AO ENTARDECER NO DESCAMPADO DE BEJA
A luz do
entardecer banha de Ausência,
Enquanto os ecos dizem: — nunca mais! —
A planície perdida em sonolência
E no vago das sombra funerais…
A luz do
entardecer, febril, demora
O seu Deus; nos ermos se detém…
E parece que vai nascer a Aurora,
Em outra vida, em outro céu, além!
Tarde do grão
deserto! Quem pudesse
Cantar a sua estranha exaltação;
Da sua luz beatífica, de prece,
Cheio de graça, ungir o coração!
(…)
Uma ânsia de
regresso a Deus, à Origem
Nossas almas agita… e, de repente,
Solta o voo; em bandos se dirigem
Para os jardins suspensos, no ar dormente!
E a epopeia dum
povo, ao som da Glória,
Súbito, acorda a lúgubre planura;
E um sonho que inda resta, por memória,
Ergue-se em chamas, a devorar a Altura!
Como que absorta
no seu próprio enlevo,
A luz jamais tem fim… Na esparsa, etérea
Fluidez da tarde, molho a pena; escrevo…
E sinto desprender-me da Matéria!
Novas Estrelas
O poema “Ao
entardecer no descampado de Beja” é uma visão subjectiva da paisagem
alentejana ao fim do dia.
Identificado como
“planície” ou “deserto”, o cenário é filtrado pela luz dolente do ocaso.
A fluidez dos contornos do quadro vaporoso esbate também um ambiente
fantasmagórico e a ideia de morte paira nas “sombras funerais” da
“lúgubre planura”.
O lento processo que
retarda a ausência da luz projecta uma nova vida no mágico espaço
cósmico. A aurora é o fruto revitalizado de uma ordem fecunda e
universal.
Este cíclico fenómeno
é exaltado como mistério da criação, elevando o coração num lirismo
ascético: “Da sua luz beatífica, de prece,/ Cheio de graça, ungir o
coração!”.
O sentido da
espiritualidade sublima a alma na sua vocação para o seio divino. Este
trânsito é corporizado na imagem do voo libertador para o reino celeste,
numa atmosfera de dormência onírica. A evocação de Deus, como força
original, é uma das orientações que a luz, ainda pujante de vida,
inspira na mente humana.
A esperança que
preside ao renascer da vida num outro “céu” suscita uma outra recordação
de glória: a essência épica de uma empresa nacional de inspiração divina
e alcance cósmico. A memória de uma missão alimentada pela vontade
sagrada assume ainda a transfiguração de um sonho erguido ao nível
divino como o facho de um destino ainda não apagado: “E um sonho que
inda resta, por memória,/ Ergue-se em chamas, a devorar a Altura!”. Esta
visão consome energias ocultas com um sabor profético.
A ténue iluminação da
paisagem contamina também o próprio sujeito poético, modelando a sua
criação artística e aliciando-o para a evasão do real: “Na esparsa,
etérea/ Fluidez da tarde, molho a pena; escrevo…/ E sinto desprender-me
da Matéria!”. O último verso, dotado de uma forte carga semântica,
testemunha o derramamento da espiritualidade na vida poética, iluminada
pela força vidente da alma humana.
A título de
conclusão, o poema é uma interpretação subjectiva da natureza no sentido
da elevação a vários níveis: divino (com a exaltação de Deus e a sua
determinação da origem cósmica), nacional (através da evocação da
realização épica de um povo eleito) e pessoal (no lirismo idealista do
acto criador do poeta). A densidade da mensagem confere um valor
profundo a certos vocábulos (como “Origem”, “Glória”, “Altura”, etc.)
que traduzem a dimensão metafísica da existência humana.
Ana Paula Cabrita Dias
Tribuzi
Águas profundas desvaneceram
o perfume guardado na memória
do tempo em que parámos
para combinar de sermos amigos.
Assim fiquei,
lembrando-me das palavras afogadas
que me percorrem, sós,
num arrepio frio.
Sonhos breves em dias claros:
quando nos demos num certo olhar,
quando nos lemos num certo livro,
quando nos perdemos no encanto
de certo tempo.
Águas profundas desvaneceram
o sol dos olhares, dos livros, dos tempos...
Assim fiquei,
com o lastro preso ao lodo
de profundas águas,
como fazem os náufragos de si mesmos.
Tereza Sorel
(pseud.)