Cedo
me apercebi que o que me contara o Albano fora apenas uma gota
de água.
O
desaparecimento das pessoas era uma constante; e muitas
vezes não eram mais encontradas. Os familiares e amigos moviam
todas as influências, deitavam mão de todos os meios ao seu
alcance para conseguirem descobrir o paradeiro dos desaparecidos
e quando pensavam estar no seu encalço, começava uma saga de
desespero e esperanças temperada dum enorme sofrimento causado
pela incerteza das reacções imprevisíveis dos raptores e do
que eles poderiam fazer com quem raptavam: manter as pessoas dentro
da cidade sem a mínima hipótese de comunicação, torná-las
alvo de violações sexuais ou outras, de maus tratos físicos e
morais, obrigando-as a ingerir dejectos humanos tal como a
alguns prisioneiros que foram retidos durante semanas na praça
de touros, aparecerem mortas em qualquer lugar como sucedeu no
quintal duma vivenda na Vila Alice onde foram encontrados quatro
corpos esquartejados e enfiados numa fossa séptica ou
darem-lhes sumiço nas densas matas onde os obrigariam a
percorrer distâncias inimagináveis expostos a perigos de toda
a ordem e por fim sumirem-nos sem deixar rasto, tal como
acontecera meses antes ao casal Figueiredo, o Fausto e a Lucinda
quando regressavam da sua fazenda de gado em Nova Lisboa.
A
última vez que Matilde e João haviam estado juntos com estes
amigos numa festa em casa dos Rodrigues, amigos comuns, o Fausto
dissera ao marido de Matilde:
—
Não estou minimamente preocupado com a situação, todos os
pretos que têm trabalhado comigo continuam meus amigos;
pago-lhes bem, sempre os respeitei, como tu sabes, e trato-os
como se fossem de família.
Na
realidade Fausto era uma excelente pessoa, homem bem formado,
andara no seminário até tarde e quando saiu, além de
continuar um bom católico era pessoa de fino trato e de um
humanismo exemplar. Casara tardiamente com uma mulher já
madura, a Lucinda, senhora elegante dona de dois bons colégios
em Luanda onde gozava de bastante prestígio pelos cargos de
directora dos seus estabelecimentos de ensino. Fausto tinha sido
durante vários anos prestimoso funcionário bancário e
resolvera há tempos atrás, dar um novo rumo à sua vida
afastando-se do banco e dedicando-se à criação de gado numa
fazenda que comprara perto de Nova Lisboa. Possuía na altura
umas largas centenas de cabeças de gado e andava cheio de
entusiasmo com a nova aventura.
Faziam,
ele e a esposa, a viagem de regresso a Luanda após terem
passado uns dias na fazenda quando foram vistos pela última vez
no alto de Cambambe, ao volante do seu mercedes, que haviam
comprado meses antes. Nesse local, segundo relato de testemunhas
oculares foram interpelados por uma patrulha do MPLA. Constou
ainda que se faziam acompanhar
por um enfermeiro conhecido de Nova Lisboa, conotado como da
Unita. Desconhece-se porém se o facto de terem dado esta boleia
teve alguma interferência com o seu desaparecimento, tendo no
entanto sido ventilada esta hipótese. O certo é que nunca mais
foram vistos. Houve porém quem visse o seu carro no Norte,
conduzido por um militar do MPLA.
A
notícia do seu desaparecimento correu veloz entre os amigos e
conhecidos e em breve se espalhou por toda a cidade. Foram
tomadas todas as providências, usados todos os meios possíveis
e imaginários mas em vão, notícias deles nunca mais. Isto
acontecera pouco tempo depois do vinte e cinco de Abril.
Um
irmão da Lucinda que vivia no continente ao tomar conhecimento
do desaparecimento da irmã e do cunhado deslocou-se
propositadamente a Angola onde morara vários anos e onde tinha
grandes amizades e influências. Aí chegado, deitou mão de
todos os recursos, moveu todas as influências para tentar ao
menos descobrir o paradeiro dos familiares, mas nada conseguiu.
A irmã sofria de grave doença e supostamente faltar-lhe-iam os
remédios que necessitava tomar todos os dias, o que mais
aumentava a preocupação da família. Quando passados largos
meses de buscas, promessas de ajuda e seguimento de pistas, o
irmão da Lucinda estava prestes a desistir alguém lhe lembrou
que um Padre vedor, antigo professor e amigo do Fausto talvez o
pudesse ajudar.
Numa
última tentativa pediu ao sacerdote, já idoso, que
se deslocasse a Luanda o que o bom homem fez prontamente cheio
de vontade de lhes ser prestável.
Foi-lhe
entregue uma foto dos desaparecidos e um mapa de Angola e o
Padre conseguiu localizá-los através do mapa numa zona de
densa mata junto de um rio. Disse ainda parecer-lhe que o Fausto
se encontrava de boa saúde enquanto a esposa se lhe afigurava
extremamente debilitada. De imediato foi mobilizado um helicóptero
e outros meios aéreos que ao fim de algumas horas de busca
confirmaram ser verídico o que havia sido diagnosticado pelo
padre vedor. Eles lá estavam acampados junto ao rio vigiados
por soldados, porém, logo que estes se aperceberam de
movimentos aéreos estranhos iniciaram com os reféns a marcha
por uma picada e embora seguidos por algum tempo, em breve se
embrenharam na mata conseguindo despistar quem os seguia e
desaparecendo definitivamente sem nunca mais deixarem rasto
algum.
Chorados
por familiares e amigos, durante muito tempo pairou em todos uma
dúvida de esperança; talvez algum dia voltassem, certamente os
turras não os iriam matar. Porque haveriam de fazê-lo? Nunca
se meteram em política, o Fausto nem às forças armadas
pertencera.
Amigo
muito chegado de meu marido tendo sido colegas de estudo, o
Fausto, desde que nos encontrámos em Luanda, ainda ele estava
solteiro, era visita assídua de nossa casa, companheiro de
brincadeiras e compincha de nossos filhos a tal ponto da Clarita
o chamar de seu namorado.
Sentimos
muito a sua perda e ainda hoje nos custa acreditar em tão fatídico
destino.
Este
facto, mais vinha provar que não era um comportamento racista
ou de injustiça praticada contra os negros que os levava a
cometer actos de vingança contra os portugueses.
Estes
desaparecimentos de pessoas, antes esporádicos, eram agora o pão
nosso de cada dia.
Com
receio dos raptos e de muitas outras represálias e crimes os
brancos iam sendo corridos das áreas altas e mais dispersas da
cidade, abandonando suas casas forçados ou por sua livre
vontade, ditada pelos acontecimentos funestos e ataques que dia
a dia se intensificavam, levando as pessoas visadas a procurar
abrigo em casa de conhecidos, amigos, parentes ou mesmo como nós
em hotéis na zona baixa da cidade. Como eu havia previsto, estávamos,
pouco a pouco, a ser encurralados, cada vez numa área mais
restrita junto ao mar exactamente como os caçadores no mato
fazem à caça.
Vindos
de todas as partes do território aonde se ia estendendo a
guerra, não paravam de chegar a Luanda desalojados e
deslocados. Porém, aqui chegados, sem alojamento possível,
procuravam protecção junto do palácio do governador,
instalando-se nos jardins fronteiriços ao mesmo, amontoavam-se
no aeroporto ou na zona de protecção do porto marítimo sempre
na esperança de conseguirem de alguma forma sair deste
inferno.
A
verdade é que os confrontos eram cada vez mais violentos, o
respeito pela vida e pelos direitos das pessoas era letra morta.
O roubo, o rapto, as violações, a tortura física, a morte e a
justiça popular aplicada arbitrariamente, aumentavam a cada dia
que passava. Formaram-se tribunais populares que faziam
julgamentos ad hoc.
Os
movimentos de libertação travavam entre si acusações mútuas,
os acordos não se cumpriam. O MPLA aniquilara quase todas as
delegações da FNLA.
No
seio das tropas portuguesas sentia-se que se instalara a confusão
queixando-se muitas vezes os militares de não saberem a quem
obedecer pois em muitas ocasiões recebiam ordens controversas.
Ao mesmo tempo muitos se queixavam de lhes estarem a fazer uma
autêntica lavagem ao cérebro tentando incutir-lhes ideias
marxistas que eles rejeitavam. As pessoas ao sentirem-se
atacadas ou em risco pediam auxílio às nossas tropas ou à polícia
mas nem uns nem outros conseguiam valer a toda a gente;
respondiam sistematicamente que iriam fazer os possíveis, mas
nunca chegaremos a saber o que lhes era possível fazer numa
situação destas. Certo é que na maioria dos casos o auxílio
não chegava. A passividade que, diz-se, lhes era ordenada, de
forma alguma podia ser entendida pelos civis em perigo.
A
guerra fria que aliás só em sessenta e um se tinha feito
sentir em Luanda transformara-se agora em guerra quente e
sangrenta acompanhada de todos os horrores que uma guerra traz
consigo.
A
escolha de uma fuga era cada dia menor. Por terra, ninguém
poderia sair de Luanda visto as saídas estarem bloqueadas. Por
outro lado ninguém pretendia fazê-lo já que as outras cidades
ainda ofereciam menor segurança. As saídas eram pois apenas
duas. Uma o mar, com todos os perigos que ele encerra, sobretudo
quando enfrentados sem um mínimo de recursos; muitos se fizeram
ao mar em traineiras e noutras pequenas embarcações. A outra
saída possível era o aeroporto mas este, só para os mais
felizardos já que muita gente não possuía meios monetários
suficientes para custear o transporte aéreo de toda a família.
De
início a maioria das pessoas pretendia um voo da TAP para
Lisboa, porém fazia tempo que qualquer destino -
Brasil, África do Sul, ou qualquer cidade europeia -
servia para sair deste inferno. Não havia avião que levantasse
voo de Luanda que não levasse a lotação esgotada. A África
do Sul desde inicio ofereceu os lugares vagos nos seus aviões,
que escalassem Luanda, para o transporte de refugiados, mas por
incrível que pareça o Governo Português começou por não
aceitar tal oferta.
Se
não fosse mais tarde a ajuda de praticamente todas as grandes
companhias internacionais de aviação, que ao aproximar-se a
data marcada para a independência colocaram à disposição dos
refugidos portugueses, os seus aviões para o seu transporte
gratuito para Portugal, e, estou crente forte chacina se teria
abatido sobre os portugueses indefesos que ajudaram a levantar,
desenvolver e engrandecer esta terra. Muitos aqui teriam
perecido, tudo se conjugava para que assim acontecesse.
Havia
pouco tempo, ouvíramos em Portugal um dos vultos mais
proeminentes da revolução, um dos grandes mentores da entrega
apressada das nossas ex-colónias, um dos maiores responsáveis
da desgraça de tanto ser humano,
desgraça essa que
se prolonga já por vinte e muitos anos e Deus sabe por quanto
tempo mais... esse mentor da descolonização dizia num
acalorado discurso político: «os
retornados do ultramar estão a ser para a nação um grave
problema, nós nunca esperámos este regresso em massa, pensámos
que alguns viriam mas nunca toda esta avalanche e não estávamos
minimamente preparados para os receber».
Com esta invasão que vem por aí é que
vai ser o bom e o bonito!
Se
os políticos arquitectaram tudo para que os portugueses não
tivessem hipótese de permanecer por mais tempo em Angola com um
mínimo de condições e de segurança, digam-me então qual era
o destino a que toda a população europeia residente em Angola
estava votada pelos governantes?
Se
não fosse a ponte aérea posta à disposição dos portugueses
residentes em Angola por diversos países nunca teria sido possível
saírem daquela terra tantos milhares de pessoas antes da
independência, e, permanecendo lá, só poderiam ter vindo a
ser carne para canhão.
Durante
muitos anos brancos e negros tinham vivido sem conflitos, em
harmonia. As relações degradaram-se a partir do momento em que
começaram a lavrar, entre as sociedades negras, as ideias de
que os portugueses estavam ali a mais, que tudo o que possuíam
deveria passar de imediato a pertencer aos negros, que os
brancos naquela terra não eram um factor de desenvolvimento mas
de atrofia e usurpação, que a independência se deveria fazer
apenas com negros, os quais deveriam tomar exclusivamente e de imediato
em suas mãos os destinos de Angola. Apoiada a independência
por povos “amigos” como
a Rússia e Cuba e incentivada pelo governo português, estas
ideias rápido proliferaram dando origem a que os brancos
começassem a ser escorraçados. A finalidade era banir-nos
daquelas paragens não nos restando outra alternativa senão
abandonar Angola.
Em
todas as circunstâncias a população negra era incentivada
contra o branco em geral e o português em particular facto que
forçou definitivamente a nossa partida.