Machado de Assis, Lição de Botânica

Lição de Botânica

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CENA XIII

D. HELENA, BARÃO

            D. HEL. —  Cecília deitou tudo a perder... Não se pode fazer nada com crianças. Tanto pior para ela. (Pausa) Quem sabe se tanto melhor para mim? Pode ser. Aquele professor não é assaz velho, como convinha. Além disso, há nele um ar de diamante bruto, uma alma apenas coberta pela crosta científica, mas cheia de fogo e luz. Se eu viesse a arder ou cegar... (Levanta os ombros) Que ideia! Não passa de um urso, como titia lhe chama, um urso com patas de rosas.

            BARÃO (aproximando-se). Perdão, minha senhora. Ao atravessar a chácara, ia pensando no nosso acordo, e, sinto dizê-lo, mudei de resolução.

            D. HEL. —  Mudou?

            BARÃO — (aproximando-se). Mudei.

            D. HEL. —  Pode saber-se o motivo?

            BARÃO —  São três. O primeiro é o meu pouco saber... Ri-se?

            D. HEL. —  De incredulidade. O segundo motivo...

            BARÃO —  O segundo motivo é o meu génio áspero e despótico.

            D. HEL. —  Vejamos o terceiro.

            BARÃO —  O terceiro é a sua idade. Vinte e um anos, não?

            D. HEL. —  Vinte e dois.

            BARÃO —  Solteira?

            D. HEL. —  Viúva.

            BARÃO —  Perpetuamente viúva?

            D. HEL. —  Talvez.

            BARÃO —  Nesse caso, quarto motivo: a sua viuvez perpétua.

            D. HEL. —  Conclusão: todo o nosso acordo está desfeito.

            BARÃO —  Não digo que esteja; só por mim não o posso romper. V. Exª porém avaliará as razões que lhe dou, e decidirá se ele deve ser mantido.

            D. HEL. —  Suponha que respondo afirmativamente.

            BARÃO —  Paciência! obedecerei.

            D. HEL. —  De má vontade?

            BARÃO —  Não; mas com grande desconsolação.

            D. HEL. —  Pois, Sr. Barão, não desejo violentá-lo; está livre.

            BARÃO —  Livre, e não menos desconsolado.

            D. HEL. —  Tanto melhor!

            BARÃO —  Como assim?

            D. HEL. —  Nada mais simples: vejo que é caprichoso e incoerente.

            BARÃO —  Incoerente, é verdade.

            D. HEL. —  Irei procurar outro mestre.

            BARÃO —  Outro mestre! Não faça isso.

            D. HEL. —  Por quê?

            BARÃO —  Porque... (Pausa) V. Exª é inteligente bastante para dispensar mestres.

            D. HEL. —  Quem lho disse?

            BARÃO —  Adivinha-se.

            D. HEL. —  Bem; irei queimar os olhos nos livros.

            BARÃO —  Oh! seria estragar as mais belas flores do mundo!

            D. HEL. —  (sorrindo). Mas então nem mestres nem livros?

            BARÃO —  Livros, mas aplicação moderada. A ciência não se colhe de afogadilho; é preciso penetrá-la com segurança e cautela.

            D. HEL. —  Obrigada. (Estendendo-lhe a mão). E visto que me recusa as suas lições, adeus.

            BARÃO —  Já!

            D. HEL. —  Pensei que queria retirar-se.

            BARÃO —  Queria e custa-me. Em todo o caso, não desejava sair sem que V. EXª me dissesse francamente o que pensa de mim. Bem ou mal?

            D. HEL. —  Bem e mal.

            BARÃO —  Pensa então...

            D. HEL. —  Penso que é inteligente e bom, mas caprichoso e egoísta.

            BARÃO —  Egoísta!

            D. HEL. —  Em toda a força de expressão. (Senta-se) Por egoísmo, científico, é verdade, - opõe-se às afeições de seu sobrinho; por egoísmo, recusa-me as suas lições. Creio que o Sr. Barão nasceu para mirar-se no vasto espelho da natureza, a sós consigo, longe do mundo e seus enfados. Aposto que, desculpe a indiscrição da pergunta, aposto que nunca amou?

            BARÃO —  Nunca.

            D. HEL. —  De maneira que nunca uma flor teve a seus olhos outra aplicação, além do estudo?

            BARÃO —  Engana-se.

            D. HEL. —  Sim?

            BARÃO —  Depositei algumas coroas de goivos no túmulo de minha mãe.

            D. HEL. —  Ah!

            BARÃO —  Há em mim alguma coisa mais do que eu mesmo. Há a poesia das afeições por baixo da prova científica. Não a ostento, é verdade; mas sabe V. Exª o que tem sido a minha vida? Um claustro. Cedo perdi o que havia de mais caro: a família. Desposei a ciência, que me tem servido de alegrias, consolações e esperanças. Deixemos, porém, tão tristes memórias...

            D. HEL. —  Memórias de homem; até aqui eu só via o sábio.

            BARÃO —  Mas o sábio reaparece e enterra o homem. Volto à vida vegetativa... se me é lícito arriscar um trocadilho em português, que eu não sei bem se o é. Pode ser que não passe de aparência. Todo eu sou aparências, minha senhora, aparências de homem, de linguagem e até de ciência...

            D. HEL. —  Quer que o elogie?

            BARÃO —  Não; desejo que me perdoe.

            D. HEL. —  Perdoar-lhe o quê?

            BARÃO —  A incoerência de que me acusava há pouco.

            D. HEL. —  Tanto perdoo que o imito. Mudo igualmente de resolução, e dou de mão ao estudo.

            BARÃO —  Não faça isso!

            D. HEL. —  Não lerei uma só linha de botânica, que é a mais aborrecível ciência do mundo.

            BARÃO —  Mas o seu talento...

            D. HEL. —  Não tenho talento; tinha curiosidade.

            BARÃO —  É a chave do saber.

            D. HEL. —  Que monta isso? A porta fica tão longe!

            BARÃO —  É certo, mas o caminho é de flores.

            D. HEL. —  Com espinhos.

            BARÃO —  Eu lhe quebrarei os espinhos.

            D. HEL. —  De que modo?

            BARÃO —  Serei seu mestre.

            D. HEL. —  (levanta-se). Não! Respeito os seus escrúpulos. Subsistem, penso eu, os motivos que alegou. Deixe-me ficar na minha ignorância.

            BARÃO —  É a última palavra de V. Exª?

            D. HEL. —  Última.

            BARÃO (com ar de despedida). Nesse caso... Aguardo as suas ordens.

            D. HEL. —  Que se não esqueça de nós.

            BARÃO —  Crê possível que me esquecesse?

            D. HEL. —  Naturalmente: um conhecimento de vinte minutos.

            BARÃO —  O tempo importa pouco ao caso. Não me esquecerei nunca mais destes vinte minutos, os melhores da minha vida, os primeiros que hei realmente vivido. A ciência não é tudo, minha senhora. Há alguma coisa mais, além do espírito, alguma coisa essencial ao homem, e...

            D. HEL. —  Repare, Sr. Barão, que está falando à sua ex-discípula.

            BARÃO —  A minha ex-discípula tem coração, e sabe que o mundo intelectual é estreito para conter o homem todo; sabe que a vida moral é uma necessidade do ser pensante.

            D. HEL. —  Não passemos da botânica à filosofia, nem tanto à terra, nem tanto ao céu. O que o Sr. Barão quer dizer, em boa e mediana prosa, é que estes vinte minutos de palestra não o enfadaram de todo. Eu digo a mesma coisa. Pena é que fossem só vinte minutos, e que o Sr. Barão volte às suas amadas plantas; mas é força ir ter com elas, não quero tolher-lhe os passos. Adeus! (Inclinando-se como a despedir-se).

            BARÃO (cumprimentando). Minha senhora! (Caminha até à porta e pára). Não transporei mais esta porta?

            D. HEL. —  Já a fechou por suas próprias mãos.

            BARÃO —  A chave está nas suas.

            D. HEL. —  (olhando para as mãos). Nas minhas?

            BARÃO (aproximando-se). Decerto.

            D. HEL. —  Não a vejo.

            BARÃO —  É a esperança. Dê-me a esperança de que...

            D. HEL. —  (depois de uma pausa). A esperança de quê...

            BARÃO —  A esperança de que... a esperança de...

            D. HEL. —  (que tem tirado uma flor de um vaso). Creio que lhe será mais fácil definir esta flor.

            BARÃO —  Talvez.

            D. HEL. —  Mas não é preciso dizer mais: adivinhei-o.

            BARÃO (alvoroçado). Adivinhou?

            D. HEL. —  Adivinhei que quer a todo o transe ser meu mestre.

            BARÃO (friamente). É isto.

            D. HEL. —  Aceito.

            BARÃO —  Obrigado.

            D. HEL. —  Parece-me que ficou triste?

            BARÃO —  Fiquei, pois que só adivinhou metade do meu pensamento. Não adivinhou que eu... por que o não direi? di-lo-ei francamente... Não adivinhou que...

            D. HEL. —  Que...

            BARÃO (depois de alguns esforços para falar). Nada... nada...

            D. LEO. —  (dentro). Não admito!

 

CENA XIV

D. HELENA, BARÃO, D. LEONOR, D. CECÍLIA

 

            D. CEC. —  (entrando pelo fundo com D. LEONOR). Mas titia...

            D. LEO. —  Não admito, já disse! Não te faltam casamentos, (Vendo o BARÃO) ainda aqui!

            BARÃO —  Ainda e sempre, minha senhora.

            D. LEO. —  Nova originalidade.

            BARÃO —  Oh! não! A coisa mais vulgar do mundo. Reflecti, minha senhora, e venho pedir para meu sobrinho a mão de sua encantadora sobrinha. (Gesto de CECÍLIA).

            D. LEO. —  A mão de Cecília!

            D. CEC. —  Que ouço!

            BARÃO —  O que eu lhe pedia há pouco era uma extravagância, um acto de egoísmo e violência, além de descortesia que era, e que V. Exª me perdoou, atendendo à singularidade das minhas maneiras. Vejo tudo isso agora...

            D..LEO. Não me oponho ao casamento, se for do agrado de Cecília.

            D. CEC. —  (baixo a D. HELENA). Obrigada! Foste tu...

            D. LEO. —  Vejo que o Sr. Barão reflectiu.

            BARÃO —  Não foi só reflexão, foi também resolução.

            D. LEO. —  Resolução?

            BARÃO (gravemente). Minha senhora, atrevo-me a fazer outro pedido.

            D. LEO. —  Ensinar botânica a Helena! Já me deu vinte e quatro horas para responder.

            BARÃO —  Peço-lhe mais do que isso; V. Exª que é, por assim dizer, irmã mais velha de sua sobrinha, pode intervir junto dela para... (Pausa).

            D. LEO. —  Para...

            D. HEL. —  Acabo eu. O que o Sr. Barão deseja é a minha mão.

            BARÃO —  Justamente!

            D. LEO (espantada). Mas... Não compreendo nada.

            BARÃO —  Não é preciso compreender; basta pedir.<

            D. HEL. —  Não basta pedir; é preciso alcançar.

            BARÃO —  Não alcançarei?

            D. HEL. —  Dê-me três meses de reflexão.

            BARÃO —  Três meses é a eternidade.

            D. HEL. —  Uma eternidade de noventa dias.

            BARÃO —  Depois dela, a felicidade ou o desespero?

            D. HEL (estendendo-lhe a mão). Está nas suas mãos a escolha. (A D. LEONOR) Não se admire tanto, titia; tudo isto é botânica aplicada.

FIM

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15-03-2006