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A
aventura literária de Almada Negreiros |
O prazer de ler
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De
uma leitura fugaz da biografia de Almada
Negreiros, duas ideias serão colhidas. Por um
lado, o artista produziu uma obra vastíssima,
dentro do espírito com que intercalou, no volume
“A invenção do Dia Claro”, uma citação do
pintor Henri Matisse:
«Je travaille tant que je peux et le mieux
que je peux, toute la journée. Je donne toute ma
mesure, tous mes moyens. Et après, si ce que j’ai
fait n’est pas bon, je n’en suis plus
responsable; c’est que je ne peux vraiment pas
faire mieux...». |
Por outro
lado, tal obra retrata uma figura multifacetada,
abarcando diversas formas de expressão: o desenho, a
pintura, a poesia, o romance, a novela, o conto, o
ensaio, a conferência, o teatro e a dança. Através do
convívio de diferentes domínios da arte, Almada
Negreiros protagonizou o Modernismo na cultura
portuguesa do século XX. De facto, o contágio entre
literariedade e plasticidade singularizou o grupo do “Orpheu”,
de acordo com as tendências mais avançadas da Europa.
O Modernismo representa uma ruptura com a estagnação
da mentalidade portuguesa do fim de século e a sua
evasão saudosista, visionando uma dimensão mais
alargada das potencialidades do Homem. Mesclada de
esoterismo, a arte apropria-se de um tom da audácia,
extravagância e requinte, criando, subtilmente, a
emoção estética.
Apreciando
globalmente a obra literária de Almada, por duas
facetas enveredam os seus textos em prosa e poesia. A
primeira vertente, dominada pelo Sensacionismo, congrega
as tendências futurista e interseccionista.
No “Manifesto
Anti-Dantas”, escrito em 1915, o autor identifica-se
como “poeta d’Orpheu futurista” e assume uma
atitude satírica relativamente à cultura académica
portuguesa, corporizada na figura de Júlio Dantas.
Na qualidade de
“poeta sensacionista”, Almada assina o longo poema
intitulado “A Cena do Ódio”, que apresenta também
uma intensa crítica social, sobretudo da classe
burguesa, mas abrangendo todos os grupos, de natureza
intelectual ou popular, de origem rural, marinha ou
citadina. Além do valor documental do poema como amplo
retrato da sociedade, ele denuncia a percepção
artística dos quadros típicos, colorindo o pitoresco
ou ridicularizando pela caricatura. Esse texto
testemunha ainda várias afinidades estéticas entre
Almada Negreiros e Álvaro de Campos na partilha da
experiência enérgica do Futurismo.
Em “Mima
Fataxa”, outro texto de Almada, sobressai o programa
vanguardista ao nível formal, com a introdução de
diversos tipos de letra de acordo com uma visão
estética do espaço gráfico e a valorização dos
efeitos sensoriais de certos recursos fénicos como a
aliteração, a assonância ou a rima interna.
A obra “K4, o
Quadrado Azul” ilustra igualmente o gosto futurista no
ataque agressivo ao Saudosismo e na apologia gritante da
força mecânica. Como particularidade, a introdução
do processo de intersecção cinética na visão do
mundo confere ao texto urna nota de excentricidade e
fantasia. Numa passagem curiosa, a imaginação
desmembra a integridade do corpo humano e sugere uma
consciência retalhada da personalidade.
Em “Saltimbancos”,
a percepção é motivada por um desfile de imagens
descontínuas, que se encadeiam ou repetem, num
delirante enquadramento espacial e temporal. A
experiência da sexualidade é perspectivada como um
espectáculo de “contrastes simultâneos”.
Um outro
exemplo de interseccionismo é desenhado na novela “A
Engomadeira”. Como experiência de delírio e de
liberdade criativa, é também uma situação de
transfiguração do real. Através de um fecundo
processo de recordação, observação ou sonho, as
imagens cruzam-se e entrelaçam-se sem coerência
semântica ou gráfica. As relações humanas
emaranham-se em cenas amorais e absurdas; a vivência da
sexualidade é envolvida, uma vez mais, numa rede
complexa ao nível do subconsciente.
A segunda
faceta da obra literária de José de Almada Negreiros
é identificada no título do texto doutrinário “Elogio
da Ingenuidade”. O mundo da criança é valorizado
pela sua intuição, espontaneidade e pureza, em
oposição à estéril experiência dos adultos. Estas
ideias são retomadas no “Prefácio a Qualquer Poeta”,
ainda sob a forma pedagógica.
“A Invenção
do Dia Claro” é uma novela que aplica,
literariamente, os princípios acima mencionados. A
apologia da ingenuidade resulta da aprendizagem na vida
de um filho que regressa desencantado à casa materna,
depois de uma busca enganadora da atmosfera cosmopolita.
O convívio afectivo com a mãe, frequentemente num tom
de lirismo confidencial, incita à recuperação da
candura. O mesmo ideal é realçado no romance “Nome
de Guerra”, com a vivência de um jovem provinciano no
mundo citadino. O trajecto percorrido é o da descoberta
pessoal, emancipada e criativa.
As vertentes
delineadas na obra literária de Almada correspondem às
duas características principais do seu universo
estético: a sensibilidade para uma sondagem da
infância como forma exemplar de aprendizagem, original
e eterna; a captação humorística da sociedade, com os
seus tipos e ambientes representativos.
Em vários
textos doutrinários é abordada a dialéctica da
existência individual e da integração social. O
título “Direcção Única” sugere a via da unidade,
mas esta é procurada na multiplicidade. É neste
âmbito filosófico que se movimenta uma parte
significativa do teatro de Almada, também enriquecido
pela magia do artista plástico.
O problema da
definição de uma unidade diversificada e da busca da
plenitude individual representa um centro de interesse,
comum aos membros do grupo do “Orpheu”, com a sua
expressão mais fecunda no desdobramento de Fernando
Pessoa em heterónimos. A personalidade pode assumir,
deste modo, uma forma complexa de expansão de
tendências divergentes. Um exemplo de tensão ao nível
da análise dos sentimentos está patente no poema
intitulado “Homem transportando o cadáver de uma
mulher!”:
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Quis-te
tanto que gostei de mim!
Tu eras a que não serás sem mim!
Vivias de eu viver em ti
e mataste a vida que te dei
por não seres como eu te queria.
Eu vivia em ti o que em ti eu via.
E aquela que não será sem mim
tu viste-a como eu
e talvez para ti também
a única mulher que eu vi! |
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A obra de
Almada Negreiros é um misto de irracionalismo (pela
recuperação da infantilidade e entrega ao sonho) e
lucidez (através do rigor da percepção artística e
da visão irónica do mundo). Esta dualidade, combina a
vocação mistificadora e a consciência crítica da
realidade. Para David Mourão-Ferreira, o melhor da obra
de A.N. vive precisamente da tensão entre estes dois
extremos da intuição e da análise”. Recentemente
falecido, Eleutério Correia de Melo, um vulto das
Letras que privou com Almada, legou do artista a visão
de “um ser genial, cheio de paradoxos”.
Jorge de Sena,
apreciando a arte de A. N., retratou-o do seguinte modo:
«uma extrema capacidade de visionarismo plástico,
aliada a uma nitidez linear de estilo, que equilibra o
mais saboroso coloquialismo popular com um poder de
abstraccionismo geometrizante muito concorde com
as orientações predominantes do seu entendimento
plástico do mundo».
No polimorfismo
da sua arte cruzam-se influências múltiplas: a
herança familiar afroasiática; o contacto com a
estética vanguardista em Paris e Madrid; o convívio
artístico com Amadeo de Souza-Cardoso e Santa-Rita
Pintor; a partilha do ideário futurista de Marinetti; a
camaradagem com Fernando Pessoa no Modernismo do “Orpheu”
e, sobretudo, o projecto pessoal de renovação
constante da cultura portuguesa num sentido de
universalidade.
A aventura
estética de Almada Negreiros prenunciou ainda, no seu
visionarismo espontâneo e intuitivo, a linha
imaginativa do Surrealismo.
Ana Paula Cabrita
Dias Tribuzi
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