Maria Júlia M. Gravato
1.º Prémio – Prosa – 2.° Ciclo
AINDA no céu luziam as
últimas estrelas, já a Ti Ana moleira andava atarefada, de um lado
para o outro, tratando das lides caseiras. O Ruço já tinha a sua
gabela de palha, na manjedoura, pois os dias em Dezembro são curtos
e a farinha tinha que ser distribuída, cedo, aos fregueses, para as
filhós do Natal.
A Ti Ana, depois de
distribuir farta ração de milho pelas galinhas e ter engolido,
sentada ao lume, a sua tigela de migas de boroa com café, cruzou o
velho xaile no peito e foi direita ao moinho.
De caminho ia
estimulando o burrito:
– Eh, Ruço! Anda
depressa, mariola! Está frio cá fora, mas quem trabalha aquece. Olha
que a Sr.ª Morgada fica zangada se lhe levas tarde a farinha.
Mas, de repente estacou.
Pareceu-lhe que ali perto chorava uma criança. Seria impressão dos
seus ouvidos?... mas não. Era realmente uma criança, que os seus
olhos, já afeitos à luz indecisa da madrugada, descobriam naquele
embrulho, junto à porta do moinho. Pegou-lhe com jeito e murmurou:
– Querido anjinho! Quem
seriam os desalmados que assim te abandonaram numa noite destas
junto ao moinho duma pobre mulher, que não tem meios para cuidar de
ti?! Sempre há gente no mundo!... Quanto eu desejei ter um filho e
nunca o tive, e esta mãe, a quem Deus presenteou com um anjo destes,
abandona-o assim! Malvada!... Mas, mudando de tom, concluiu: – Só
Deus sabe por que esta criança aqui se encontra e só a Ele compete
julgar. Por isso, o que tenho a fazer, é cuidar dele, já que Deus mo
enviou como presente de Natal. Mas que lhe hei-de de dar? E tão
pequenino!... E, iluminada por uma bela ideia, disse: – A cabrinha
branca será a sua ama.
Com a criança bem
aconchegada a si, entrou na cozinha e, para a ver melhor,
aproximou-se da candeia, que tremeluzia pendente da chaminé.
– Ah! – exclamou – é um
menino. As roupas são de pessoa rica e ao pescoço tem uma medalha!
Hei-de levá-lo ao Sr. Abade
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para o baptizar e há-de chamar-se João, disse ela lembrando-se do
marido.
Já o Sol ia alto no
horizonte, quando a Ti Ana saiu em direcção à aldeia, com o burro
carregado de sacos, no meio dos quais aconchegou o pequenino, que
dormia embalado pelo andar cadenciado do burrito.
Nesse dia, no povoado,
não se falou noutra coisa, fazendo-se mil conjecturas. Várias
pessoas, entre as quais a Sr.ª Morgada, quiseram ficar com o
pequenino, mas a Ti Ana a todas respondia:
– Se Deus mo enviou,
devo ser eu quem fica com ele. No meu moinho há uma cabrinha branca
e farinha da mais fina para o sustentar. Olha agora!
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Passou-se algum tempo.
João era agora um rapazinho de dez anos, que frequentava a escola da
aldeia, onde, pela sua inteligência e bondade, era estimado por
todos. Nas horas vagas ajudava a Ti Ana, indo muitas vezes, ele
próprio, distribuir a farinha pelos fregueses. Certo dia, regressava
da aldeia, já de noite, quando, perto dele, sentiu o tropear dum
cavalo. Tinha chovido muito nos dias anteriores e os caminhos
estavam escorregadios. O Ruço, a quem eles eram familiares, ia-se
mantendo; mas o cavalo, que nessa altura subia um caminho estreito e
pedregoso, escorregou e caiu juntamente com o cavaleiro. João, que
ia um pouco à frente, voltou para trás e correu em seu auxílio muito
aflito:
– O senhor magoou-se
muito?
O homem gemia. Estava
muito contuso. Com grande sacrifício, lá conseguiu levantar-se
auxiliado pelo pequeno, que dizia:
– Se pudesse andar mais
uns passos, descansaria no moinho e a minha mãe trataria do senhor.
O seu cavalo também se magoou, mas creio que não tem nada partido.
Não o pode conduzir, mas eu vou num pulo levar os sacos ao moinho,
que já se avista daqui e volto já com o Ruço para o levar.
O senhor agradeceu e
ficou pensativo a olhar João, que subia agora o último atalho. O
rosto ensombrou-se-lhe de melancolia.
– Deve ter dez a doze
anos – murmurou. Que bondade e que inteligência!
Apesar das dores que
sentia, perdeu-se em não sei que pensamentos
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e, estava tão profundamente abstracto, que nem deu pela chegada do
pequeno, que o convidava já a subir para o burrito.
Depois de muitos
esforços, conseguiu montar e, daí a alguns minutos, encontrava-se
sentado diante duma tigela de caldo fumegante, que a Ti Ana, depois
de o tratar com os remédios caseiros de que dispunha, lhe pusera na
frente.
João comia a seu lado e,
depois de cear e dar as boas-noites à velha moleira, dirigiu-se para
o seu quarto, que, naquela noite, partilharia com aquele senhor.
O desconhecido entrou também no quarto e, quando João tirou a
jaqueta para se deitar e deixou a descoberto a medalha que trazia
sempre ao pescoço, soltou um grito. A moleira correu aflita e sem
pensar no que fazia, abriu rapidamente a porta e viu o desconhecido
abraçado ao pequeno, chamando-lhe «seu querido filho.» Ante o pasmo
da velha, ele contou a sua história:
Dez anos antes, viera
com sua família passar o Natal numa quinta, que possuía algumas
léguas distante dali. Sua mulher tinha nessa altura um filhinho
recém-nascido e queda baptizá-lo na mesma igreja onde ela própria se
baptizara.
Nessa noite, porém, a
criança fora-lhe roubada e, por mais esforços que fizessem, não
conseguiram encontrá-la. Sua mulher ia morrendo de desgosto. Ele
perdera o gosto pela vida, pois perdera a esperança de jamais
encontrar o seu filho. Agora, porém, recebia, passados dez anos, o
recado dum ex-caseiro da quinta para que fosse vê-lo. Encontrou-o
moribundo, pedindo que lhe perdoasse, pois fora ele quem lhe roubara
o filho. Por incompetência e falta de honestidade tinha sido
despedido algum tempo antes e jurara vingar-se. Por isso, quando viu
a criança, foi a ela que escolheu para vítima do seu ódio. Roubara
pois o menino, mas, não se achando com coragem para o matar,
resolveu ir abandoná-lo muito longe.
Era, pois, em busca do
seu filho, segundo as indicações do seu ex-caseiro, que ele se
encontrava nessa noite próximo do moinho. Quisera Deus que fosse o
seu próprio filho que o socorresse naquele acidente.
As exclamações da velha
Ana, que se lamentava por ir perder o seu querido João, o senhor
respondeu:
– Não se aflija, porque
a senhora irá connosco.
A Ti Ana, entre o amor
que tinha ao seu moinho e o que professava pelo seu filho adoptivo,
não hesitou.
Partiram todos três, não
esquecendo o velho Ruço, que tão activamente tinha tomado parte na
história.
ALEXANDRA MARIA |