Há momentos na
vida em que tudo se depara negro e a esperança parece
irremediavelmente perdida. Se em Angola não poderia continuar,
por sua vez em Portugal, quem regressava de África era recebido
do pior modo possível; com hostilidade, desdém e mesmo
agressividade.
Analisando um
pouco a situação logo se chegava à conclusão do motivo pelo
qual a maioria dos que agora regressavam das ex-colónias,
tinham ido lá parar. “Rapidamente e em força para Angola”
foi a voz de comando do primeiro ministro português em mil
novecentos e sessenta e um, quando ocorreram os fatídicos
acontecimentos perpetrados no norte de Angola e extensivos à
capital da província. Foi porém demasiado tardia esta ordem.
Se em lugar de
ser dificultada a ida dos portugueses do continente para o
ultramar como foi durante muitos anos com processos demorados,
chegando ao cúmulo de ser necessária uma carta de chamada
enviada por um familiar que lá residisse há um certo tempo para
que outro membro da família se lhe pudesse juntar, tivessem sido
criadas condições de incentivo à ida e fixação de muitos mais
portugueses para aquelas paragens, talvez as coisas tivessem
sucedido dum outro modo. A política ultramarina portuguesa pecou
muito por omissão e falta de actualização.
Apesar de tudo a
maior parte dos jovens militares que partiram convocados pelo
governo da nação seguiu, uns mais receosos que outros, alguns
mesmo com uma certa revolta mas a maioria porém, com a noção de
que iriam defender uma parte integrante do território nacional,
em auxílio dos compatriotas ali nascidos ou radicados cuja
integridade física estava a ser ameaçada, enfim, cumprir um
dever patriótico ao qual ninguém se deveria eximir. A noção de
patriotismo e do cumprimento do dever acompanhou-os e fê-los
lutar com valentia no momento da refrega, porém, o conhecimento
daquele povo e daquelas terras aos quais, sem dar por isso, se
vieram a afeiçoar e a estimar enfeitiçaram muitos deles a tal
ponto de trocarem o seu torrão natal por aquelas paragens
africanas, elegendo-as, para ali se radicarem e alguns até
constituírem família.
Enquanto, até
mil novecentos e sessenta e um, grande parte dos colonos que
partiram para o ultramar eram gente ligada à terra, que dela
viviam e nela trabalhavam, a partir desta data já não era bem
assim; muitas pessoas formadas com cursos médios e superiores,
quadros qualificados das mais diversas áreas, radicaram-se nos
territórios portugueses ultramarinos, facto que deu origem a uma
nova maneira de estar, novas formas de vida e um novo
desenvolvimento sem precedentes na história daqueles povos.
Matilde chegou a
Angola, chamada por seu marido, um dos muitos militares que se
deixou enfeitiçar irremediavelmente por África logo após a sua
convocatória para a guerra colonial, no ano de mil novecentos e
sessenta e um. Ela partiu da metrópole, curiosamente no último
voo feito pela TAP num dos antigos aviões de quatro motores a hélice
com escala em Bissau, capital da Guiné portuguesa.
Nessa época era
costume cantar-se, em todas as escolas de Angola antes do início
das aulas pela manhã, o hino “Angola é Nossa”, muito
divulgado através de todas as estações de rádio. Angola
é nossa gritarei / é
carne é sangue da nossa grei / para
libertar, para defender, / para lutar até morrer...
Na história de
Portugal ensinava-se que Angola bem como todas as outras províncias
ultramarinas constituíam parte integrante do grande império
português que nos fora legado pelos nossos corajosos e gloriosos
antepassados que deram novos mundos ao mundo através dos
descobrimentos e eram senhores de aquém e além mar.
A noção de
patriotismo do cidadão português, pesava muito na formação dos
jovens sendo, como é natural, mais arreigada nos militares, porém,
o facto destes terem partido em defesa de um bem comum, começou a
esbater-se ao longo dos anos bem como a ligação directa que
estas circunstâncias tiveram com a deslocação maciça de muitas
de suas famílias para o ultramar.
Os valores da
nossa sociedade, com a revolução de vinte e cinco de Abril,
estavam a mudar vertiginosamente e nem todos para melhor.
A dificuldade em
transferir dinheiro de Angola para o Continente
constituiu sempre um obstáculo difícil de contornar à maioria
das pessoas que optaram fazer de Angola a sua terra.
A falta de
liberdade na circulação de bens entre o ultramar e o
continente embora fosse justificada, até determinada altura, com
a intenção de reter o capital em solo africano para que aí
fosse investido, a partir do momento em que se pensou na independência
das províncias ultramarinas deveria ter sido de imediato
modificada a fim de garantir os direitos dos cidadãos portugueses
que lá residiam. Tal medida não tendo sido tomada, originou uma
verdadeira catástrofe para quem foi forçado a abandonar África.
Nesta altura dos
acontecimentos, dadas as circunstâncias das mudanças políticas
ocorridas em Portugal, é de todo incompreensível que a transferência
de capitais não tenha sido permitida. É intolerável que as
pessoas que voluntária ou involuntariamente quisessem abandonar
Angola, Moçambique, Guiné ou outra qualquer província não
pudessem trazer livremente os seus haveres; dinheiro, carros ou
quaisquer outros bens materiais. Prédios, terrenos urbanos ou rústicos,
fazendas, fábricas, estabelecimentos, imóveis de qualquer índole,
estavam sentenciados a ficar; é mais que evidente que os seus
possuidores todos os pretendiam vender mas, em face da situação,
não havia quem se interessasse pela sua aquisição.
A maior parte
dos bens pertencentes aos cidadãos portugueses foi pura e
simplesmente abandonada pelo facto
de seus donos não terem outra opção. Chegou-se ao cúmulo
de se trocarem carros quase novos por simples volumes de maços de
tabaco ou por pequenas porções de determinados alimentos, entre
eles o pão, que raramente se encontrava à venda.
Houve quem
trocasse fazendas e casas por títulos de hipotéticas transferências
bancárias para o continente as quais nunca chegaram às mãos dos
seus destinatários. O depósito no banco nunca se concretizou e o
paradeiro do burlão na maioria dos casos era desconhecido. Os
lesados nunca poderiam reclamar sob pena de incorrerem em crime
punido por lei, sendo acusados de transferência ilegal e fraude,
se persistissem na queixa.
No mercado negro
os escudos angolanos que em tempos, em momentos de alta, chegaram
a trocar-se por escudos portugueses na base dos trinta por cento,
o que era escandaloso, estavam agora no mesmo mercado nos setenta,
oitenta por cento e nem mesmo assim era fácil conseguir a troca.
Para além de todas estas vicissitudes, terem de entregar mil e
oitocentos escudos angolanos para receberem mil portugueses, não
era fácil de aceitar a pessoas que viviam do seu trabalho.
O facto do
Governo Português não acautelar ou, pior ainda, não autorizar a
transferência dos bens dos portugueses na altura da descolonização
foi uma das maiores injustiças, praticadas por quem mandava e a
desgraça de tanta gente, que após longos anos de trabalho, caiu
sem culpa nem pecado na mais odiosa das misérias, na pobreza
extrema, no desespero,
muitos na loucura e até na morte. Foi a situação mais injusta e
catastrófica que imaginar se possa!
Dum momento para
o outro perderem todos os seus haveres sem nada terem contribuído
para essa perda. Serem forçados a abandonar o fruto do trabalho
árduo no decorrei de longos anos, de canseiras, vigílias,
economias feitas à custa de grandes sacrifícios. Deixarem
empresas, fazendas, prédios, terrenos, carros, dinheiro, a própria
casa com seu recheio, objectos pessoais, roupas, enfim... tudo,
(houve pessoas que, se quiseram salvar a vida, regressaram apenas
a roupa que traziam vestida).
Verem-se
despojados de quanto haviam adquirido, custa muito a aceitar e, é
impossível explicar por palavras a quem o não viveu.
Porém a
desventura não se ficou pelo roubo de que foram vítimas.
Para quem
espoliado de África, ao chegar a Portugal se encontrava sem nada,
sem trabalho e sem dinheiro para fazer face às despesas mínimas,
com filhos, dois, três, quatro, que necessitavam de alimentação,
casa, roupa, cuidados de saúde, de educação e os demais
inerentes à vida. Bater de porta em porta à procura de trabalho,
de alojamento e ver as portas fecharem-se-lhe sistematicamente.
Tentar junto das instâncias oficiais encontrar soluções para
minimizar as causas da tragédia que sobre si se abatera e não
conseguir resposta. Ver passarem-se dias, semanas, meses sem
vislumbrar a mais ténue luz ao fundo do túnel era duro e de
uma imensa crueldade.
O calvário
destas gentes no entanto, não se deteve por aqui, continuou no
acolhimento de que foram alvo, nos títulos de honra com que foram
rotulados: fascistas, colonizadores, desalojados, retornados.
Retornados foi ponto assente. No fim de algum tempo ficariam os
famigerados retornados.
Foi com muita
tristeza e enorme desespero que constataram a hostilidade com que
os viam chegar em avalanche cada vez mais densa à medida que se
ia aproximando a anunciada independência, melhor diria, a desgraça.
Desgraça dos retornados, despojados de todos os seus haveres e
reduzidos à pobreza, desgraça e condenação definitiva das
gentes de Angola.
Para maior
desgosto dos já destroçados retornados, muitas pessoas da nossa
sociedade achando-se na posse do discernimento, da sabedoria, da
justiça nem sequer se davam ao trabalho de camuflar os seus
sentimentos de desagrado, passando muitas vezes de hostis a
agressoras quer em palavras quer amiúde em actos rancorosos
praticados contra irmãos, parentes, amigos, conterrâneos
conhecidos ou desconhecidos que despojados de tudo regressavam de
África.
Estes ouviam com
frequência dizerem-lhes que vinham sem nada porque queriam, ninguém
os forçara a ficar por lá. Fora a ganância que os lá retivera.
Porque não continuavam lá, se era uma terra tão boa? Claro,
porque os pretos os corriam porque estava na cara que os
maltratavam, os exploravam, os tinham subjugados na miséria. Toda
a gente sabia que fulano, sicrano e beltrano chicoteava os pretos,
os roubava, os obrigava
a trabalhar como escravos...
Queixavam-se de
quê? Só tinham o que mereciam. Aquilo era deles, que queriam os
brancos trazer? A África é dos pretos, os portugueses é que
estavam lá a mais.
Ainda por cima
agora queriam vir tirar o lugar aos que cá estavam, que nunca de
cá saíram, porque não eram ambiciosos como eles. Quiseram tudo,
tudo haviam perdido. Agora nada tinham que se lastimar.
Chegavam ao cúmulo
de lhes dizerem que o que haviam ganhado lá tinha sido à custa
dos pretos, portanto era justo que lá ficasse.
Agora virem para
cá e querem que o estado (eles, que no fim de contas eram eles)
os sustentassem à boa vida! Isso era o que mais faltava! Lá
tinham vivido à custa dos pretos, cá queriam viver à custa dos
brancos.
Cambada de
usurpadores e parasitas, era o que eles eram, acrescentavam quando
a discussão subia de tom.
Este clima de
acolhimento que nunca esperaram encontrar, deixava os retornados
tristes e exasperados. No entanto, apesar de todo o infortúnio
por que estavam a passar, alguns dos que chegavam, mais
desprendidos ou com um espírito de humor mais apurado,
constituindo uma honrosa excepção, ainda tinham ânimo que, por
vezes, lhes permitia brincar com a situação.
Foi o caso duma
interessante conversa que Matilde ouviu uma tarde ao entrar num
pequeno bar duma vila do centro do país onde, como é habitual,
um grupo de homens, costumava juntar-se em amena cavaqueira. No
momento a conversa estava animada. Os temas, como as cerejas,
iam-se encadeando uns nos outros passando, inexoravelmente na
altura, pelos retornados.
Uns queixavam-se
disto, outros acusavam-nos daquilo, sendo, porém, todos unânimes
na ideia de que os regressados de África estavam a constituir uma
praga, tal era o número dos que afluíam dia após dia ao Velho Continente.
— Na
realidade, disse um dos presentes à laia de conclusão, daqui a
pouco, não se vê mais nada nesta terra senão retornados e cães!
— É verdade,
é verdade...
— Você é que
tem razão - aplaudiram quase em uníssono todos os presentes.
De repente, alguém
reflectiu e, uma voz se levantou do meio do grupo:
— O senhor por
acaso não é retornado? Ou é?
— Claro que
sou, homem!
— Eu também,
exclamou quem falara e, ambos desataram a rir com vontade
perante o espanto dos demais que de repente não se haviam
apercebido onde estava a piada.
Mas estes
momentos eram raros. O discurso normal era o que vínhamos
descrevendo.
Os retornados
eram cada vez mais, queriam era vir tirar os lugares, os postos de
trabalho, passar à frente, dos que cá estavam mas isso não iria
acontecer porque eles não deixariam. Que pouca vergonha, andaram
lá a ganhar muito mais do que os que cá estavam, a trabalhar
muito menos, e o tempo a contar a dobrar!
Era com ditos
desta estirpe que os mimoseavam.
Parece impossível,
mas estas ideias andavam na cabeça de colegas, amigos e até
familiares e eram apresentadas sem a menor deferência.
Tentar chamar à
razão essas pessoas, que se insurgiam contra quem forçado
regressava à sua terra, argumentando de mil maneiras, era tarefa
vã. Dizer-lhes que afinal com a ida de muitas pessoas para o
ultramar todos haviam ganhado, que as terras africanas foram alvo
de um desenvolvimento sem precedentes na história, que as relações
entre brancos e negros eram boas, que isso de tratar os negros
como escravos, chicoteá-los, acontecera em tempos muito remotos e
não na nossa geração (tempos nos quais os próprios brancos
eram assim tratados, por outros brancos). Lembrar-lhes quantas
mulheres na actualidade recebiam aqui maus tratos, quantas eram
exploradas no seu trabalho, já não falando na prática corrente
da exploração do trabalho das crianças, dos desprotegidos,
dos humildes... de nada valia.
Pareciam
desconhecer ou pretenderem ignorar que todas estas questões e
procedimentos, embora incorrectos, eram fruto da época e aceites
como normais pela sociedade então vigente. Em Angola não
acontecera mais que o reflexo do que se passara cá e por esse
mundo além, apenas com uma pequena mas significativa diferença;
entre os portugueses e os nativos aconteceu o que não aconteceu
com nenhum outro povo colonizador, a mestiçagem seguida ou
antecedida de muitos casamentos entre brancos e negros; não era
por acaso que se dizia que, Deus criara os brancos e os negros e
os portugueses os mestiços.
Tentar afirmar
que os portugueses na generalidade eram tolerantes amigos e
respeitavam os africanos tal como os naturais do continente,
pagando-lhes bem se trabalhavam bem, era tempo perdido pois tais
argumentos pura e simplesmente não lhes interessavam. Era ponto
assente:
quem não tinha
ido ou ficado em África era honesto, quem lá permanecera era
explorador.
No seu entender
existiriam algumas excepções... talvez! Davam-lhes por vezes o
beneficio da dúvida.
Tentar fazer com
que reflectissem, lembrando-lhes que quase toda aquela gente
havida perdido tudo sem culpa, pedindo-lhes que se colocassem no
lugar de quem voltava de mãos vazias, tal como se um fogo ou uma
catástrofe natural, um terramoto por exemplo, lhes destruísse
todo o seu património, deixando-os dum momento para o outro sem
nada, era tempo perdido pois recusavam-se a estabelecer semelhante
comparação, por inverosímil.
Caricato seria
perguntar-lhes se os emigrantes portugueses, na França,
enriqueceram à custa de explorarem os franceses, os da Venezuela,
os venezuelanos.., e se os negros não deveriam permanecer na
Europa porque não é a sua terra, mas os retornados nunca
poderiam colocar tais questões porque jamais pensariam desse
modo.
Só passados
muitos anos, grande parte dos membros da nossa sociedade viria a
admitir que os retornados, na sua maioria, eram gente honesta e
empreendedora. Muitos deles conseguiram refazer a sua vida em
tempo recorde e, de uma forma exemplar, o que deixou admirados
todos os que tiveram conhecimento do modo, talvez único, como se
ajudaram mutuamente. O que por certo talvez nunca conseguirão
avaliar é o sofrimento pelo qual passaram durante todo esse período
de recuperação e as feridas que apesar de todos os esforços, não
conseguiram jamais sanar.
Deveria, no mínimo,
ter ocorrido, a seu tempo um processo de indemnização aos
lesados, por parte do Governo Português, porém, até ao momento
actual, por estranho e incrível que pareça, tal facto ainda não
aconteceu, a justiça ainda não foi reposta.
A realidade do
mau acolhimento de que estavam a ser vítimas todos os que
retornavam a Portugal já Matilde a conhecia penosamente
martelando-lhe o cérebro sem parar, e quanto doía! Porém era
preferível enfrentar a hostilidade na sua terra, a permanecer em
Angola onde a vida se havia transformado num enorme pesadelo.
Afinal ela era
uma optimista nata e não perdera a esperança de que, após ter
a família reunida, iria conseguir contornar os obstáculos e
vencer as dificuldades que se lhe deparassem, por maiores que
fossem.
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