Machado de Assis, Lição de Botânica

Lição de Botânica

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CENA VI

D. LEONOR, BARÃO, D. HELENA

 

            D. HEL. —  (entra e pára). Ah!

            D. LEO. —  Entra, não é assunto reservado. O Sr. Barão de Kernoberg... (Ao BARÃO) É minha sobrinha Helena. (A HELENA) Aqui o Sr. Barão vem pedir que o não perturbemos no estudo da botânica. Diz que seu sobrinho Henrique está destinado a um lugar honroso na ciência, e... conclua. Sr. BARÃO —

            BARÃO —  Não convém que se case, a ciência exige o celibato.

            D. LEO. —  Ouviste?

            D. HEL. —  Não compreendo...

            BARÃO —  Uma paixão louca de meu sobrinho pode impedir que... Minhas senhoras, não desejo roubar-lhes mais tempo... Confio em V. Exª, minha senhora... Ser-lhe-ei eternamente grato. Minhas senhoras. (Faz uma grande cortesia e sai).

 

CENA VII

D. HELENA, D. LEONOR

 

            D. LEO. —  (rindo). Que urso!

            D. HEL. —  Realmente.

            D. LEO. —  Perdoo-lhe em nome da ciência. Fique com as suas ervas, e não nos aborreça mais, nem ele nem o sobrinho.

            D. HEL. —  Nem o sobrinho?

            D. LEO. —  Nem o sobrinho, nem o criado, nem o cão, se o houver, nem coisa nenhuma que tenha relação com a ciência. Enfada-te? Pelo que vejo, entre o Henrique e a Cecília há tal ou qual namoro?

            D. HEL. —  Se promete segredo... há.

            D. LEO. —  Pois acabe-se o namoro.

            D. HEL. —  Não é fácil. O Henrique é um perfeito cavalheiro; ambos são dignos um do outro. Por que razão impediremos que dois corações...

            D. LEO. —  Não sei de corações, não hão-de faltar casamentos a Cecília.

            D. HEL. —  Certamente que não, mas os casamentos não se improvisam nem se projectam na cabeça; são actos do coração, que a Igreja santifica. Tentemos uma coisa.

            D. LEO. —  Que é?

            D. HEL. —  Reconciliemo-nos com o BARÃO —

            D. LEO. —  Nada, nada.

            D. HEL. —  Pobre Cecília!

            D. LEO. —  É ter paciência, sujeite-se às circunstâncias... (A D. CECÍLIA que entra). Ouviste?

            D. CEC. —  O quê, titia?

            D. LEO. —  Helena te explicará tudo. (A D. HELENA, baixo) Tira-lhe todas as esperanças. (Indo-se) Que urso! que urso!

 

CENA VIII

D. HELENA, D. CECÍLIA

 

            D. CEC. —  Que aconteceu?

            D. HEL. —  Aconteceu... (Olha com tristeza para ela).

            D. CEC. —  Acaba.

            D. HEL. —  Pobre Cecília!

            D. CEC. —  Titia recusou a minha mão?

            D. HEL. —  Qual! O Barão é que se opõe ao casamento.

            D. CEC. —  Opõe-se!

            D. HEL. —  Diz que a ciência exige o celibato do sobrinho. (D. CECÍLIA encosta-se a uma cadeira) Mas, sossega; nem tudo está perdido; pode ser que o tempo...

            D. CEC. —  Mas quem impede que ele estude?

            D. HEL. —  Mania de sábio. Ou então, evasiva do sobrinho.

            D. CEC. —  Oh! não! é impossível; Henrique é uma alma angélica! Respondo por ele. Há de certamente opor-se a semelhante exigência...

            D. HEL. —  Não convém precipitar as coisas. O barão pode zangar-se e ir-se embora.

            D. CEC. —  Que devo então fazer?

            D. HEL. —  Esperar. Há tempo para tudo.

            D. CEC. —  Pois bem, quando Henrique vier...

            D. HEL. —  Não vem, titia resolveu fechar a porta a ambos.

            D. CEC. —  Impossível!

            D. HEL. —  Pura verdade. Foi uma exigência do BARÃO.

            D. CEC. —  Ah! conspiram todos contra mim. (Põe as mãos na cabeça) Sou muito infeliz! Que mal fiz eu a essa gente? Helena, salva-me! ou eu mato-me! Anda, vê se descobres um meio...

            D. HEL. —  (indo sentar-se). Que meio?

            D. CEC. —  (acompanhando-a). Um meio qualquer que não nos separe!

            D. HEL. —  (sentada). Há um.

            D. CEC. —  Qual? Diz.

            D. HEL. —  Casar.

            D. CEC. —  Oh! não zombes de mim! Tu também amaste, Helena; deves respeitar estas angústias. Não tornar a ver o meu Henrique é uma ideia intolerável. Anda, minha irmãzinha. (Ajoelha-se inclinando o corpo sobre o regaço de D. HELENA) Salva-me! És tão inteligente, que hás-de achar por força alguma ideia; anda, pensa!

            D. HEL. —  (beijando-lhe a testa). Criança! supões que seja coisa tão fácil assim?

            D. CEC. —  Para ti há de ser fácil.

            D. HEL. —  Lisonjeira! (Pega maquinalmente no livro deixado pelo BARÃO sobre a cadeira) A boa vontade não pode tudo; é preciso... (Tem aberto o livro) Que livro é este?... Ah! talvez do BARÃO —

            D. CEC. —  Mas vamos... continua.

            D. HEL. —  Isto há de ser sueco... trata talvez de botânica. Sabes sueco?

            D. CEC. —  Helena!

            D. HEL. —  Quem sabe se este livro pode salvar tudo? (Depois de um instante de reflexão) Sim, é possível. Tratará de botânica?

            D. CEC. —  Trata.

            D. HEL. —  Quem te disse?

            D. CEC. —  Ouvi dizer ao barão, trata das...

            D. HEL. —  Das...

            D. CEC. —  Das gramíneas.

            D. HEL. —  Só das gramíneas?

            D. CEC. —  Não sei, foi premiado pela Academia de Estocolmo.

            D. HEL. —  De Estocolmo. Bem. (Levanta-se).

            D. CEC. —  (levantando-se). Mas que é?

            D. HEL. —  Vou mandar-lhe o livro...

            D. CEC. —  Que mais?

            D. HEL. —  Com um bilhete.

            D. CEC. —  (olhando para a direita). Não é preciso; lá vem ele.

            D. HEL. —  Ah!

            D. CEC. —  Que vais fazer?

            D. HEL. —  Dar-lhe o livro.

            D. CEC. —  O livro, e...

            D. HEL. —  E as despedidas.

            D. CEC. —  Não compreendo.

            D. HEL. —  Espera e verás.

            D. CEC. —  Não posso encará-lo; adeus.

            D. HEL. —  Cecília! (D. CECÍLIA sai).

 

CENA IX

D. HELENA, BARÃO

 

            BARÃO — (à porta). Perdão, minha senhora, eu trazia um livro há pouco...

            D. HEL. —  (com o livro na mão). Será este?

            BARÃO (caminhando para ela). Justamente.

            D. HEL. —  Escrito em sueco, penso eu...

            BARÃO —  Em sueco.

            D. HEL. —  Trata naturalmente de botânica.

            BARÃO —  Das gramíneas.

            D. HEL. —  (com interesse). Das Gramíneas!

            BARÃO —  De que se espanta?

            D. HEL. —  Um livro publicado...

            BARÃO —  Há quatro meses.

            D. HEL. —  Premiado pela Academia de Estocolmo?

            BARÃO (admirado).É verdade. Mas...

            D. HEL. —  Que pena que eu não saiba sueco!

            BARÃO —  Tinha notícia do livro?

            D. HEL. —  Certamente. Ando ansiosa por lê-lo.

            BARÃO —  Perdão, minha senhora. Sabe botânica?

            D. HEL. —  Não ouso dizer que sim, estudo alguma coisa e leio quando posso. É ciência profunda e encantadora.

            BARÃO — (com calor). É a primeira de todas.

            D. HEL. —  Não me atrevo apoiá-lo, porque nada sei das outras, e poucas luzes tenho de botânica, apenas as que pode dar um estudo solitário e deficiente. Se a vontade suprisse o talento...

            BARÃO —  Por que não? Le génie, c'est la patience, dizia Buffon.

            D. HEL. —  (sentando-se). Nem sempre.

            BARÃO —  Realmente, estava longe de supor que, tão perto de mim, uma pessoa tão distinta dava algumas horas vagas ao estudo da minha bela ciência.

            D. HEL. —  Da sua esposa.

            BARÃO — (sentando-se). É verdade. Um marido pode perder a mulher, e se a amar deveras, nada a compensará neste mundo, ao passo que a ciência não morre... Morremos nós, ela sobrevive com todas as graças do primeiro dia, ou ainda maiores, porque cada descoberta é um encanto novo.

            D. HEL. —  Oh! tem razão!

            BARÃO —  Mas, diga-me V. Exª: tem feito estudo especial das gramíneas?

            D. HEL. —  Por alto... por alto...

            BARÃO —  Contudo, sabe que a opinião dos sábios não admitia o perianto... (D. HELENA faz sinal afirmativo) Posteriormente reconheceu-se a existência do perianto. (Novo gesto de D. HELENA) Pois este livro refuta a segunda opinião.

            D. HEL. —  Refuta o perianto?

            BARÃO —  Completamente.

            D. HEL. —  Acho temeridade.

            BARÃO —  Também eu supunha isso. Li-o, porém, e a demonstração é claríssima. Tenho pena que não possa lê-lo. Se me dá licença, farei uma tradução portuguesa e daqui a duas semanas...

            D. HEL. —  Não sei se deva aceitar...

            BARÃO —  Aceite; é o primeiro passo para me não recusar segundo pedido.

            D. HEL. —  Qual?

            BARÃO —  Quero me deixe acompanhá-la em seus estudos, repartir o pão do saber com V. Exª. É a primeira vez que a fortuna me depara uma discípula. Discípula é, talvez, ousadia da minha parte...

            D. HEL. —  Ousadia, não; eu sei muito pouco; posso dizer que não sei nada.

            BARÃO —  A modéstia é o aroma do talento, como o talento é o esplendor da graça. V. Exª possui tudo isso. Posso compará-la à violeta, Viola odorata de Lineu, que é formosa e recatada...

            D. HEL. —  (interrompendo). Pedirei licença à minha tia. Quando será a primeira lição?

            BARÃO —  Quando quiser. Pode ser amanhã. Tem certamente notícia da anatomia vegetal...

            D. HEL. —  Notícia incompleta.

            BARÃO —  Da fisiologia?

            D. HEL. —  Um pouco menos.

            BARÃO —  Nesse caso, nem a taxonomia, nem a fitografia...

            D. HEL. —  Não fui até lá.

            BARÃO —  Mas há-de ir... Verá que mundos novos se lhe abrem diante do espírito. Estudaremos, uma por uma, todas as famílias, as orquídeas, as jasmíneas, as rubiáceas, as oleáceas, as narcíseas, as umbelíferas, as...

            D. HEL. —  Tudo, desde que se trata de flores.

            BARÃO —  Compreendo: amor de família.

            D. HEL. —  Bravo! um cumprimento!

            BARÃO (folheando o livro). A ciência os permite.

            D. HELENA (à parte). O mestre é perigoso. (Alto) Tinham-me dito exactamente o contrário; disseram-se que o Sr. Barão era... não sei como diga... era...

            BARÃO —  Talvez um urso.

            D. HEL. —  Pouco mais ou menos.

            BARÃO —  E sou.

            D. HEL. —  Não creio.

            BARÃO —  Por que não crê?

            D. HEL. —  Porque o vejo amável.

            BARÃO —  Suportável apenas.

            D. HEL. —  Demais, imaginava-o uma figura muito diferente, um velho macilento, melenas caídas, olhos encovados.

            BARÃO —  Estou velho, minha senhora.

            D. HEL. —  Trinta e seis anos.

            BARÃO —  Trinta e nove.

            D. HEL. —  Plena mocidade.

            BARÃO —  Velho para o mundo. Que posso eu dar ao mundo senão a minha prosa científica?

            D. HEL. —  Só uma coisa lhe acho inaceitável.

            BARÃO —  Que é?

            D. HEL. —  A teoria de que o amor e a ciência são incompatíveis.

            BARÃO —  Oh! Isso...

            D. HEL. —  Dá-se o espírito à ciência e o coração ao amor. São territórios diferentes, ainda que limítrofes.

            BARÃO —  Um acaba por anexar o outro.

            D. HEL. —  Não creio.

            BARÃO —  O casamento é uma bela coisa, mas o que faz bem a uns, pode fazer mal a outros. Sabe que Mafoma não permite o uso do vinho aos seus sectários. Que fazem os turcos? Extraem o suco de uma planta, da família das papaveráceas, bebem-no, e ficam alegres. Esse licor, se nós o bebêssemos, matar-nos-ia. O casamento, para nós, é o vinho turco.

            D. HEL. —  (erguendo os ombros). Comparação não é argumento. Demais, houve e há sábios casados.

            BARÃO —  Que seriam mais sábios se não fossem casados.

            D. HEL. —  Não fale assim. A esposa fortifica a alma do sábio. Deve ser um quadro delicioso para o homem que despende as suas horas na investigação da natureza, fazê-lo ao lado da mulher que o ampara e anima, testemunha de seus esforços, sócia de suas alegrias, atenta, dedicada, amorosa. Será vaidade de sexo? Pode ser, mas eu creio que o melhor prémio do mérito é o sorriso da mulher amada. O aplauso público é mais ruidoso, mas muito menos tocante que a aprovação doméstica.

            BARÃO — (depois de um instante de hesitação e luta). Falemos da nossa lição.

            D. HEL. —  Amanhã, se minha tia consentir. (Levanta-se) Até amanhã, não?

            BARÃO —  Hoje mesmo, se o ordenar.

            D. HEL. —  Acredita que não perderei o tempo?

            BARÃO —  Estou certo que não.

            D. HEL. —  Serei académica de Estocolmo?

            BARÃO —  Conto que terei essa honra.

            D. HEL. —  (cortejando). Até amanhã.

            BARÃO — (O mesmo) Minha senhora! (D. HELENA sai pelo fundo, à esquerda, o BARÃO caminha para a direita, mas volta para buscar o livro que ficara sobre a cadeira ou sofá).

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15-03-2006