Carolina Augusta Rodrigues
2.º prémio (2.º ciclo)
NOVE horas bateram há pouco.
Os empregados dispõem-se
a começar o trabalho:
afiam os lápis, preparam as canetas, abrem os grandes
livros de registos e de contas, destapam as máquinas de
calcular, enquanto que os caixas conferem, uma vez mais, os
maços de notas antes de os arrumarem nos competentes cacifos.
Não tarda que o público principie a afluir, apressado como
sempre.
«Já passou quase um quarto de hora e a menina
Lurdes
ainda não entrou) – resmunga entre dentes o velho escriturário,
sempre mal disposto – «No meu tempo não se toleravam tais abusos.
«Não admira» – respondeu logo Ivone, uma das
dactilógrafas, rapariga ultra-moderna, de maneiras desabridas e sempre
pronta a criticar os colegas – «À Lurdes tudo é permitido... mas
se fosse eu que chegasse atrasada não faltariam reparos!»
«Hoje começa cedo a má
língua» replica o contabilista –
«a demora não é grande e estou certo que alguma razão forte a motivou.»
«Já faltava o advogado de defesa!»
– exclamou Ivone,
com ar de troça.
No mesmo instante como que para pôr fim à conversa,
entra Lurdes, uma morena de semblante atraente e afável, elegante na sua simplicidade. Com um sorriso amigo cumprimenta os colegas:
«Encontrei agora o Barros da Secção de Penhores e venho
impressionadíssima com o que ele me contou... Como vocês
sabem, vai haver leilão dos penhores que têm os juros em atraso: e, entre eles, está um copo de prata dourada
– destes que se
dão às crianças – cujo depósito foi feito há 35 anos!»
«Não é possível!».
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«Verdade! Há 35 anos que certos pais,
levados pela necessidade,
trouxeram aquele copo que certamente grande valor estimativo tinha
para eles, e há 35 anos que pagam pontualmente os juros sem que
jamais tivessem tido a soma precisa para resgatar
tão modesta relíquia.»
«Pobre gente!»
«Mas, agora, nem mesmo os juros puderam pagar...»
Lurdes tem os
olhos cheios de lágrimas e acrescenta:
«Temos que levantar o copinho e entregá-lo aos donos.
Há que pagar o valor do empréstimo e mais os juros em atraso... e
confesso que nesta altura do mês não disponho da quantia precisa...»
«Ora, ora, sentimentalismos!»
– resmunga o velho escriturário –
«quando chegarem à minha idade já nada disso vos comoverá!»
Mas estas palavras não encontraram eco. Todos queriam dar alguma
coisa, e, em poucos minutos, apenas ali na Secção, Lurdes reúne não
só a soma precisa para resgatar o penhor, mas muito mais.
«Como se chamam os seus protegidos?»
–pergunta um
dos Caixas a Lurdes.
«O depósito está em nome de Elvira Maria, e a morada é aqui perto.
Vou lá à hora do almoço pedir a cautela para poder levantar o
copinho.»
♦
Poucos minutos depois do meio dia, Lurdes, airosa no seu vestido
modesto que a mãe lhe cortara e ela própria cosera ao serão, parava
no rua estreita e íngreme em frente duma casa de aspecto miserável.
«Quantos dramas morais e materiais estas paredes encobrem!»
–
pensou para consigo própria. Com o coração bem apertado entrou no
portal escuro e bateu à primeira porta que se lhe deparou, onde um
carrinho de linhas, pendente de uma
corda já negra pelo uso, fazia de puxador.
«É' aqui que mora a
Senhora Elvira Maria?»
«É no terceiro esquerdo, mas não sei se lhe poderá falar,
porque a pobre velhote está no fim!»
«Coitadinha!... Quem a trata?... Tem alguma família?».
«Não,
menina, nós, as vizinhas, é que a ajudamos conforme
podemos, mas o pior é que podemos bem pouco também I Se a
menina quiser venha comigo vê-la.»
E, enquanto subiam a escada, a caridosa vizinha continuou: «A
Senhora Elvira tem pouca sorte... Sempre levou uma
vida de miséria e desde que enviuvou andava aos dias, mas agora,
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e doente como está, já nem trabalhar pode há
muitos meses».
«A pobre mulher não tinha um filho
ou uma filha?»
«Sim, mas o
inocente morreu aos sete anos.
Senhora Elvira,
trago-lhe uma visita!»
«Uma visita para mim?» – Suspirou
a doente espantada.
«Sou empregada
do Montepio.» – esclareceu Lurdes.
«Valha-me Deus, vem dizer-me que venderam o copo do
meu Pedrinho! Não me foi possível pagar os juros, pois nem sequer
tinha que comer, e se não fosse a bondade das vizinhas, há muito
que estaria morta!»
«Não fale tanto que se fatiga.»
– implorou Lurdes, que prontamente explicou o motivo da sua visita,
pedindo-lhe a cautela, que encontrou numa gaveta que a doente lhe indicara.
«Minha Santa Menina. Não sei como agradecer-lhe. Comprei o copinho para o 6.° aniversário do meu filho... foi uma
extravagância, bem sei!... menos de um ano depois ele morria com
uma meningite, mas até ao fim só queria beber pelo copo de prata...
depois, o meu marido, adoeceu também... fui obrigada a empenhar o
copo... já não tinha mais nada. Bem me custou separar dele. Já lá
vão 35 anos.» Mas nunca tinha deixado de pagar os juros... Não
calcula como tenho chorado ao pensar que iam vender aquela relíquia!»
♦
Findo o seu dia de trabalho,
Lurdes voltou a visitar a sua
protegida, levando consigo o copo de prata. Um sorriso de alegria iluminou o semblante da pobre moribunda quando
beijava,
comovida, a preciosa relíquia.
Entretanto chegou o sacerdote que
Lurdes avisara, e que vinha trazer
àquela que tão perto está de deixar a terra, o conforto da palavra
do Pai da Misericórdia.
«Agora posso partir descansada, estou reconciliada com Deus e
voltei a beijar o copo que os lábios do meu filho tocaram
entes de morrer. Tenho fé e confiança que no Paraíso me reunirei
para sempre ao meu Pedrinho.»
Passados momentos, a Senhora Elvira abre os olhos e percorre o
quarto com um olhar triste... acaricia a mão de Lurdes que,
ajoelhada à beira da cama, lhe assiste piedosamente aos últimos
momentos.
«Menina, eu vou morrer... não queria que o copinho fosse vendido
ou caísse em mãos indignas... dou-lho pare os seus filhos quando os tiver... que Deus lhe dê a felicidade que
merece...» |