porta uma luzinha frouxa de esperança veio
aquecer-lhe a alma... Mas o cadáver continuava direito imóvel, junto
ao aparelho. A mesa era quadrada e pequena; Estellow sentou-se em
frente do amigo morto, os punhos cerrados, o sangue a gelar-se-lhe
nas veias de pavor. Então pela terceira vez e num esforço subconsciente pegou no cadáver e arrastou-o para a neve e ainda com
esse agonizante esforço agora quase sobrenaturalizado, sentou-se de novo à
mesa.
Os olhos esbugalhados, a atenção concentrada na porta
Estellow preparou-se para vigiar toda a noite.
«Porquê, para quê?». Não se perguntava já. Agia e pensava como um
autómato, mas reagia ainda como um ser humano sensível.
E foi como um ser sensível que a meio da noite
adormeceu vencido pela fadiga do corpo e do espírito.
Ao abrir os olhos a custo viu por entre as pestanas
estranhamente pesadas, o vulto negro do cadáver de Carney.
Um frio trespassou-lhe o corpo e dentro de si sentiu que algo se
quebrava. – «Valha-me Deus», foi a derradeira frase de Estellow.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
E o leitor perguntará e com razão: Acabou o mistério?
Acabou a história?
Não, caro leitor, falta algo, algo importante que tornará,
tenho a certeza, este conto inolvidável.
Não é com certeza a minha imaginação ou mesmo o meu talento. Ah!
Pobre de mim, reconheço-me bem pouco para me tornar sequer lembrada,
quanto mais inolvidável...
É sim, e eu sinto bem o valor destas palavras a «veracidade» desta história.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Alguns dias após, um médico, dois lenhadores e Clark o telegrafista
de North Greek avistaram a cabana sozinha no cimo da montanha
imensa. Da chaminé não saía fumo.
/ 21/
Um rego profundo cavado na neve entre a porta e um montão de neve
misteriosamente cavado e vazio despertou-lhes a atenção.
O médico empurrou a porta. Dois cadáveres inertes sentados frente a
frente ocupavam o vazio gélido e arrepiante da cabana.
Ambos tinham a cabeça atravessada pelo tiro dum
revólver.
O mais jovem estava
caído de bruços sobre uma poça de sangue coagulado na mesa, os
braços pendentes e no chão sob a sua mão direita um revólver,
assassino.
O velho tranquilamente sentado olhava sereno o vácuo.
– «Não, não matou», disse o médico pensativo,
«o corpo
de Carney já estava morto e até gelado quando levou o tiro».
O grupo entreolhou-se
alarmado.
Então um lenhador encontrou o diário de
Estellow e entregou-o ao
médico. Este leu-o comovido, sentindo vibrar
de algo estranho dentro de si. Examinou a neve e voltou à sala
gelada.
– «Ouvi. O meu veredicto oficial é que os homens
morreram de fome, de frio e de privações.
No entanto sabemos que isso não aconteceu...»
– «Dormiria mais descansado se soubesse o que
realmente se passou.» Atreveu-se a dizer Clark.
– Não o saberás, pois nem eu o consigo saber.
O que podemos é calcular.
Alvitrando o seu sonambulismo de infância a
explicação é simples,
«Estellow tinha horror nervosa à solidão e nas tremendas noites de
insónia buscava o amigo numa sede irreprimível de companhia, A
promessa, que Estellow escreveu no seu diário, tão solene, tão
convicta explica o tiro que atravessava a testa de Carney,
O rapaz agindo com o subconsciente, convencido de que Carney
continuava vivo, tentou num derradeiro delírio pôr
fim à vida do companheiro.
No entanto a exumação repetiu-se várias vezes. Algum instinto subtil
tentou talvez prevenir Estellow
de que não deveria perder o domínio consciente. Mas a natureza foi
mais forte e ele voltou a adormecer, expondo-se assim ao demónio do
sonambulismo.
O diário de Estellow foi destruído
e os cadáveres foram lançados na profundidade de um lago da
montanha.
. . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Esta é uma das histórias
estranhas que vive a HUMANIDADE. |