BOLETIM CULTURAL E RECREATIVO - SECUNDÁRIA JOSÉ ESTÊVÃO - AVEIRO


Reflexão sobre a poesia de Mário Beirão

 

Mário Beirão nasceu em Beja no ano de 1890. Colaborou em várias revistas (“Águia”, “Ocidente”, “Mundo Português” e “ Portucale”) e escreveu as seguintes obras: O Último Lusíada, Novas Estrelas, Lusitânia, Ausente, Pastorais, A Noite Humana, Mar de Cristo, O Pão da Ceia e Oiro e Cinza.

Num texto contido no Dicionário de Literatura, são assinaladas, por David Mourão-Ferreira, as principais tendências da obra de Mário Beirão no seguinte retrato do poeta: “M. B. mostrou-se inalteravelmente fiel à sua tríplice vocação de predestinado aedo da vasta Casa Lusitana, de cantor dos campos e das gentes do Alentejo, de lírico repartido entre a sondagem metafísica da alma e o franciscano louvor dos aspectos mais simples da natureza e da existência humana.”

 

   AO ENTARDECER NO DESCAMPADO DE BEJA

A luz do entardecer banha de Ausência,
Enquanto os ecos dizem: — nunca mais! —
A planície perdida em sonolência
E no vago das sombra funerais…

A luz do entardecer, febril, demora
O seu Deus; nos ermos se detém…
E parece que vai nascer a Aurora,
Em outra vida, em outro céu, além! 

Tarde do grão deserto! Quem pudesse
Cantar a sua estranha exaltação;
Da sua luz beatífica, de prece,
Cheio de graça, ungir o coração!

                     (…)

Uma ânsia de regresso a Deus, à Origem
Nossas almas agita… e, de repente,
Solta o voo; em bandos se dirigem
Para os jardins suspensos, no ar dormente!

E a epopeia dum povo, ao som da Glória,
Súbito, acorda a lúgubre planura;
E um sonho que inda resta, por memória,
Ergue-se em chamas, a devorar a Altura!

Como que absorta no seu próprio enlevo,
A luz jamais tem fim… Na esparsa, etérea
Fluidez da tarde, molho a pena; escrevo…
E sinto desprender-me da Matéria!

                             Novas Estrelas

O poema “Ao entardecer no descampado de Beja” é uma visão subjectiva da paisagem alentejana ao fim do dia.

Identificado como “planície” ou “deserto”, o cenário é filtrado pela luz dolente do ocaso. A fluidez dos contornos do quadro vaporoso esbate também um ambiente fantasmagórico e a ideia de morte paira nas “sombras funerais” da “lúgubre planura”.

O lento processo que retarda a ausência da luz projecta uma nova vida no mágico espaço cósmico. A aurora é o fruto revitalizado de uma ordem fecunda e universal.

Este cíclico fenómeno é exaltado como mistério da criação, elevando o coração num lirismo ascético: “Da sua luz beatífica, de prece,/ Cheio de graça, ungir o coração!”.

O sentido da espiritualidade sublima a alma na sua vocação para o seio divino. Este trânsito é corporizado na imagem do voo libertador para o reino celeste, numa atmosfera de dormência onírica. A evocação de Deus, como força original, é uma das orientações que a luz, ainda pujante de vida, inspira na mente humana.

A esperança que preside ao renascer da vida num outro “céu” suscita uma outra recordação de glória: a essência épica de uma empresa nacional de inspiração divina e alcance cósmico. A memória de uma missão alimentada pela vontade sagrada assume ainda a transfiguração de um sonho erguido ao nível divino como o facho de um destino ainda não apagado: “E um sonho que inda resta, por memória,/ Ergue-se em chamas, a devorar a Altura!”. Esta visão consome energias ocultas com um sabor profético.

A ténue iluminação da paisagem contamina também o próprio sujeito poético, modelando a sua criação artística e aliciando-o para a evasão do real: “Na esparsa, etérea/ Fluidez da tarde, molho a pena; escrevo…/ E sinto desprender-me da Matéria!”. O último verso, dotado de uma forte carga semântica, testemunha o derramamento da espiritualidade na vida poética, iluminada pela força vidente da alma humana.

A título de conclusão, o poema é uma interpretação subjectiva da natureza no sentido da elevação a vários níveis: divino (com a exaltação de Deus e a sua determinação da origem cósmica), nacional (através da evocação da realização épica de um povo eleito) e pessoal (no lirismo idealista do acto criador do poeta). A densidade da mensagem confere um valor profundo a certos vocábulos (como “Origem”, “Glória”, “Altura”, etc.) que traduzem a dimensão metafísica da existência humana.

Ana Paula Cabrita Dias Tribuzi

Momento poético

Águas profundas

Águas profundas desvaneceram
o perfume guardado na memória
do tempo em que parámos
para combinar de sermos amigos.

Assim fiquei,
lembrando-me das palavras afogadas
que me percorrem, sós,
num arrepio frio.

Sonhos breves em dias claros:
quando nos demos num certo olhar,
quando nos lemos num certo livro,
quando nos perdemos no encanto
de certo tempo.

Águas profundas desvaneceram
o sol dos olhares, dos livros, dos tempos...

Assim fiquei,
com o lastro preso ao lodo
de profundas águas,
como fazem os náufragos de si mesmos.

                              Tereza Sorel (pseud.)


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10
- A Senhora Colette   11 - Hora do Recreio


 

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