“Não sou nada
disso a que me referi há pouco e, contudo, sinto-me contente por haver nascido
no Distrito de Aveiro. Contente porque a terra é maravilhosamente bela, duma
beleza deslumbrante, variada, jamais repetida, desde as suas montanhas
verde-escuras, por onde deslizam múrmuros arroios, aos vales onde o pão dos
homens cresce vizinhando flores, muros floridos de lírios e malmequeres, janelas
engalanadas de cravos e sardinheiras, e de aí, através de mil relevos
orográficos, duma gama infinita de cores, até as suas praias douradas, em frente
dum mar onde os portugueses embarcam o seu drama e o sonho duma aventura que não
podem ter na Pátria.”
“Começam a
luzir no céu e na Ria, ao mesmo tempo, miríades de estrelas. É a Ria também
sítio para os que querem descobrir novas terras à proa do seu barco e para os
que amam a luz acima de todas as coisas. Eu, por mim, adoro-a. É-me mais
necessária que o pão. E é este, talvez, o ponto da nossa terra onde ela atinge a
beleza suprema. Na Ria o ar tem nervos. A luz hesita e cisma e esta atmosfera
comunica distinção aos homens e às mulheres, e até as coisas, mais finas na
claridade carinhosa, delicada e sensível que as rodeia.”
Manuel da Costa
e Melo (1913-2002)
Advogado, Escritor
“Mas, com vento, formam-se cavalinhos de espuma branca soltos ao vento, que
quando presos às pontas do junco, fazem nascer água na boca de desejos de
algodão doce, daquele que se vende nos carrinhos que palmilham a Costa Nova à
procura da nossa infância.”
“Mais adiante, e por debaixo da actual sede do clube dos Galitos à qual os
arquitectos não souberam dar a traça que a enquadrasse com o local, ficava a
livraria reis, onde os aveirenses iam beber sabedoria e ideias libertadoras.”
João Pereira de
Lemos (1932-…)
Escritor, Desenhador-Projectista, Pintor de azulejos
“Formoso é o
aspecto de Aveiro que, sentada num extenso tapete de verdura, sob o azul dum céu
puríssimo, vê deslizar a seus pés as plácidas águas da ria… esse lago em que se
unem em fraternal abraço as águas do Oceano com as do Vouga.”
José Augusto
Marques Gomes (1853-1931)
Jornalista, Historiador, Escritor
“Aveiro
Oh! Cidade lendária, és um poema
Que outrora andou nos lábios das tricanas!
(…)
És um jardim em flor, lindo cantinho
Onde os canais se cruzam com beleza;
Onde o Vouga desliza de mansinho;
Fazendo relembrar outra Veneza!
(…)”
Silva Peixe (1902-1976)
Poeta, Pintor
“O Gabão de Aveiro
Eu fui o Gabão de Aveiro
Que há muito larguei a palma
Agora, já não existo
Rezem-me todos por alma
Fui alguém, prestei serviços
A todos agasalhei
Tive aqui o meu reinado
‘té que em nada me tornei.
Só estou no pensamento
Dos saudosos do passado;
Fui esquecido de todos;
Raras vezes sou lembrado.” |
|
“A cena representa o Largo Municipal. Ao fundo, o edifício da câmara e, em plano
anterior, a estátua de José Estêvão. Bancos de Jardim.”
“É este. Vou descrevê-lo a V. Ex.ª. O largo dos pacatos é um recinto arborizado,
aveirense de lei, que vê: a leste, a farmácia com os seus remédios; a D. Célia
com a sua cirurgia; o Soares com a sua dentadura; o Manuel Moreira com os seus
panos e vidros; a Misericórdia com os azulejos e o Colégio Português com a sua
tabuleta escrita em “pretuguês”; ao Norte, o Correio com a sua inebriante
água-de-colónia; ao Sul, a Câmara, a Domus Municipalis, com as suas eternas, mas
encantadores ruínas e higiénicas prisões; e ao Poente, o Liceu, de gloriosa
memória e académica tradição.”
“Esta estátua é do grande José Estêvão. Descobriram, não sei como, que foi
sindicalista, e todos os anos aqui vêm os anarquistas oferecer-lhe um livro… de
pedra! É uma biblioteca!”
José Pereira Tavares (1887-1983)
Professor, Pedagogo, Reitor do liceu de Aveiro entre 1916 e 1957
|
“A feira de Março, quando abre as suas portas, aparece-nos sempre, sem sombra de
dúvida, como um espelho da comunidade onde se insere a comunidade, rica,
multifacetada, aberta as concepções da vida moderna, que transporta para dentro
do certame toda a sua pujança comercial e industrial desta laboriosa região.”
|
Girão Pereira
Presidente da Câmara de Aveiro durante vários mandatos, Eurodeputado
“A paisagem aveirense tem as transparências cristalinas do céu Mediterrâneo e
conjuntamente a suavidade e a velada languidez duma Primavera da Holanda ou dos
recessos abrigados dos mares escandinavos; tem a vastidão da estepe e os mimos e
a frescura dos vales protegidos das montanhas.” |
|
Jaime Magalhães Lima (1859-1936)
Escritor, Contista, Ensaísta, Romancista, Conferencista,
Jornalista, Publicista
“Quem souber andar a pé pela cidade e passear em torno de alguns lugares
inscritos no centro urbano, vai de certo encontrar painéis cerâmicos vidrados e
coloridos, mexidos pelas texturas irregulares pelos reflexos cruzados. São
painéis de Zé Augusto. São os que revestem faixas da cidade e que nos conduzem o
olhar. São alçados de fontanários que tornam ainda mais fresca a água que brota
das bicas (...) as mãos que ele modela têm os dedos aos sulcos como montinhos de
sal e as palmas da mão são longas, planas e recortadas como os esteiros na ria.
Estas mãos que o ceramista modela no barro agreste da região têm a mesma cor
destas nossas terras feitas de lama e de mar. Feitas de areia e de junco.”
Maria da Luz Nolasco
Professora, Ex-Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Aveiro,
Ex-Directora
do Museu de Aveiro,
Actual Directora do Teatro Aveirense
“Nós, os de Aveiro, mesmo no céu, havemos de ter alguma saudade do fresco
panorama do sal, da alva sementeira das praias, da faina dos marnotos tisnados,
da graça ligeira das salineiras.”
“Assim plasmado de Aveiro, com os beiços a saber a salgado, a pingar gotas da
ria por todo o corpo, por toda a alma, (...) eu sou uma nesga, embora minúscula,
desta deliciosa aguarela de Aveiro; eu sou um pedaço da nossa terra (...)”
“Os nossos clubes
Eu aplaudo (…) aos clubes da minha terra (…) o «Beira-Mar», o «Mário Duarte», os
«Galitos», os outros todos cuja lista sairia com certeza incompleta da minha
pena; e, se nada mais lhes posso dar, dou-lhes ao menos, com mãos ardentes, as
minhas palmas de espectadores. (…) Viva o Beira-Mar! Vivam os Clubes de Aveiro,
(…)”
|
“A Ria de Aveiro
Olha-se para um lado: água, muita água, brisas, espumas, velas, barcos, moinhos,
areia e sol!
Olha-se para outro lado: tabuleiros de cristal, montinhos brancos expostos ao
tempo, marinhas, marnotos e salineiras, a planície, a imensidade, e, no fundo,
no extremo horizonte, a sombra quase imperceptível, a divina moldura dos
pinheirais!
Olha-se para trás: a cidade (…) é a cidade, é Aveiro!” |
João Evangelista de Lima Vidal (1874-1958)
Bispo de Aveiro
“Aveiro é uma cidadezinha linda, cantante, arejada, que desabrocha como uma
fresca flor aquática, como um enorme nenúfar banco, de entre as águas que por
todos os lados a cingem, a atravessam em canais, a banham, a reflectem, a
espelham, lhe erguem um hino claro, tremente, entusiástico, apaixonado. É a Flor
das Águas, a Flor do Mar – e a água é a alma suprema, activa da paisagem.
Cercam-na vastas campinas verdes, cortadas de canais minúsculos, por onde
deslizam esbeltos saveiros; salinas que relampejam ao sol como cristais rútilos;
moinhos que gesticulam e batem asas sobre o vasto poder, todo ensopado de água;
rebanhos de vacas que pastam nos frescos lameiros; águas onde palpitam, em
maravilhosos jorros de luz, todos os reflexos, todas as imagens, ora ondeantes
como sombras, ora flamejantes como brasas, e, segundo a hora e a altura do sol,
umas vezes cor de turquesa, outras cor de safira, outras cor de nácar, outras
cor de coral – e tudo isto dando-lhe um aspecto de leveza, de frescura, de
graça, de intimidade repousante e doce. Domingos Guimarães
“Mas a minha cidade mudou. As casas
subiram até às alturas impensadas. As ruas são de asfalto, mas proibitivas.
O perigo espreita a cada esquina o momento da nossa distracção. O som
lúgubre da sereia das ambulâncias não deixa perceber já a proximidade do
mar. Afastou as aves dos beirais. O próprio sol detém-se lá muito em cima,
acenando-nos com mágoa, como que desejando explicar o impedimento da
apetecida aproximação. |
|
Hoje, apertam-nos em faixas riscadas de branco e, como
rebanho de dóceis ovelhas, conduzem-nos com o chicote da luz de cores. (…) Foi
preciso viver todos estes anos para aprender a percorrer as ruas aos soluços.
Aquelas em que se consertavam redes, se empilhava o peixe, se franjavam os
xailes, se enxugava a roupa, se conversava, se discutia, se tocava vida e se
arriscava a cantiga brejeira, volveram pistas de máquinas desenfreadas.
Irreconhecíveis. (…)”
“A iluminação das ruas reflecte-se no asfalto molhado (…). Não vale a pena
escrever. Lugares comuns que só o suor pode transformar em arte.”
“Variações quase sentimentais sobre uma cidade
Que posso eu fazer? Como falar dela? Repetir-lhe os lugares-comuns tão ao jeito
de certas camarilhas?, de certos sectores imobilistas, e que há tanto nos magoam
os ouvidos? Chamar-lhe a Veneza do país ou enfeitá-la com roupagem de igual
quilate e de tão pronunciado ridículo? Uma cidade não se descreve, caros amigos,
vive-se. Uma cidade não se retrata, respira-se. (…) E a luz desta cidade,
amigos?! (…) A luz inunda-nos, simplesmente. (…) É que nunca nos habituámos a
considerar essa ria, esses barcos, esses desenhos, uma coisa autónoma!; é que
nunca conseguimos isolá-los do conjunto a que chamamos cidade, e essa… essa é
para nós tão grande, que lhe não encontramos qualificativo capaz de a conter.
(…) Defeitos?! (…) No cheiro da sua ria à hora da vazante, na agressividade do
seu clima, um clima que nos enche de reumatismo e nos ensalitra as casas. (…) A
minha cidade é o que é; nada mais.”
“A Avenida de Outrora
A Avenida é hoje, talvez, a artéria mais popular da cidade. O comércio tem ali a
sua posição ideal e a gente de haveres os seus prédios de rendimentos.”
Vasco Branco (1919-…)
Áreas de trabalho: Literatura, Cinema, Pintura, Cerâmica
“Iria penetrar nas ruínas vivas de Aveiro, no sangue que animava aquelas gentes,
conhecer-lhes a vida, obra e essência. Desvendar as marcas que as mãos houveram
imprimido e moldado no tempo, em sonhos, glórias, fraquezas, tradições…”
João de Mancelos (1968-…)
Professor e Escritor
“A Cidade
Árvores infinitas
Povoando
O nosso espaço
E gritos
E sóis
E hinos matinais
Silêncios coloridos
Rios e mares
Alguma fome
E sempre a esperança
Na manga do dia seguinte
A cidade era agora
Um fogo sofrido do tempo
E a memória dos pássaros
Presente.” |
|
Clara Sacramento (1948-…)
Professora, Escritora
|
“São seis barrilinhos d’ovos moles de Aveiro. É um doce muito célebre, mesmo lá
fora. Só o de Aveiro tem ‘chic’… Pergunte V. Ex.ª ao Carlos. Pois não é verdade,
Carlos, que é uma delícia, até conhecida lá fora?” |
Eça de Queirós (1845-1900)
Escritor
“A Ria de Aveiro A Paisagem
21 de Julho de 1920
A ria é um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até
Mira. Todas as águas do Vouga, do Águeda e dos veios que nestes sítios correm
para o mar encharcam nas terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos
quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma
vasta bacia salgada. De um lado o mar bate e levanta constantemente a duna,
impedindo a água de escoar; do outro é o homem que junta a terra movediça e a
regulariza. (…) O homem nestes sítios é quase anfíbio: a água é-lhe essencial à vida e a
população filha da ria e condenada a desaparecer com ela. Se a ria adoece, a
população adoece. (…) A ria, como o Nilo, é quase uma divindade. Só ela gera e
produz. (…) Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e, noutro país, esta região seria um
lugar de vilegiatura privilegiado. É um sítio para sonhadores e para os que
gostam de se aventurar sobre quatro tábuas, descobrindo motivos imprevistos. (…)
Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha.
Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se no areal. (…) É a ria
também é sítio para os que amam a luz acima de todas as coisas. (…) Na ria, o ar
tem nervos. (…) A luz aqui estremece antes de pousar (…) A vida é navegar na
ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa,
aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto.”
Raul Brandão (1867-1930)
Militar, Jornalista, Escritor
“Na cidade é diferente. Na cidade... Essoutro Aveiro onde não há maresia, esse
Aveiro da velha avenida de pavimento obsoleto, da Ria negra de maus-tratos, de
estátua de um tal José Estêvão do qual todos sabem ter sido um grande homem mas
poucos sabem ao certo porquê. Na cidade há poucos espaços para nostalgias, no
entanto, a vontade de regressar as origens é constante.”
Nuno Miguel Pereira Reis
Aluno do Liceu de Aveiro entre 1985 e 1991
“Os seus
pés descem a escadaria para a rua. Agora pisavam o chão da sua fresca
cidade, onde o azul descia a deixar uma luz do céu, por ali espalhada.
Seguia pelo passeio, rente ao casario, enfeitado de lindos desenhos feitos
com pedras esbranquiçadas, de mistura com outras de cor escura, quase
pretas. Calcava, assim, flores estendidas, algas e conchas, a proa de um
barco, uma âncora, um peixe, até um barco moliceiro com a respectiva vela. Aqui e ali, um barco
estilizado, com os remos nele atravessados, a navegar sobre as ondas, desenhadas
em traços curvos.
Era o grande Oceano a vir até à sua cidade. A ficar nela.” |
|
Cecília Sacramento (1918-2005)
Professora, Escritora
“… Quem viu uma procissão em Aveiro não viu decência maior em parte nenhuma. (…)
Os andores, a maior parte das vezes, são verdadeiros encantos de ornato: nem uma
coisa a mais, nem uma coisa a menos; e cada coisa no seu lugar próprio!”
Homem Cristo (1860-1943)
Professor, Jornalista, Militar
“Alavário
Alavário.
Palavra que diz a terra e a água,
O ovo e a asa que foram,
O passado e a história antiga,
A luz e o sal, o suor, o azul.
Terra de peixe e de barcos.
A voz que vem de longe
A cantar a espuma e a areia.
Proa que avança no vento.
À flor do sol e da maré-cheia.
Alavário”
|
“São Gonçalinho
Um pescador
Acenderá na capela
O pavio
Da tua devoção.
E, com fragor,
Cairão
No chão
As cavacas
Da promessa.
Tu,
São Gonçalinho,
Sorris,
Na tua imagem,
Ao olhar risonho
Da miudagem.” |
|
“Palmeiras do Rossio
Há palmeiras no Rossio,
Erguem-se verdes no azul;
Beijam-nas o sol e o vento,
Olham p’ra norte e p’ra sul.
Dão sombra a quem na quiser,
Parca, de boa vontade;
São sentinelas erguidas
P’ra defender a cidade.
No jardim há raras flores
Mas abunda a relva verde. (…)” |
“Aguarela”
Um moliceiro
Vogando
As águas da ria.
Eugénio Beirão (João Gamboa, 1939-…)
Professor, Escritor, Compositor
“Lá verás Aveiro chamada Veneza de Portugal, comparação que deveria honrar a
cidade mas que, na realidade, a envergonha e desilude os visitantes, pelos seus
fétidos e mal cuidados canais. E o novo grito me acode: ‘é urgente salvar a ria,
os canais, as espécies marinhas!...’ e aqui, recordo a acção importante e
valiosa que a Universidade de Aveiro poderá desenvolver na defesa do meio
ambiente.”
Cláudia Maria Cruz Santos
Aluna do Liceu de Aveiro entre 85 e 91
Salvemos o moinho de Aveiro
Ali para os lados onde o casario da cidade acaba e a rasa paisagem lagunar se
estende, ergue-se ainda o esqueleto estrutural, decepado e reduzido à absoluta
apatia funcional, redondo de planta e ainda sólido nas paredes de pedra rolada
de importação quiçá insular, um derradeiro espécime dos moinhos que polvilhavam
outrora, ao rés de água, esta zona que se diferencia sem se subtrair no conjunto
nacional.
De moinhos estiveram inçados a Ria e Aveiro. Desde os que conferiram esse
topónimo a um ponto da estrada marginal da Cale de Vila e que a energia
hidráulica das marés impelia para uma laboração precária, aos que disseminavam
pelos chãos aluvionares de baixíssima cota, com propulsões eólicas, baralhadas
com os palheiros das salinas.
Até ao mesmo Esteiro das Azenhas que, por via delas dava o nome, ao que hoje,
não sei por que bulas nem pias baptismais que o legitimem, crismamos
teimosamente de Canal do Cojo. E que terão, acaso, inspirado J. Ferreira Pinto
Basto a construir, frustrantemente, a «Casa dos Moinhos»”, no termo do velho «llhote
do Cojo» — onde está instalada a Capitania do Porto de Aveiro.
Aveiro perdeu, pois, uma velha e caracterizadora tradição de “moinhos”.
Redobrada razão para conservar, reconstruir e aproveitar, funcional e
culturalmente, aquele que nos resta à mão e autêntico.
Eduardo Cerqueira (1909-1983)
Jornalista
“Espaço-festa
Aveiro é uma menina.
Usa vestido de água muito azul debruado a branca renda, de espuma.
Tem um bibe de Sol e usa brancos laçarotes de sal.
Passeia descalça e leve como se voasse
Desnuda-se, aqui e ali, e flutua como se nadasse.
Agita-se no vento e evapora-se como se dançasse.
Aveiro é uma menina e, como as de Degas, bailarina.” Idália Sá-Chaves (1940-…)
Actual Professora na Universidade de Aveiro
|
“Aguarela
Campos de Aveiro.
Manchas verdes de arroz,
E a vela dum barco moliceiro
Que um pirata ali pôs.
A servir de moldura,
O velho mar cansado;
E um céu alto a descer e a ter fundura
Na quilha reluzente de um arado.” |
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Miguel Torga (Adolfo Correia Rocha 1907-1995)
Escritor, Médico
“Mareante na proa do navio
Fita o mastro a picar o céu
Envolto de neblina;
Cansado do sargaço nauseante
Rumo à terra em ritmo de prece.
Mareante na proa do navio
Dá à costa exausto
Mas do mar não desiste.” Rosa Maria Oliveira (1959-…)
Professora, Escritora, Jornalista
Ave, Aveiro (…) Já sem laranjas roubadas na Rua do Gravito e sem aventuras nocturnas pelos
arrabaldes – descubro a beleza com que te despedes (te despes) do Sol, perco-me
em versos pelos carreiros das marinhas, levo a pasta da namorada à Estação,
invento um jornalzinho de estudantes, colaboro no crime nefando de mantear (sob
a pêra do José Estêvão!) o anãozito das sentinas. Aprendo a respeitar as
professoras, […] guardo um profundo desprezo por outros, peço dez tostões à
minha mãe para comprar “O Diabo”, lanço uma cervantina burricada pelo teu
centro, compenso o José Estêvão ensinando-lhe (junto às grades da estátua) o
canto em coro da “Internacional” – conspiro adolescentemente… (…) Só me lembro de ter nos braços nos bailes dos Bombeiros (…), de falar em
lobos de Alsácia aos bigodes e à barretina de Homem Cristo, de colher nas palmas
das mãos o frio e aço de uma das tuas tão singelas (mas tão típicas!)
pontezinhas, de ouvir dizer que um médico te receitara carros de areia e de ler
as eruditas notas que um dos teus vates pusera na epopeia em que cantava a
descoberta do Brasil… (…) E redescubro, olhando-o melhor, eu eras uma vilazinha apenas, perdida nas
brumas do passado… Como eu, cresces desajeitada e errabunda. (…) Pouco tempo
tenho, uma vez mais, para dar conta de ti. (…) E acontece a tragédia: descubro
que envelheço mais depressa do que tu – e sem que tenha podido conhecer-te! (…) Passaram os tempos em que davas ovos-moles e políticos. (Os ovos eram bons,
hoje menos. Os políticos óptimos, mas deu neles a pílula). (…) E, todavia, és
pura ainda, ó Aveiro! Tens o sal, tens o sol, tens o céu encaixado nas marinhas
– e o bacalhau, sem shorts nem nada, a bronzear-se nos tabuleiros… Serás cidade,
ó vila de outrora! (…) Tens dilúvios aguazados, minha Querida, e arcas de Noé
que trazem da Terra Nova os hirsutos precursores dos “hippies” de hoje… Com eles
dormes e com eles refloresces, minha Incógnita! O bronze e a salmoira te
protejam até à consumação dos séculos! Ámen.”
Mário Sacramento (1929-1969)
Médico, Escritor
Ida e Volta Franqueava-se um grande portão de ferro e, antes de entrar no grande edifício,
percorria-se uma estrada rodeada por bancos vermelhos, plantados nas margens de
um grande jardim, mais ou menos selvagem, em que cresciam palmeiras de grandes
macieiras e outras arvores de grande porte. Do meio da relva, destacavam-se duas
esculturas de ferro. Uma delas estava muito corroída pela chuva. Adivinhava-se
que devia ter sido uma mão rasgando a terra e que nessa luta teria perdido
quatro dos cinco dedos de tubo metálico. De ambos os lados do edifício, dentro dos muros, adivinhavam-se grandes
superfícies pavimentadas, de onde voava uma vozearia juvenil. Ao edifício tinha-se acesso por um outro grande portão de ferro. Desembocava-se,
então, num grande átrio de pé muito alto. Em grandes placards, podiam ler-se
instruções e informações de actividades.”
“Um dia não são dias. Não?
(…) Saio assim pelas ruas de Aveiro. Saio de casa e sossego o olhar na relva em
frente cercada por uma moldura de árvores que ensinam o caminho às estradas
velozes. Olho a praceta Afonso Gomes. É uma praceta cuidada pela cooperativa
Chave, a relva está verde e as plantas estão a crescer em todo o seu esplendor.
No campo de jogos, dois jovens atacam-se com bolas de brincar.
Atravesso o meu bairro de Santiago e procuro e encontro o sossego das praças
públicas entre as bandas de casas. (…) Atravesso o meu bairro de Santiago pelos
jardins públicos (…) Quando o vento é forte (e é muitas vezes forte) caminho
apressado. Quando é brisa de Santiago ou quando está muito calor, vagueio pelas
arcadas dos comboios amarelos numa viagem de sombra fresca e não me canso desta
companhia das cores vegetais em que quero tropeçar. Tudo depende do olhar.
Passo pelo quiosque e o jornal devolve-me uma tristeza fria. Mas persisto no
caminho da gente comum da cidade, esta que nos habitua a andar. Passo pela praça
do Marquês. Ainda o pó (agora amarelo avermelhado da cama da calçada) nos
acompanha na passagem de uma praça em obras com cheiro a pedras e cimento para
outra praça com pessoas e cores vegetais. Na rua dos Combatentes, as cores estão
penduradas à altura dos olhos voadores e lá em baixo a água para a esquerda
acrescenta-nos a serenidade dos espelhos naturais. Quando subo para a Sé,
descanso na relva do museu. A Natália C. pergunta-me pela família. As árvores da
rua Passos Manuel encheram-me de folhas contra a agressão da poda. Entro no
cercado da escola José Estêvão pelo lado das árvores de majestade sem nome.
Dentro do edifício, os corredores estão frescos e os jovens atropelam
gargalhadas. (…)”
Arsélio Martins (1947-…)
Professor, Presidente do Conselho Directivo da
Escola Secundária José Estêvão
durante quase 20 anos
“Aveiro – 2
Céu terreno de ria semeado
De vagas libertadas pelo mar,
Que um dia a entronizou no seu altar
De rendas de brancura, sal bordado.
Qual trono de sol enluarado
No vão da noite, e dia a pespontar,
De proas e de rés vogando a par
No lago reluzente, prateado.
Bendita terra esta, onde a chama
Em tardes de poentes faz a cama,
No berço embalador do oceano.
Bendita terra, meu ancoradouro,
Maravilhoso Aveiro, meu tesouro,
Que por mercê de Deus, se sente ufano” Amadeu de Sousa (1887-1918)
Pintor e poeta
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