África
tem em si uma atracção fatal e um feitiço que prende
irresistivelmente quem a conhece. O seu clima, as suas águas
quentes, os seus espaços infindos; savanas, estepes, suas
florestas virgens com densas matas, a suprema riqueza da sua fauna
e flora, a sua vida selvagem, os desertos, enfim um sem número de
aspectos fazem daquelas terras se não o paraíso, pelo menos uma
prova de que ele existe. Quem algum
dia viveu naquelas paragens passa forçosamente a ver a vida com
outros olhos, os seus horizontes jamais serão comportáveis em
espaços exíguos, a sua mente estará sempre aberta a grandes
dimensões.
Não
admira que durante todos aqueles anos, apelidados de guerra
colonial, muitos dos soldados que para África foram mobilizados,
não resolvessem apenas ficar, mas chamassem para sua companhia as
esposas, os filhos, os pais, os amigos.
Todos
os dias chegavam a Angola inúmeras pessoas vindas do continente
para se juntarem aos familiares e amigos que as aguardavam
ansiosamente.
Nos
anos sessenta a chegada de um contingente de tropas era motivo de
festa e grande alegria. A população de Luanda tirava o dia para
aguardar a saída dos militares do porto; esperavam-nos ao longo
de toda a Avenida Marginal e aí os recebiam calorosamente. Negros
e brancos acarinhavam-nos à sua passagem com palmas, sorrisos,
abraços, beijos e flores.
Com
o passar dos anos estes acontecimentos tomaram-se rotineiros. Os
batalhões e as companhias passaram a chegar com regularidade e a
maior parte por via aérea, razão pela qual já não se fazia o
desfile das tropas à chegada.
Mas
não eram só os militares que diariamente chegavam a Angola,
passaram a chegar os familiares, os amigos, os vizinhos e era
sempre com grande contentamento que se via atracar um dos
majestosos paquetes da frota portuguesa: o
Infante D. Henrique, o Príncipe Perfeito, o Pátria, o
Vera Cruz... e embora já não acontecesse como relatam os mais
antigos que no dia de S. Barco ninguém trabalhava, se entre os
passageiros vinha um amigo, um parente, um conhecido deixava-se
tudo para ir esperá-lo, desejar-lhe as boas vindas e, quiçá,
saber notícias da própria família que estava na Metrópole.
Jaime,
um conterrâneo e compadre do João, um pouco mais velho do que
ele, casara e tinha oito filhos, sendo o sexto um rapaz chamado
Gilberto que contava agora treze anos, e era afilhado do João.
O
curto vencimento que o Jaime auferia numa fábrica onde trabalhava
em Aveiro, há muito tempo que era escasso para sustentar a família.
Ele, ao saber que o compadre casara e mandara ir a esposa para
junto de si, lembrou-se de lhe pedir para lhe arranjar emprego em
Luanda. Viera já lá iam quatro anos e achou que era tempo de
mandar chamar a esposa e os filhos.
Chegaram
a Luanda numa manhã de Março. Atracado o barco, o Pátria, algo
de anormal acontecia no porto que estava a atrasar o desembarque
dos passageiros e bagagens. Dentro do navio, os bagageiros, não
havia maneira de aparecerem. Zulmira, a esposa do Jaime, que
esperara todos aqueles anos, mais os infindáveis dez dias da
viagem não conseguiu aguentar mais a demora e decidida como
sempre o foram as mulheres portuguesas, tratou de pôr à cabeça
um saco onde transportava alguns haveres, chamou os filhos pegando
pela mão do mais novo e com os outros em fila atrás de si, toca
de descer as escadas, sendo a primeira passageira a pôr pé em
terra.
Na
semana seguinte, ela com os filhos eram capa da revista Notícias,
que relatava um problema havido entre o pessoal
de estiva e ilustrava o acontecimento com a foto da Zulmira e seus
filhos.
Na
fotografia via-se a Zulmira toda risonha de saco à cabeça
descendo as escadas do navio acompanhada dos filhos precisamente
com esta legenda: «Esta mulher decidida não precisou de
bagageiros, deitou o saco à cabeça e ala que se faz tarde que o
marido estava à espera».
Foi
Matilde que ao folhear a revista “Notícias de Angola,” se
deparou com a foto e ainda hoje guarda a revista como recordação.
Iam
bem longe esses alegres dias da chegada. Sem saber como, estávamos
já na dolorosa hora da partida. Também a família do Jaime e da
Zulmira aguardavam angustiados o momento de deixar Luanda.
—
Tanta esperança e tanta canseira para quê? Para agora termos de
partir sem nada e desesperados. Comentou Matilde entristecida.
De
repente pareceu-lhe ouvir marchar e disse para o marido:
—
Escuta, não ouves marchar?
—
Marchar? Estás enganada. Quem
é que queres que ande por aí a marchar?
—
Os pioneiros, devem ser os pioneiros. E dizendo isto, pousou o uísque
que estava a tomar e foi espreitar a Avenida.
—
Vem cá, aonde vais com essa pressa toda? Não sabes que os
pioneiros que nos habituámos a ver já não existem?
Agora...
Na
realidade, na Avenida nada de anormal se passava, apenas o tráfego
igual aos dias anteriores.
—
Foi imaginação minha, pareceu-me mesmo ouvir marchar... disse
Matilde, voltando ao seu uísque e sorvendo um trago, tentando
assim desfazer o nó que de repente lhe apertava a garganta, nem a
deixando ouvir o que João começara a dizer-lhe.
Este,
aproveitando a sua distracção, com habilidade mudou de assunto,
não prosseguindo a explicação que parecia ter iniciado. Era seu
propósito mantê-la afastada da realidade o máximo tempo possível.
Só
alguns dias mais tarde Matilde viria a tomar conhecimento que os
pioneiros, que imaginara ouvir e que outrora costumavam marchar
nas ruas da cidade, se haviam transformado em bandos de
guerrilheiros que atacavam e perpetravam ocupações, roubos,
mortes e crimes de toda a índole e entre os quais as crianças já
pouco ou nada significavam.
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