Machado de Assis, Tu, só tu, puro amor.

Tu, só tu, puro amor  [1]


COMÉDIA

 

                                                                                  Tu só, tu, puro amor, com força crua.

                                                                                  Que os corações humanos tanto obriga...

                                                                                                                      (Lusíadas, 3, CXIX)

 

PESSOAS

                                   CAMÕES                                             D. MANUEL DE PORTUGAL

                                   D. ANTÓNIO DE LIMA             D. CATARINA DE ATAÍDE

                                   CAMINHA                                           D. FRANCISCA DE ARAGÃO

 

Sala no paço

 

CENA PRIMEIRA

CAMINHA, D. MANUEL DE PORTUGAL

            (CAMINHA vem do fundo, à esquerda; vai a entrar pela porta da direita, quando lhe sai D. MANUEL DE PORTUGAL, a rir)

            CAM. — Alegre vindes, senhor D. Manuel de Portugal. Disse-vos El-rei alguma coisa graciosa, decerto...

            D. MAN. —   Não; não foi El-rei. Adivinhai o que seria, se é que o não sabeis já.

            CAM. —   Que foi?

            D. MAN. —   Sabeis o caso da galinha do Duque de Aveiro?

            CAM. —   Não.

            D. MAN. —   Não sabeis? Pois é isto: uns versos mui galantes do nosso CAMÕES. —  (CAMINHA estremece e faz um gesto de má vontade) Uns versos como ele os sabe fazer. (À parte) Dói-lhe a notícia. (Alto) Mas, deveras, não sabeis do encontro de Camões com o Duque de Aveiro?

            CAM. —   Não.

            D. MAN. —   Foi o próprio duque que mo contou agora mesmo, ao vir de estar com El-rei...

            CAM. —   Que houve então?

            D. MAN. —   Eu vo-lo digo; achavam-se ontem, na igreja do Amparo, o duque e o poeta...

            CAM. —   (com enfado). O poeta! o poeta! Não é mais que engenhar aí uns pecos versos, para ser logo poeta! Desperdiçais o vosso entusiasmo, senhor D. Manuel. Poeta é o nosso Sá, o meu grande Sá! Mas, esse arruador, esse brigão de horas mortas...

            D. MAN. —   Parece-vos então?...

            CAM. —   Que esse moço tem algum engenho, muito menos do que lhe diz a presunção dele e a cegueira dos amigos; algum engenho não lhe nego eu. Faz sonetos sofríveis. E canções... digo-vos que li uma ou duas, não de todo mal alinhavadas. Pois então? Com boa vontade, mais esforço, menos soberba, gastando as noites, não a folgar pelas locandas de Lisboa, mas a meditar os poetas italianos, digo-vos que pode vir a ser...

            D. MAN. —   Acabai.

            CAM. —   Está acabado: um poeta sofrível.

            D. MAN. —   Deveras? Lembra-me que já isso mesmo lhe negastes.

            CAM. —   (sorrindo). No meu epigrama, não? E nego-lho ainda agora, se não fizer o que vos digo. Pareceu-vos gracioso o epigrama? Fi-lo por desenfado, não por ódio... Dizei, que tal vos pareceu ele?

            D. MAN. —   Injusto, mas gracioso.

            CAM. —   Sim? Tenho em mui boa conta o vosso parecer. Algum tempo supus que me desdenháveis. Não era impossível que assim fosse. Intrigas da corte dão azo a muita injustiça; mas principalmente acreditei que fossem artes desse rixoso... Juro-vos que ele me tem ódio.

            D. MAN. —   O Camões?

            CAM. —   Tem, tem...

            D. MAN. —   Por quê?

            CAM. —   Não sei, mas tem. Adeus.

            D. MAN. —   Ide-vos?

            CAM. —   Vou a El-rei, e depois ao meu senhor infante. (Corteja-o e dirige-se para a porta da direita. D. MANUEL dirige-se para o fundo).

            D. MAN. —   (andando).

                                               Eu já vi a taberneiro

                                               Vender vaca por carneiro...

            CAM. —   (volta-se). Recitais versos?... São vossos?... Não me negueis o gosto de vos ouvir.

            D. MAN. —   Meus não; são de CAMÕES. — .. (Repete-os descendo a cena.)

                                               Eu já vi a taberneiro

                                               Vender vaca por carneiro;

            CAM. —   (sarcástico). De Camões?... Galantes são. Nem Virgílio os daria melhores. Ora, fazei o favor de repetir comigo:

                                               Eu já vi a taberneiro

                                               Vender vaca por carneiro...

            E depois? Vá, dizei-me o resto, que não quero perder iguaria de tão fino sabor.

            D. MAN. —   O Duque de Aveiro e o poeta encontraram-se ontem na igreja do Amparo. O duque prometeu ao poeta mandar-lhe uma galinha da sua mesa; mas só lhe mandou um assado. Camões retorquiu-lhe com estes versos, que o próprio duque me mostrou agora, a rir:

                                               Eu já vi a taberneiro

                                               Vender vaca por carneiro;

                                               Mas, não vi, por vida minha,

                                               Vender vaca por galinha,

                                               Senão ao Duque de Aveiro.

 

            Confessai, confessai, Senhor Caminha, vós que sois poeta, confessai que há aí certo pico, e uma simpleza de dizer... Não vale tanto decerto como os sonetos dele, alguns dos quais são sublimes, aquele, por exemplo:

 

                                   De amor escrevo, de amor trato e vivo...

ou este:

 

                                   Tanto do meu estado me acho incerto...

            Sabeis a continuação?

            CAM. —   Até lhe sei o fim:

                                   Se me pergunta alguém por que assim ando

                                   Respondo que não sei, porém suspeito

                                    Que só porque vos vi, minha senhora.

(Fitando -lhe muito os olhos.) Esta senhora... Sabeis vós, decerto, quem é esta senhora do poeta como eu o sei, como o sabem todos... Naturalmente amam-se ainda muito?...

            D. MAN. —   (à parte). Que quererá ele?

            CAM. —   Amam-se por força.

            D. MAN. —   Cuido que não.

            CAM. —   Que não?

            D. MAN. —   Acabou como tudo acaba.

            CAM. —   (sorrindo). Andai lá; não sei se me dizeis tudo. Amigos sois, e não é impossível que também vós... Onde está a nossa gentil senhora D. Francisca de Aragão?

            D. MAN. —   Que tem?

            CAM. —   Vede: um simples nome vos faz estremecer de cólera. Mas, abrandai a cólera, que não sou vosso inimigo; mui ao contrário; amo-vos, e a ela também... e respeito-a muito. Um para o outro nascestes. Mas, adeus, faz-se tarde, vou ter com El-rei. (Sai pela direita).

 

CENA II

D. MANUEL DE PORTUGAL

 

            Este homem! Este homem!... Como se os versos dele, duros e insossos... (Vai à porta por onde Caminha saiu, e levanta o reposteiro.) Lá vai ele; vai cabisbaixo; rumina talvez alguma coisa. Que não sejam versos (Ao fundo aparecem D. António de Lima e D. Catarina de Ataíde).

 

CENA III

D. MANUEL DE PORTUGAL, D. CATARINA DE ATAÍDE, D. ANTÓNIO DE LIMA

            D. ANT. —  Que espreitais aí, senhor D. Manuel?

            D. MAN. —   Estava a ver o porte elegante de nosso Caminha. Não vades supor que era alguma dama. (Levanta o reposteiro.) Olhai, lá vai ele a desaparecer. Vai a El-rei.

            D. ANT. —  Também eu. Tu, não, minha boa Catarina. A rainha espera-vos. (D. CATARINA faz uma reverência e caminha para a porta da esquerda.) Ide, ide, minha gentil flor... (A D. MANUEL) Gentil, não a achais?

            D. MAN. —   Gentilíssima.

            D. ANT. —  Agradecei, Catarina.

            D. CAT. —  Agradeço; mas o certo é que o Senhor D. Manuel é rico de louvores...

            D. MAN. —   Eu podia dizer que a natureza é que foi convosco pródiga de graças; mas, não digo; seria repetir mal aquilo que só poetas podem dizer bem. (D. ANTÓNIO fecha o rosto.) Dizem que também sou poeta, é verdade; não sei; faço versos.  Adeus, Senhor D. António...  (Corteja-os e sai.  D. Catarina vai a entrar,  à esquerda.  D. ANTÓNIO detém-na.)

 

CENA IV

D. ANTÓNIO DE LIMA, D. CATARINA DE ATAíDE

 

            D. ANT. —  Ouviste aquilo?

            D. CAT. —  (parando). Aquilo?

            D. ANT. —  "Que só poetas podem dizer bem" foram as palavras dele. (D. Catarina aproxima-se.) Vês tu, filha? Tão divulgadas andam já essas coisas, que até se dizem nas barbas de teu pai!

            D. CAT. —  Senhor, um gracejo...

            D. ANT. —  (enfadando-se). Um gracejo injurioso, que eu não consinto, que não quero, que me dói... "Que só poetas podem dizer bem!" E que poeta! Pergunta ao nosso Caminha o que é esse atrevido, o que vale a sua poesia... Mas, que seja outra e melhor, não a quero para mim, nem para ti. Não te criei para entregar-te às mãos do primeiro que passa, e lhe dá na cabeça haver-te.

            D. CAT. —  (procurando moderá-lo). Meu pai...

            D. ANT. —  Teu pai, e teu senhor!

            D. CAT. —  Meu senhor e pai... juro-vos que... juro-vos que vos quero e muito... Por quem sois, não vos irriteis contra mim!

            D. ANT. —  Jura que me obedecerás.

            D. CAT. —  Não é essa a minha obrigação?

            D. ANT. —  Obrigação é, e a mais grave de todas. Olha-me bem, filha; eu amo-te como pai que sou. Agora, anda, vai.

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    [1] - O DESFECHO dos amores palacianos de Camões e de D. Catarina de Ataíde é o objeto da comédia, desfecho que deu lugar à subsequente aventura de África, e mais tarde à partida para a Índia, donde o poeta devia regressar um dia com a imortalidade nas mãos. Não pretendi fazer um quadro da corte de D. João III: nem sei se o permitiam as proporções mínimas do escrito e a urgência da ocasião1.  Busquei, sim, haver-me de maneira que o poeta fosse contemporâneo de seus amores, não lhe dando feições épicas, e, por assim dizer, póstumas.

 

Na primeira impressão escrevi uma nota, que reproduzi na segunda, acrescentando-lhe alguma coisa explicativa. Como na cena primeira se trata da anedota que motivou o epigrama de Camões ao Duque de Aveiro, disse eu ali que, posto se lhe não possa fixar data, usara desta por me parecer um curioso rasgo de costumes. E aduzi: "Engana-se, creio eu, o Sr. Teófilo Braga, quando afirma que ela só podia ter ocorrido, depois do regresso de Camões a Lisboa: alegando, para fundamentar essa opinião, que o título de Duque de Aveiro foi criado em 1557. Digo que se engana o ilustre escritor, porque eu encontro o Duque de Aveiro cinco anos antes, em 1552, indo receber, na qualidade de embaixador, a princesa D. Joana, noiva do príncipe D. João (veja Mem. e Doc., anexos aos Anais de D. João III, pp. 440 e 441); e, se Camões só em 1553 partiu para a Índia, não é impossível que o epigrama e o caso que lhe deu origem fossem anteriores".

 

Temos ambos razão, o Sr. Teófilo Braga e eu. Com efeito, o ducado de Aveiro só foi criado formalmente em 1557, mas o agraciado usava o título desde muito antes, por mercê de D. João III; é o que confirma a própria carta Régia de 30 de Agosto daquele ano, textualmente inserta na Hist. Geneal. de D. António Caetano de Sousa, que cita em abono da asserção o testemunho de Andrade, na Crónica Del-rei D. João III. Naquela mesma obra se lê (liv. IV, cap. V) que em 1551, na trasladação dos ossos del-rei D. Manuel estivera presente o Duque de Aveiro. Não é, pois, impossível que a anedota ocorresse antes da primeira ausência de CAMÕES. —  M. de A.

 

1 A peça foi escrita para as festas organizadas no Rio de Janeiro, pelo Gabinete Português de Leitura, no tricentenário de Camões e representada no Teatro de D. Pedro II, em 10 de Junho de 1880. Imprimiu-se a primeira vez na Revista Brasileira (1 de Julho de 1880) e a segunda em cem exemplares numerados e assinados pelo autor (edição Lombaerts, Rio de Janeiro, MDCCCLXXXI).

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15-03-2006