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Arnold Van
Gennep, que citei em 1929 na Etnografia da Região do Vouga e
tive a honra de conhecer pessoalmente em Paris num
Congresso ali realizado em 1931, adverte-nos, com o acerto
próprio da sua autoridade: «Se o folclore se ocupa dos
factos antigos, históricos ou arqueológicos, é apenas
acessoriamente, porque cada facto actual tem antecedentes
que é preciso tentar discernir para compreender. Mas o que
interessa ao folclore é o facto vivo, directo; é, se assim
se quer, a biologia sociológica, como faz a etnografia.
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É muito
útil recolher nos museus os objectos em uso nas diversas
províncias, mas isso não é mais do que um acessório do
folclore, a sua parte morta. O que nos interessa é o emprego
desses objectos por seres actualmente vivos, os costumes
verdadeiramente executados sob os nossos olhos e a
investigação das condições complexas. sobretudo psíquicas,
desses costumes. »
Quando fui solicitado pela Comissão da Emissora Nacional, pela
Casa das Beiras e, muito particularmente, por queridos e
distintos amigos, para organizar a representação aveirense
numa parada em Lisboa e num sarau beirão no Coliseu dos
Recreios, ali realizados há uns bons vinte anos, não perdi de
vista o critério atrás referido; aliás, tivera já o ensejo de
insistir no valor da exibição da canção, da dança, do costume
e do trajo regionais coevos, sem prejuízo da conveniente e
interessante retrospecção, quando verídica e pertinente.
A
representação aveirense em Lisboa limitou-se à cidade,
excluindo todo o elemento rural e periférico.
Sabido que
o folclore das cidades e centros urbanos é escasso e difícil
de recolher, porque a vida popular se mescla ali dos costumes
cosmopolitas e perde o carácter local; e sabendo-se que o
vestuário da nossa tricana tanto comparticipava, já então, da
moda senhoril, que só o xaile, em declínio e reduzido a quase
nada, diferençava a tricana da senhora; sendo inegável que a
música e a dança em voga em Aveiro, desde há muitíssimos.
anos, nada tinham de classicismo popular, antes revestiam
formas e ritmos de sabor italiano e dos géneros artificiosos
da opereta, do rancho e da revista teatral – pode avaliar-se a
responsabilidade que assumi ao aceitar o encargo de
organizador que me foi cometido. |
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Olinda dos Santos
Fartura - Aveiro |
As outras cidades do País iriam figurar em Lisboa não pela
representação citadina mas por cobrirem com o seu nome os
ranchos das aldeias da sua proximidade e influência. Aveiro
jogava uma cartada da sua fama e do prestígio dos seus
responsáveis, e perguntava-se: – terá o povo aveirense em si
próprio qualidades de realce capazes de, com os seus aspectos
actuais e tão modernos de arte e vestuário, marcar uma posição
no grande conjunto folclórico, ou iremos presenciar um
fracasso desolador pelo anodinismo e actualismo desengraçado e pedante
da sua exibição?
A minha fé
– compartilhada por outros elementos cultos do nosso meio – no
valor da graça e singularidade do nosso povo, era absoluta.
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A feição
peculiar, embora actual e muito moderna, da indumentária e da
arte do povo aveirense, tinha de impressionar Lisboa. E, de
facto, Lisboa coroou de aplausos a expressão popular da cidade
de Aveiro naquele grande cortejo do Campo Grande e no sarau
folclórico da Casa das Beiras.
O caminho
ficara aberto para outros cometimentos: no curto espaço de
menos de um mês, o xaile aveirense inundava Lisboa de alegria
e arrancava ao público da capital as maiores ovações que a
arte provinciana poderia obter, enchendo de espanto o País
inteiro que lhe lê os relatos.
E foi o
xaile aveirense quem alcançou essa vitória. Foi ele o talismã
que converteu a desconfiança em simpatia, a indiferença em
interesse, a curiosidade em aplauso, a admiração em
entusiasmo.
Lisboa
ignorava-o inteiramente. O que Lisboa conhecia era o xaile
prosaico e grosseiro, o xaile humilde, mas desengraçado, dos
seus bairros pobres e escuros, o xaile-agasaIho e
tapa-misérias de todo o Portugal.
Mas o xaile
fino da tricana de Aveiro, esse nunca Lisboa o vira colocado
com a elegância suprema das horas solenes aos ombros das
nossas raparigas. E, desde que o viu, passeando-se com o seu
donaire inigualável, que era ao mesmo tempo ostentoso e
sóbrio, vistoso e discreto, Lisboa compreendeu Aveiro e achou
toda a graça do nossa cidadezinha, pela beleza do seu recanto
e pelos dotes dos seus habitantes.
E a gente
culta e o grande público da capital viram então no xaile
aveirense um símbolo – e a esse símbolo concederam as honras
dum grande triunfo.
Por esse tempo – há vinte anos – ainda podíamos dizer: já não
é agasalho, nem conforto, nem peça útil, esse xaile levíssimo
e quase transparente que as nossas tricanas usam. É arte, arte
delas, arte de indumentária popular, arte aveirense! E,
socialmente, é um mero símbolo da sua popularidade, da sua
condição, da sua classe, da humildade da sua ascendência. Mas
é ao mesmo tempo a marca da terra cujo povo o usa, e a prova
da delicadeza das mãos que tão bem o sabem compor.
Na gracilidade das filhas revê-se a gracilidade que tiveram as
mães, a virtude dos progenitores, o bom gosto das famílias, a
sensibilidade de quem educou. É um espelho de beleza que
reflecte a estética de um povo, é o melhor documento da
elegância física e moral da grei aveirense. Porque xailes
iguais podem pôr às costas todas as mulheres de Portugal, mas
o que nenhumas outras mulheres conseguem é deixá-lo cair,
apanhá-lo, dispô-lo e utilizá-lo com as linhas, o ar, a graça
das tricanas de Aveiro, que nele fizeram o mais distinto e
fino atavio da feminilidade popular portuguesa.
Essa maneira de pôr o xaile, aliada ao tipo feminino e ao
carácter das nossas raparigas, é a nota característica e
inconfundível do povo aveirense.
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Hoje,
relegado o xaile para o arcaz das coisas velhas, pela força
aglutinadora e parificante das exigências duma técnica que
nada respeita, da moda que galga fronteiras e nivela os gostos
e confunde origens e classes – o xaile é apenas uma saudosa
lembrança da graça de antanho, dum tipo feminino que deixou de
se afirmar, para se confundir na multidão das gentes
incaracterizadas.
Alberto
Souto
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