Diz-se que foi Osoüs, salvando-se na água sobre
um tronco flutuante do incêndio que devorava as florestas de
Tiro, quem inventou o primeiro barco...
Transmitiu-nos esta lenda, recolhida dois mil
anos antes de Cristo, o fenício Shanchoniaton que depois nos
fala da jangada, essa engenhosa e elementar aliança de
troncos, tão natural, tão útil e tão fácil, que atravessou os
séculos, perdurando até nós. Não falando nas jangadas, que
ainda hoje se formam nos rios para o cómodo transporte das
madeiras que descem as correntes, como sucede no Neva e no
Volga e, entre nós mesmos no portuguesíssimo Vouga, essa
associação de lenhos tem na história trágico-marítima uma
crónica de inúmeros salvatérios, infinitas emoções e não
poucos horrores.
Quem não conhece o Radeau de la Méduse,
o famoso quadro de Géricault, que na parede da Salle des
États do Museu do Louvre, clama o último socorro e
vislumbra a última esperança daquele punhado de míseros?
Já na Odisseia, o grande Ulisses,
arrolado sem barco nem companheiros à ilha da bela Calipso, encontrou na jangada, que a própria Ninfa, enamorada e triste,
lhe ajudou a construir, o meio de continuar a sua viagem dos
mares em demanda da Grécia, afrontando a cólera de Neptuno, e
o ódio de Palas.
Perfeita, como no-la mostra o poema, fabricada
com madeiras preciosas, afeiçoadas pelo ferro das alfaias
−
pinheiro que tocava as nuvens, amieiro e choupo da floresta
antiga, bem secas pelo calor do sol e pelo número dos anos − e
seu aparelho complicado, a jangada, descrita por Homero, era
um simples recurso de momento e não já a última palavra da
construção nos tempos em que a arte naval se gloriava com as
fortes e impávidas naus da expedição de Tróia e das navegações
famosas dos Helenos.
E quando o pio Eneias aporta às praias do Lácio
e promove aquela regata que o estro de Vergílio tão vivamente
nos pinta nos eternamente belos versos da sua Eneida,
os navios eram já obra adiantada de navegantes cultos.
Quem sabe lá, pois, a vez primeira que o homem,
deixando a caverna, a terra, a praia, atraído pelo correr da
veia, pela serenidade do lago, pelo rolar da onda, se
aventurou sobre as águas, agarrado a um pedaço de caule
secular ou a um ramo gigantesco esgalhado pela tempestade e de
pé, sobre o arremedo dum barco, descobriu a vara, ou maquinou
o remo?
E quem sabe lá se foi a fascinação de um
prazer, o aguilhão de uma desgraça, a simples imitação ou uma
pura conveniência o que determinou a descoberta maravilhosa e
o invento magnífico?...
A Ria de Aveiro, tal como hoje a conhecemos,
pertence na história da Terra a uma época tão recente, tão
nova é ainda, que não foi por certo no remanso dos seus
canais, nem nas areias da sua costa que o homem soltou os voos
às suas faculdades de marinheiro.
Mas os hallrirtnings da Suécia,
monumentos pré-históricos da idade da pedra e da idade do
ferro, os gaulos fenícios, os navios de bambu e junco
dos egípcios, e outros tipos históricos dos gregos e dos
romanos, mostram-nos os venerandos avós dos nossos barcos que,
não
/ 31 /
sei porque misteriosa reminiscência, nos lembram − como nos
traços ancestrais das crianças as feições dos antepassados −
essas formas caprichosas dos bateis que subiam o Nilo ou que
por aqui traziam mercadores fenícios, colonos gregos ou
piratas normandos.
Mas seja o que tiver sido! O caso é que os
barcos da Ria têm hoje formas elegantes, características
inconfundíveis, que demonstram ou uma adaptação feliz do talhe
bizarro de navios que no alvorecer da nossa história por aqui
passaram, ou uma criação pitoresca e hábil de construtores
artistas que viveram e se sucederam nas margens deste
estuário.
--o-O-o--
As fisionomias dos barcos da Ria, apesar de
diversas, como diversos são os fins a que se destinam e os
trabalhos em que se empregam, têm um ar flagrante de família.
As suas linhas são, em todos eles, harmónicas, proporcionais e
delicadas. Um artista que fosse chamado para embelezar a obra
do construtor, não delinearia melhor, nada teria a corrigir,
porque nestes barcos não há que modificar, há apenas que
copiar bem, sem alterar em coisa alguma, o seu perfil airoso,
gracioso e cheio de carácter.
Desde pequeno que conheço esta Ria, os seus
esteiros e as suas cales, as suas belezas e os seus perigos,
desde a Vagueira à Bestida e ao Rio Novo do Príncipe, da ponte
da Água Fria ao Eiró, da Malhada de S. Pedro à boca da Barra.
Os seus barcos, então, são-me familiares;
conheço-lhes os nomes como os dos companheiros do colégio e
amigos de infância; sei-lhes os destinos, as formas, os
apetrechos; os remos, as velas, as figuras!
Quantas vezes, ao vê-los passar, eu tenho
pensado porque é que são assim, porque é que assim se geraram
no correr do tempo, vogando de um a outro extremo desta
esplêndida bacia de águas bonançosas e dolentes. E muitas
vezes pensei nas alterações que poderiam sofrer, sem lhes
prejudicar nem a graça que os reveste nem a utilidade que os
domina.
Em criança, desejava quebrar aos moliceiros a
proa atrevida e provocante, arrancar-lhes aquele bico
insolente que nos lança um desafio quando por nós passa,
erguer-lhes o bordo quase submerso, baixar-lhes mais aquele
leme tão alto.
Foram passando por mim os anos e eu conhecendo
uma infinidade de modelos de barcos, do tronco cavado à
gôndola, do Tabelo ao center-board; hoje cada vez me
convenço
/ 32 / mais que os barcos da Ria de Aveiro são estes
que a gente por aí vê, necessariamente, no seu talhe, nas suas
formas, nas suas linhas, nas suas fisionomias, nas suas
práticas aplicações. Pode introduzir-se aqui um barco de
recreio exótico e estranho. Não se pode modificar de maneira
nenhuma, nem substituir seja por que modelo for, o barco que a
Ria gerou, impondo-lhe uma estética natural e inconfundível.
--o-O-o--
É por isso que me revolta e irrita o barco mal
feito que sulca, por excepção, as águas da Ria.
Mas neste ponto, a minha sensibilidade não é
superior á do homem rude, pescador, mercantel ou moliceiro,
que, ao ver um barco mal lançado, logo o condena e escarnece,
anematisando o mestre que não soube dar a esse casco a
expressiva elegância da sua espécie.
E entre as espécies não há confusão possível.
Tenho visto no Tejo, no Douro, no Sado e no Mondego, nas
margens da Galiza e nos abrigos do Cantábrico, no Adour, no
Sena, no Reno, nos canais da França e nos lagos suíços
embarcações de tráfego fluvial que são um misto de formas,
anódinos, híbridos, vadios de mil profissões, mestiços de cem
raças diferentes e inclassificáveis.
Na Ria de Aveiro, não. Cada profissão tem o seu
tipo.
O arrancador de algas tem o moliceiro.
O que transporta o sal e os grandes
carregamentos dos navios tem o saleiro ou barco
mercantel.
Os mercanteis, que nas costas compram sardinha
e negoceiam em pescado, os marnotos das marinhas, os
berbigoeiros, os homens do junco, têm as bateiras
mercanteis, filhas do saleiro.
O caçador e o moço de marinha têm a
caçadeira, e até os fidalgos da cidade e os
capitães de Ílhavo, a descanso e a banhos, têm a bateirinha de
recreio − O Velho Portugal, A Gaivota, A
Tricana, A Gaivina, A Beira-Mar – que sulca
no verão as águas das Pirâmides, de latino puxado, de um alvo
luxuoso, ou que vagueia a remos na Ria da Costa Nova, por onde
enxameiam inúmeros barquitos dos mais diversos feitios,
estrangeiros ou mal nacionalizados, em que brincam crianças,
remam braços gentis de tricaninhas e vogam serenatas nas
noites calmas e luarentas.
--o-O-o--
O barco moliceiro é de todos o mais pitoresco.
Veloz como nenhum outro, não há quem lhe passe avante e quem o
vença a bolinar, fazendo bordos magníficos.
A sua borda parece andar debaixo de água, os
seus tripulantes puxando à vara, empurrando com o peito virado
à ré, curvados, arqueados, quase deitados, andando da proa à
tosta, parecem caminhar sobre um destroço de naufrágio,
poisando nas águas.
Quando o vento ajuda, o fundo dá e a alga
abunda, mastro arriba, vela no topo, caça-se escota, amura
calcada, ancinhos a arrastar… E eles aí andam, aos bandos, aos
cardumes como gaivotas de asas brancas que nadassem de dorso
ao sabor do vento.
À proa e à ré, de um lado e do outro, os
painéis com espantosas cercaduras policrómicas, flores e
ramalhetes pintados em cores berrantes e estilizações
bizarras, cheias de ingenuidade ou ingénuas de malícia.
/ 33 /
Dentro de um pomposo escudo com coroa real no
cimo, uma santa de mãos postas, vestes cintadas, largo manto
caído: «Ora bamos lá com Deus!» − reza a divisa. «Mestre
José de Matos me fez.». Um figurão de grande decalitro na
cabeça, muito delambido, gesto de muscadim, oferece uma rosa à
dama inexpressiva: «Arreda que te ispeto!» Uma nédia
moça de enormes seios esféricos e sintomas de próxima
maternidade: «As moIheres quer-se boas.». Um cavalheiro
de chapéu fadista pedindo lume com o cigarro na mão a um velho
ginja de grande cachimbo recurvo: «Ora banha de Iá eça
fumaça.»
Frequentemente como se infere não há a menor
relação entre a divisa e o figurão do painel.
Uma locomotiva marcha por sobre uma cercadura
de flores variadas, o dístico grita: «Ora biba a rapaziada
do moliço!»
Mas também aparece numa esmerada e galharda
proa, por vezes, a nota política, e o sr. dr. Afonso Costa não
escapou à consagração que o entusiasmo indígena lhe quis
tributar, pintando-o na proa de um moliceiro que há
dias vi, com túnica de imperador romano ou vestido de
bailarina espanhola, não se sabe bem, tendo ao lado um
marinheiro que lhe apresenta armas: «Viva o dr. Afonso
Costa!»
Sidónio Pais, o rei D. Manuel, tiveram também
as suas consagrações na iconografia dos barcos moliceiros.
Tudo isto é feito por artistas de traço
infantil, distribuindo as cores com uma riqueza e vivacidade
singulares, disparatadas, berrantes, cheias de ingenuidade,
que só podem ter rivais nos pintadores das alminhas que
mãos piedosas colocam ao longo dos caminhos nos sítios ermos
em que morreu gente.
--o-O-o--
O barco saleiro ou grande barco
mercantel, é o cargo-boat do complicado estuário do
Vouga. É a grande tonelagem, a grande segurança, a grande
comodidade.
Construção robusta, solidez a toda a prova,
alto da borda, largo do bojo.
Calmo, respeitável, grave, pesado, vagaroso,
tem uma proa espaçosa e alta, projectada para a frente, ao
contrário do moliceiro que a curva para trás, como um bico
revirado de abutre adormecido.
No mercantel, a ré, mais baixa do que a
proa é também mais suave e equilibrada, menos caprichosa,
menos atrevida, menos bizarra.
O moliceiro mais típico é feito de
curvas muito pronunciadas; no mercantel rectificou-se
mais. A proa termina num pequeno corte recto. O leme tem
linhas rectas, nos bordos há quase que horizontalidade.
Para as mulheres timoratas que receiam as
nortadas, para as excursões e passeios do povoléu irrequieto,
o saleiro é o barco ideal, de estabilidade a toda a
prova, indiferente aos vendavais e à marola agressiva das
cales profundas.
34 /
Contrastando com ele, parece brinquedo de
criança, modelo de museu, a caçadeira.
Rente com a água, a sua borda tem um palmo de
alto, a sua proa caminha como um homem que para surpreender a
presa, rasteja sobre a terra.
Mais alta da ré, em muitos casos, porque é da
ré que de ordinário se impele com a vara, parece um sapatinho
de freira deslizando pelos claustros em silêncio, delicado,
subtil, mignone, o barco mais pequeno que sulca a Ria
de Aveiro.
--o-O-o--
Num artigo, descritivo, muito consciencioso, e
minucioso, publicado na “Portugália” pelo sr. conselheiro Luís
de Magalhães e ilustrado com valiosos desenhos do sr.
Francisco da Silva Rocha, enumeram-se outras espécies de
barcos e bateiras usados na zona salgada da Ria, entre os
quais sobressai o chinchorro, hoje raro já nas nossas
águas, mas que é, sem dúvida, um dos mais pitorescos.
Neste meu artigo, porém, pretendo apenas dar a
impressão das formas típicas a que se prendem e de onde
derivam todas as outras e interpretar o significado dessas
formas, simultaneamente subordinadas a urna utilidade prática
e a uma estética nativa, de cujo conjunto e harmonia elas saem
admiravelmente próprias para as funções a que se adaptam e
indiscutivelmente belas na arte que à sua construção preside.
No estudo de etnografia ribeirinha, pois, os
barcos ocupam um lugar primacial como documentação que não é
possível esquecer.
E aqui quero notar desde já a diversidade que
existe entre as formas e a estética dos barcos da zona
salgada, propriamente beiramarinha, e as das águas doces, onde
o meio e a diferenciação étnica não adoptaram nem os modelos
nem a estética das populações que se fixaram junto à praia e
têm exercido o seu trabalho sobre as águas vindas do mar.
Efectivamente, depois da zona salobra, nas
ocupações já diferentes das das águas salgadas, as formas dos
barcos modificam-se curiosamente, tornando-se vagas, incertas,
anódinas, mestiças, deselegantes. Agarrados à margem, os
barcos são pequeninos e incaracterísticos, descuidados de
talhe, pelo menos.
Para lá da Vagueira, onde a ignorância dos
fazedores de mapas ainda põe uma larga barra que em tempos
existiu, ao norte da Murtosa e no Vouga, apenas se entra na
água doce, onde vivem os pimpões e já coaxam rãs, os
barquitos ou são chatos ou parecem-se com alguns do Mondego,
de duas proas, sem graça e sem carácter, bem diferentes das
bateiras da zona salgada e dos barcos que nas campanhas do
moliço fazem os demorados cruzeiros e as grandes travessias.
--o-O-o--
E as velas? As velas dariam um capítulo longo,
assunto mais propício para um pintor ou para um artista, do
que para um simples comentador de coisas que eu sou.
Mas os pintores deste país onde estão que
não vêm pintar?
/ 35 /
Teimam em encher-nos as exposições com retratos
de snobs, naturezas mortas, batidos poentes, e deixam
tantas maravilhas da terra, da natureza, da luz e da cor, a
graça do povo, a vida que palpita, as divinas, belíssimas
coisas que se não descrevem e que por aí há entregues à
passageira admiração dos nossos olhos e à profana indiferença
dos que não sabem sentir!
Senhores pintores do meu país, venham ver,
venham pintar!
Vejam bem: as velas dos barcos são a alegria
dos barcos e a alegria da Ria, irmãs gémeas ou rivais das asas
das aves que aqui habitam e por aqui hibernam.
Dizem que as almas não têm forma.
Talvez tenham. Às vezes cismo que as velas dos
nossos barcos, brancas como os montes de sal, as asas das
gaivotas, os farrapos das nuvens e a espuma das ondas, são a
forma das almas dos homens robustos que há tantos anos viveram
e morreram trabalhando, sonhando e sofrendo nas águas da Ria…
Venham vê-las! Num dia de verão, quando a
miragem enlouquece o horizonte, duplicando e espiritualizando
as imagens, dá vontade de ajoelhar e erguer as mãos, vendo a
estranha beleza das velas dos nossos barcos, brancas,
adelgaçadas, esguias, vagueando pela planura, voltadas para o
céu.
ALBERTO SOUTO
Director do Museu Nacional de Aveiro
Da Associação dos Arqueólogos
Do Instituto de Coimbra |