Corriam os últimos dias do mês de
Janeiro. Recebi um telefonema de um amigo caciense a perguntar-me quando
poderia vir a Aveiro, na companhia do Presidente da Junta de Freguesia
de Cacia. Precisavam de falar comigo. Já há uns tempos que procurava
contactar-me, não telefonicamente, mas «telemovelmente». Sempre se
deparava com a mesma voz a dizer-lhe que o destinatário não estava
disponível. O telemóvel encontrava-se quase diariamente desligado. À
semelhança do cântaro que vai à fonte, lá acabou, não por partir a asa,
mas por apanhar o destinatário do outro lado da linha, que não é mais
linha, porque, ao contrário do tradicional, o fio telefónico há muito
foi substituído por outros canais de comunicação. Apanhou-me algures na
cidade de Aveiro, enquanto portador e suporte do minúsculo aparelho com
que, nos tempos modernos, no final da primeira década de 2000, todos
falamos uns com os outros através das ondas hertzianas.
Nos últimos do mês de Janeiro, mais
precisamente no dia 28 deste ano da graça de 2010, cerca das dezassete
horas, entrava o amigo Mário Ferreira da Silva, na Biblioteca Histórica
da Escola Secundária José Estêvão, acompanhado do Senhor Casimiro Simões
Calafate, actual Presidente da Junta de Freguesia de Cacia.
Feitas as apresentações, em breve me
disseram ao que vinham.
Desde há uns tempos, o amigo Mário
andava com vontade de registar para a posteridade todos quantos em Cacia
foram obrigados a passar férias forçadas, nos idos de 1961 a 1975, em
terras de além-mar. Para tal, desde há alguns meses, compilava elementos
acerca de todos os cacienses que conheceram os sóis de África e outras
terras mais longínquas, colocando em cada folha individual os elementos
identificativos e os momentos do percurso militar relativos aos dois
anos da mobilização.
Este êxodo obrigatório para outros
climas teve as suas origens remotas em séculos passados. Surgiu a partir
do momento em que alguém, perscrutando a linha do horizonte, que separa
o céu do mar, ambicionou alargar as fronteiras do estreito território
espartilhado entre terra alheia e o mar sem fim. A partir daí, começou a
busca de terras desconhecidas, que levaram a lusitana gente a passar o
Bojador, a dobrar a extremidade sul da África, desafiando «adamastores»
de toda a espécie, e contornando-a em sentido inverso e pelo lado oposto
até ao Oriente distante, permitindo-lhe alcançar longínquas paragens até
ao vasto território asiático e a ilhas muito mais distantes, onde ainda
hoje se fala ou subsistem vestígios da portuguesa língua.
Na primeira metade do século XX,
territórios ocupados por várias potências europeias que, à semelhança
dos portugueses, saíram dos limites europeus e ocuparam regiões alheias,
iniciaram um processo de autodeterminação, começando lentamente a
sacudir o jugo das potências que os subjugavam. Aos poucos, todos foram
sendo sacudidos e obrigados a confinarem-se às terras de origem.
Desafiando esta corrente, um pequeno
país europeu continuou a manter o vasto espaço gradualmente descoberto e
ocupado, à custa de muito esforço e muitas vidas e lágrimas perdidas,
sempre remando contra ventos e marés desfavoráveis, até que, em
Fevereiro de 1961, a sociedade portuguesa foi súbita e fortemente
abalada pelas notícias de que grupos terroristas tinham iniciado uma
acção, que há muito se vinha temendo e adivinhando. De facto, no dia
quatro de Fevereiro, ocorre em Luanda um ataque, considerado actualmente
como o marco oficial da guerra de libertação e independência de Angola,
a uma esquadra da polícia e à Emissora Oficial de Angola, por forças do
Movimento Popular de Libertação de Angola – o MPLA. Tratou-se de um
ataque que provocou alguns mortos e ao qual se seguiram, nos dias
subsequentes, outros sangrentos, no norte de Angola, a fazendas e
povoações, perpetrados por elementos da UPA (União dos Povos de Angola),
obrigando o governo português a mobilizar os primeiros contingentes
militares para reforço do dispositivo de defesa do território. Estávamos
em pleno regime salazarista. E é desta altura a célebre frase de
Salazar: «Para Angola, rapidamente e em força!». Em breve, este estado
de insegurança alastrava aos restantes territórios
(1).
A partir de Fevereiro de 1961, durante
cerca de catorze anos, até 1975, Portugal conheceu um período em que a
população passou a viver, periodicamente, uma situação em quase tudo
muito idêntica àquela que nos relata Camões, no Canto IV de «Os
Lusíadas», no conhecidíssimo episódio da partida das naus das praias do
Restelo, transmutadas, nos nossos dias, em cais de Alcântara, e do qual
aqui reproduzimos três estrofes:
(89) – «Em tão longo caminho e
duvidoso / Por perdidos as gentes nos julgavam; / As mulheres c'um choro
piedoso, / Os homens com suspiros que arrancavam; / Mães, esposas,
irmãs, que o temeroso / Amor mais desconfia, acrescentavam / A
desesperação, e frio medo / De já nos não tornar a ver tão cedo.»
(90) – «Qual vai dizendo: – Ó filho,
a quem eu tinha / Só para refrigério, e doce amparo / Desta cansada já
velhice minha, / Que em choro acabará, penoso e amaro, / Por que me
deixas, mísera e mesquinha? / Por que de mim te vás, ó filho caro, / A
fazer o funéreo enterramento, / Onde sejas de peixes mantimento!»
(91) – «Qual em cabelo: – Ó doce e
amado esposo, / Sem quem não quis Amor que viver possa, / Por que is
(=ides) aventurar ao mar iroso / Essa vida que é minha, e não é vossa? /
Como por um caminho duvidoso / Vos esquece a afeição tão doce nossa? /
Nosso amor, nosso vão contentamento / Quereis que com as velas leve o
vento?»
Ressalvadas as distâncias e algumas
diferenças, é isto o que ocorre periodicamente nos primeiros anos, umas
vezes com os sentimentos de pesar vincados no momento da partida, outras
com a alegria a transbordar, sempre que, passados cerca de dois anos,
regressa um batalhão, após mais de vinte e quatro meses descontados
dia-a-dia em calendários de contagem decrescente, cujos números vão
sendo riscados e diminuindo de valor, à medida que a «peluda», isto é, a
vida civil, está cada vez mais perto.
Embarque para a Índia
de um dos primeiros contingentes militares, em 1959, no navio Niassa.
Foto de João Coelho Gonçalves.
De facto, com intervalos regulares, vão
surgindo nos jornais da época fotografias idênticas às duas que
reproduzimos, retiradas da Internet, com a devida vénia para os autores,
de um espaço consagrado às memórias militares deste período da nossa
vida.
A primeira, datada de 1959, mostra-nos a
partida de tropas portuguesas para a Índia. A segunda, onze anos mais
tarde (1970), mostra-nos a partida de Lisboa de um batalhão para terras
de África.
Esta utilização dos diversos paquetes da
frota portuguesa para transporte de militares praticamente cessou a
partir do momento em que ele se passou a fazer recorrendo a dois
modernos aparelhos Boeing 707, adquiridos pela Força Aérea, que
transportavam uma companhia de cada vez. Em quatro dias quase
sucessivos, todo o batalhão era colocado em território africano no
espaço de cerca de oito horas de viagem. A partir de então, as grandes
despedidas nos momentos das partidas e das chegadas quase deixaram de
existir.
Partida de
Lisboa de um contingente no navio Império, em 1970. Fotografia de Amadeu
Pena Moura.
Lembro-me, como se fosse hoje, da
chegada da nossa companhia a Lisboa, após algumas horas de viagem. Em
vez daquelas filas de pessoal em formatura, a descida do avião fez-se
normalmente, sem as formalidades militares, tal como se verifica
habitualmente, quando chegamos a um aeroporto depois de várias horas de
viagem. Com toda a gente fora do avião, mal tivemos tempo para uma
fotografia de despedida! As únicas formalidades foram a recepção das
«guias de marcha» para a «peluda», a vida civil há dois anos
ansiosamente aguardada, e os familiares à nossa espera, à saída do
aeroporto.
Nesta fase de vida atribulada para as
gerações que viveram estes acontecimentos, podemos considerar dois
grandes períodos: o primeiro, constituído pelos nove anos seguintes ao
da eclosão das lutas de libertação nos territórios africanos; o segundo,
abrangendo os quatro primeiros anos da década de 1970, em que os
confrontos com o inimigo eram quase ocasionais, não obstante as
frequentes baixas infligidas por uma série de inimigos invisíveis, que
nada tinham a ver com os terroristas, mas que, de vez em quando, levavam
o nosso pessoal militar, na melhor das hipóteses, apenas para as
urgências dos hospitais militares.
Chegada a Lisboa de uma
Companhia de Caçadores. Momentos imediatamente após o desembarque do
pessoal transportado num dos dois aparelhos da Força Aérea Portuguesa,
em Novembro de 1974. Fotografia de Henrique J. C. de Oliveira.
Que problemas tínhamos de enfrentar
durante os dois anos de cativeiro forçado em terras africanas? E passo
do discurso de terceira pessoa para o de primeira, porque, também eu,
enquanto militar, vivi na própria pele, durante dois anos, todas estas
dificuldades. Para além da própria sobrevivência a quaisquer
imponderáveis, tinha a responsabilidade de zelar pela segurança e
bem-estar de todo o pessoal colocado sob a minha alçada.
Parafraseando um pouco a fala do Velho
do Restelo: a que mortes, a que perigos, a que tormentas, a que
desastres e crueldades do Destino estávamos todos nós sujeitos, durante
um período que, sendo apenas de cerca de vinte e quatro meses, parecia
não mais ter fim? E que cuidados, que estratégias e que meios eram
utilizados para ultrapassarmos as eventuais situações de perigo, bem
como os frequentes obstáculos que nos surgiam pela frente? E como
procedíamos para aguentar tão dura estadia, longe de familiares, de
amigos e de lugares que nos eram queridos?
Antes da partida para novas e longínquas
terras, ainda na estreita tira de terra espartilhada entre o mar e
terras de Espanha, os sentimentos de todos eram simultaneamente e apenas
de receio e de curiosidade, já que o outro mal que nos atacava, ao fim
de uma longa separação, ainda se não fazia sentir. As saudades, essas só
surgiam algum tempo depois, quando as imagens dos lugares e pessoas
queridas começavam a ficar toldadas, se é que alguma vez o ficavam, pela
longa ausência.
Um dos
dois aparelhos da Força Aérea, fotografado em Luanda (1973) por Mário
Ferreira da Silva.
Depois, no momento da partida e durante
a viagem até ao destino, existia a excitação pelas novas experiências e,
sobretudo, a curiosidade e a expectativa. Como seriam as novas paragens
que íamos forçosamente descobrir? Como iríamos reagir? Que males ou bens
nos poderiam vir a suceder?
Uma vez chegados, os primeiros instantes
eram de espanto, de profunda admiração perante tudo quanto nos surgia
pela frente: novas terras de cores avermelhadas, cor de barro, por onde
quer que andássemos, verdes de tonalidades diferentes das que
conhecíamos, e até um azul mais profundo e brilhante, se tínhamos a
sorte de chegar a estas paragens na época das chuvas. Se a chegada se
fazia por altura do cacimbo, então as sensações cromáticas eram
totalmente diversas. Tirando a cor barrenta do solo que pisávamos e o
verde das densas florestas, tudo o mais apresentava cores amarelecidas
pela ausência das chuvas; e até o céu teimava em nos negar, durante o
dia, o seu azul diáfano, onde as brancas nuvens sobressaíam, quais
grandes maços de algodão brilhante, prometendo-nos, frequentemente,
abundantes descargas de água. Em tempo de cacimbo, era um cinzento
permanente, que só desaparecia visualmente com o cair da noite, mas que
teimava em permanecer dentro de nós, fazendo-nos ansiar pela chegada das
primeiras chuvadas, que nos limpassem da alma o cinzento da rotina
diária e as saudades de casa.
Se a viagem entre a Europa e as novas
terras africanas se fazia de barco, o choque da mudança era mais
atenuado, uma vez que, à medida que o pessoal avançava para sul, ia, a
pouco e pouco, adaptando-se às novas condições ambientais. Todavia, a
partir do momento em que o transporte militar passou a efectuar-se por
meios aéreos e apenas eram necessárias cerca de oito horas de viagem, o
choque revelava-se por vezes violento.
Nunca poderei esquecer o que me
aconteceu, a mim e a todo o pessoal que partiu comigo, naquele dia da
viagem entre Lisboa e Luanda. Saídos do autocarro, cerca das 23 horas,
num dia frio de finais de Novembro, os primeiros momentos diante do
moderno aparelho da Força Aérea foram de surpresa e espanto. Na sua
grande maioria, nunca ninguém tinha entrado num avião. Muito do meu
pessoal abandonou as terras do interior para novas terras mais
movimentadas e civilizadas, graças ao serviço militar. Aviões, sabiam
bem o que eram. Viam-nos passar, lá muito alto, muito pequeninos e
reluzentes, destacando-se no fundo azul do céu, e deixando um rasto
cinzento, que os ventos desfaziam ao fim de algum tempo. Perante um
aparelho da envergadura de um Boeing 707, banhado pela luz dos holofotes
do aeroporto, de asas brilhantes e com uma enorme fiada de janelinhas
iluminadas, o seu ar era de surpresa e espanto. E uma vez lá dentro,
para os mais avisados, o espanto da descoberta só foi estragado pelo
facto de, em vez de esbeltas hospedeiras, termos a receber-nos pessoal
masculino, fardado quase como nós, que íamos de abalada. Quebrada a
surpresa dos primeiros momentos, habituados ao interior iluminado e ao
ruído de fundo dos motores a jacto, a grande maioria mergulhou num sono
profundo, só acordado quando, a meio da viagem, nos foi fornecida uma
ligeira refeição. Para a maior parte, a grande descoberta veio depois.
Veio após uma noite de viagem mergulhada em profundo sono, tão profundo
que nem lhes permitiu sentir os solavancos da tempestade sobrevoada,
alguns quilómetros abaixo de nós. Veio quando já estávamos perto do
destino, ao depararem, através das vigias do avião, ao raiar do sol, já
na aproximação do aeroporto de Luanda, com uma imensa vastidão de terras
avermelhadas e de florestas de um verde escuro e contrastante, que mais
realçava aquele vermelho barrento.
Contudo, o meu maior choque não foi a
observação da surpresa e espanto espelhados nas caras do meu pessoal. A
maior surpresa tive-a eu, e creio que alguns outros também, quando, já
em terra e com o aparelho imobilizado, se abriram as portas do avião.
Foi como se nos tivessem aberto as portas de um daqueles fornos em que,
nas nossas aldeias, se coze a broa ou se assa o leitão, para delícia de
todos. Em vez do cheiro quente do pão ou do animal assado, vimo-nos
bruscamente mudados de um clima invernal para um calor não infernal, mas
forte e húmido, que nos trouxe de novo à realidade, para nos lembrar que
já não estávamos em terras familiares e conhecidas. Agora, eram outras
terras, terras novas e distantes, onde tudo era desconhecido e, quiçá,
fonte de incertezas e perigos.
Estado
em que ficou uma viatura pesada, depois de ter passado por cima de uma
mina, em 1 de Outubro de 1973,
em Zala
(Angola). Foto de Alfredo F. S. Marques.
Que problemas tínhamos de enfrentar no
dia-a-dia e nos preocupavam, passados os primeiros instantes da surpresa
e descoberta?
Os perigos latentes, a que todos
estávamos sujeitos, começavam muito particularmente no momento em que
nos tínhamos de deslocar de um lado para o outro. E estes perigos
variavam sensivelmente com a época, isto é, com o tempo. No período das
chuvas, nunca sabíamos o que nos esperava. E não era só o «turra» o
nosso grande inimigo. Em plena época das chuvas, tirando algumas
emboscadas, frequentes nos primeiros anos da década de 1960 e raríssimas
na década de 1970, o grande problema eram as violentas descargas com que
o deus das meteorologias nos brindava a toda a hora, descargas que tudo
arrasavam e mudavam de sítio as picadas por onde antes passáramos. Em
vez delas, deparávamos com enormes valas intransitáveis, de difícil
transposição, que nos levavam horas de esforço e, não raro, nos
obrigavam a contornar o obstáculo, abrindo novos caminhos à custa de
árvores abatidas da densa floresta que nos envolvia. Nas zonas
fortemente barrentas, quando a picada não desaparecia com as enxurradas,
as subidas tornavam-se escorregadias como manteiga, impedindo a subida
das viaturas pesadas, cujas rodas patinavam e não saíam do mesmo lugar.
Eram as árvores de grande porte e os guinchos que nos ajudavam a vencer
os declives. Em período do cacimbo, com longos meses sem gota de água,
as picadas permaneciam no mesmo local, mas havia o risco de alguma mina
colocada à espera de uma roda desprevenida que a pisasse, mandando tudo
pelos ares.
Por vezes, mesmo com o deus das
meteorologias a nosso favor, se os Fados não estivessem pelos ajustes,
pregavam-nos com inimigos inverosímeis, praticamente impossíveis de
combater, a não ser pela conservação da calma e presença de espírito.
Recordo, neste preciso instante, e como que estou ressentindo outra vez
a penetração na pele, não dos projécteis mortíferos das armas de fogo,
mas os aguilhões das ferroadas que levei, num ataque surpresa a meio
caminho entre a sede da Companhia e o destacamento sob o meu comando. É
um episódio caricato, que está registado algures, num romance
incompleto, e que vamos aqui reproduzir, tal como se estivéssemos outra
vez a passar por tão incrível situação:
«Estamos neste momento a descer com
muita prudência até um pontão, que atravessa uma linha de água situada
no fundo de um vale. A estrada é argilosa e o condutor redobrou de
cuidados, pois tem dificuldade em manter uma linha recta. O piso está
escorregadio.
Passamos agora o pontão, situado mesmo a
meio de uma curva para a esquerda, a que se segue uma subida bastante
íngreme, em linha recta. No bordo da picada, de um e outro lado, há uma
mata cerrada com árvores altíssimas e verdejantes, com folhas de um
verde vidrado e luminoso do esmalte escorregadio e puro que caiu das
nuvens. As folhas, lá no alto, brilham sob os raios do sol,
recortando-se no azul forte e luminoso do céu.
Conseguimos já chegar até meio da
subida; mas não passamos daqui. A subida tornou-se ligeiramente mais
íngreme na zona onde a mata é mais densa. A Berliet não avança, apesar
do condutor lhe carregar no acelerador. As rodas giram sobre a camada
argilosa e não saem do mesmo sítio. O condutor tira o pé do acelerador e
mete o travão de mão. Procura jogar com a embraiagem e o acelerador.
Levanta o pé de um e carrega simultaneamente no outro, ao mesmo tempo
que roda a pequena alavanca do travão de mão. Em vão! As rodas voltam a
girar em falso e a viatura mantém-se no mesmo lugar. Do tubo de escape,
que se eleva na vertical, sai uma grande quantidade de fumo negro de
cada vez que o condutor tenta em vão vencer a resistência da inércia.
Tudo é inútil! As rodas teimam sempre em girar sem avançar um milímetro.
Subitamente, passa um soldado a deslizar
descontroladamente sobre a argila da picada. Passa outro e mais outro,
completamente estatelados no chão e em rodopio. Os soldados estão a
atirar-se de qualquer maneira da caixa da Berliet e deslizam
descontroladamente, só parando no fundo da descida, uns em cima dos
outros, junto ao pontão.
De repente, um dos soldados grita-me:
— Alferes, fuja depressa, que estamos a
ser atacados!
O condutor, bastante atrapalhado,
acciona bruscamente a pequena alavanca do travão de mão. Abre a porta.
Atira-se de qualquer maneira da cabina da viatura, caindo
desastradamente na picada. Desliza também sem controlo. Vai parar junto
do grupo de soldados acumulados perto do pontão e que começam a
levantar-se, cambaleantes, para logo o atravessarem para o outro lado da
linha de água. Quando reajo e me preparo para fugir, já é tarde demais.
Começo a sentir-me atingido na cara e no queixo. Luto desesperadamente.
Procuro com as unhas, como se fossem ancinhos, impedir a penetração na
barba daqueles pequenos projécteis pretos e velozes. Enfiam-se pela
barba já espessa e cravam-me os dardos na carne. É um enxame de umas
malvadas vespas pretas, pequeninas e brilhantes, de um tipo que nunca vi
na vida. Estão furiosas. Penetram rapidamente em todos os sítios,
injectando-nos agulhas que nos provocam uma dor aguda e súbita. Lanço-me
aflitivamente da viatura. Como os outros, mal toco o solo escorregadio,
deslizo estatelado e sem controlo sobre aquela película viscosa de
argila, de um vermelho vivo.
Quando chego ao fundo, o pessoal que
saltara pouco tempo antes procura levantar-se rapidamente, para não ser
atingido pelos que lhes seguem o rasto, e atravessam o pontão. Olhamos
uns para os outros. Meios doridos, meios estonteados, procuramos avaliar
os estragos sofridos. Caras e mãos foram as zonas mais atingidas.
De repente, um grito dá o alarme:
— Fujam. Depressa! A viatura começa a
escorregar pela ladeira. Vai-nos esmagar.
Mas não. A viatura descai ligeiramente.
Fica lá em cima, mesmo no meio da subida, imóvel, sob uma nuvem escura
de vespas pretas, que giram em todos os sentidos fazendo um ligeiro
zumbido, que se consegue ouvir distintamente, apesar de nos mantermos
afastados.
Não nos resta fazer outra coisa senão
esperar que elas acalmem. Entretanto, vamo-nos apalpando e olhando uns
para os outros. O nosso aspecto é simultaneamente deplorável e ridículo.
Os camuflados mudaram completamente de equipa. De verdes passaram para
vermelho. Estão empapados com uma argila escorregadia, que os torna de
um vermelho brilhante. Felizmente, ninguém tem nada partido! Apenas nos
ficou o susto e uma quantidade de pequenos vulcões, espalhados pelas
zonas não cobertas pelo camuflado. E até mesmo a dor, inicialmente
aguda, ficou em breve reduzida a uma ténue impressão. Tudo o que resta é
apenas uma sensação incómoda, motivada pelos pequenos montículos que nos
esticam a pele e a tornam lustrosa. (...)»
Claro que os perigos que nos espreitavam
não existiam apenas durante os percursos. Mesmo nos aquartelamentos e
sem a ajuda dos terroristas, estávamos sempre sujeitos a situações de
diversa ordem. Curiosamente, uma das maiores fontes de problemas era a
ociosidade. O não ter nada para fazer e o martelar constante e invisível
das horas, que pareciam teimar em não avançar, nas mentes ociosas do
pessoal, eram geradoras, frequentemente, de situações pouco civilizadas.
Por uma discordância insignificante em relação a um dito ou a uma
brincadeira de gosto duvidoso, geravam-se por vezes querelas
inadmissíveis entre pessoal que deveria ser civilizado. Não era raro o
oficial ser chamado a horas inconvenientes porque dois soldados se
tinham pegado, chegando mesmo a haver ocorrências de elevada gravidade,
porque fulano ou sicrano tinha pegado na arma e ameaçado um companheiro.
A pior guerra que os oficiais
conscienciosos necessitavam de vencer era precisamente esta: procurar
manter a segurança dos aquartelamentos a todos os níveis, nunca
esquecendo a parte psicossocial, porque o maior inimigo do soldado era
justamente a ociosidade e a falta de capacidades reflexivas,
introspectivas, e, sobretudo, um bom senso e calma para vencer o
martelar imperceptível de um tempo, que parecia não querer avançar. Por
isso, geralmente, as maiores baixas nos grupos começavam a ocorrer a
partir do segundo ano de permanência em território adverso. No primeiro,
em que tudo era ainda desconhecido, todas as cautelas nunca eram demais.
A partir do segundo, passada a fase da «maçariquice», o nosso pessoal
começava a sentir-se como «uns senhores». Os problemas eram só para os
maçaricos, acabados de chegar da Metrópole. Para os velhinhos, já
calejados por um ano de experiências as mais variadas, havia uma forte
tendência para o «facilitismo», que tinha de ser combatido pelos mais
experientes e avisados. Todavia, apesar dos cuidados dos oficiais
responsáveis, era quase impossível prever e antecipar todas as situações
que, não raras vezes, conduziam a pseudo-baixas em combate.
Enquanto oficial de justiça militar,
isto porque tive de fazer um pouco de tudo durante a minha passagem de
dois anos por terras angolanas, o que mais me custou foram os processos
relativos a baixas militares. Embora indicássemos, quase sempre, como
causa «baixa em combate», as causas reais eram bem diversas: um «desenfianço»
ao fim de semana até à cidade, sem prestar a devida atenção às curvas
traiçoeiras que surgiam, imprevistamente, ao fim de alguns longos
quilómetros de rectas alcatroadas e convidativas a altas velocidades,
uma ultrapassagem imprudente de um condutor, uma brincadeira estúpida
com a arma que nos deveria proteger e não matar; em suma, uma série de
factos imprevistos e pouco prudentes, fruto as mais das vezes da
ociosidade e falta de senso, que não vamos agora enumerar.
Esqueçamos agora outros inimigos
invisíveis, mas sempre presentes. Omitamos a falta de educação e civismo
de muitos dos nossos militares. Olvidemos as doenças frequentes, algumas
vezes por falta de respeito pelas normas de prevenção e segurança.
Agora, colocando de lado as situações
negativas, evoquemos alguns dos melhores momentos vividos pelo pessoal
militar e alguns episódios caricatos. Felizmente que a tendência das
pessoas normais, especialmente naquelas cujos mecanismos de defesa estão
bem lubrificados, é remeter para o esquecimento os maus momentos, e
preservar na memória os bons ou aqueles momentos que, pelo seu caricato,
podem ser geradores de umas boas gargalhadas, muito convenientes para o
desbaste do stress do dia-a-dia.
Os momentos positivos numa guerra de
tempo com dois anos de duração são muitos e valiosos. E merecem ser
aqui, se não desenvolvidos, pelo menos enumerados. Efectuemos, então, o
seu levantamento, antes de seleccionarmos um ou dois para desenvolvermos
e rematarmos estas nossas breves palavras de introdução ao presente
trabalho relativo aos cacienses que passaram por terras de Além-mar.
Que episódios positivos poderemos
destacar? As saídas nocturnas à caça para uma quebra na rotina
gastronómica do pessoal? As saídas furtivas do pessoal até às sanzalas,
desrespeitando os conselhos avisados dos oficiais, para irem às meninas?
As chegadas do pessoal com o reabastecimento? A chegada ao
aquartelamento, sãos e salvos, após vários dias de operação no meio do
mato, naquela selva luxuriante, muitas vezes quase impenetrável? A
chegada do pessoal que nos vem render, antes da nossa mudança de local?
Os instantes da distribuição do correio, que nos trazia as ansiadas
notícias de familiares e amigos? Ou o momento da partida, no final da
comissão, rumo à «peluda», à vida civil ansiada durante cerca de 740
dias que pareciam nunca mais passar?
Como vimos pelo parágrafo anterior, são
muitos os tópicos que aqui poderíamos desenvolver, mas que terão de
ficar no interior da caneta, à espera de outras ocasiões que,
possivelmente, nunca chegarão a acontecer. Limitemo-nos, então, a dois
momentos: um caricato, que mais parece uma história que um acontecimento
realmente vivido; o outro, o da chegada das notícias, que nos ajudavam a
matar as saudades.
À semelhança do episódio atrás evocado,
vamo-nos socorrer do que está escrito e publicado algures. Vamos agora
evocar uma situação de ataque a uma sanzala, vivendo-o como se estivesse
de novo a ocorrer, mas tendo o cuidado de o reduzir, omitindo tudo ou
quase tudo quanto diga respeito a descrições. Embora com os nomes de
todos os intervenientes alterados, a verdade é que o que aconteceu com
eles poderia muito bem ter sucedido connosco, porque todos nós vivemos,
quase de certeza, situações que, não sendo rigorosamente iguais, são em
muitos aspectos parecidas. Vejamos o caso de um ataque a uma sanzala que
era, simultaneamente, como tantas vezes acontecia, um local de
destacamento das nossas tropas. É um episódio a que daria o título, se
de um conto se tratasse, de «terroristas luminosos». Passemos aos factos
e recuemos numa máquina do tempo até 1973.
«A máquina parou no exacto momento em
que o Costa, o soldado de transmissões, entrou no meu gabinete, às onze
da noite:
— Alferes, acabo de receber uma mensagem
do destacamento. Estão todos nos abrigos. Estão a ser atacados.
— Vê se eles voltam a ligar-nos.
Diz-lhes que procurem aguentar-se o melhor que puderem e que iremos
socorrê-los logo que amanheça.
— Há um pequeno problema, meu alferes.
Estamos sem baterias para o rádio.
— Como é isso possível? Não há baterias
de reserva? Além disso, isso não é desculpa para não os irmos socorrer.
Diz-lhes que iremos para lá assim que amanheça. E liga também para a
sede da Companhia, a dar conhecimento do ataque, caso não tenham já
recebido a mensagem.
Saído o soldado de transmissões, falei
com os furriéis:
— Quem é o furriel que está de serviço?
— Sou eu, alferes. — respondeu o
Ramalho.
— É preciso reforçar as sentinelas. O
ataque à Camuanga pode ser um de uma acção conjunta de ataques a
destacamentos.
— Deve ser mais um ataque isolado,
alferes. — respondeu o Donato. Connosco não se devem voltar a meter.
— Isso é coisa que nunca podemos dizer,
Donato. Não atacaram ninguém no Natal, nem no Ano Novo, mas podem
aproveitar agora, quase no final do mês, para tentarem apanhar a malta
desprevenida. Seja como for, o cuidado nunca é demais. E o Ramalho, que
está de serviço, faz o que lhe mando: vai às casernas acordar o pessoal
e dobrar as sentinelas em todos os postos.
— Não é necessário, alferes. As
sentinelas normais chegam.
— O Ramalho está a querer contrariar as
minhas ordens?
— Não, alferes...
— Se não, então trate de ir
imediatamente fazer o que lhe digo, antes que nos aborreçamos. E avise o
pessoal nas casernas que esteja acordado, porque vou passar por lá e
falar com eles. E passar depois uma ronda. E não barafuste, que não
adianta nada com isso.
Saído o furriel do edifício, para
cumprimento contrariado das ordens recebidas, falei com os restantes
furriéis:
— Amanhã, mal amanheça, temos de ir com
uma secção à Camuanga, depois de pegarmos alguns GEs, mais experientes
do que nós, para nos acompanharem. Quem é que vai comigo?
— Eu não, alferes. — disse o furriel
açoriano.
— Eu também não, alferes. — acrescentou
o Teodoro.
— Quer dizer, têm medo de ir socorrer
camaradas em perigo! Mas gostaram que o pessoal do Quitari tivesse vindo
ajudar-nos, quando nos quiseram apalpar! E o Rodrigues? Não me vai
deixar ir sozinho?
— Alferes, não é um bocado arriscado,
sem levarmos rádio? E se nos atacam?
— Quer dizer que estão todos com medo!
Se virem camaradas em perigo, voltam as costas e deixam-nos entregues à
sorte? Poderia destacar um de vós e obrigar-vos a ir. Mas não o faço. Se
têm medo, vou sozinho com os soldados que quiserem acompanhar-me.
Prefiro ir com pessoal voluntário do que com quem tenha medo! Nunca
imaginei que me dessem esta decepção!
Saí do edifício do comando com uma
sensação simultaneamente de frustração e revolta. Esperava tudo menos
que os meus furriéis mostrassem medo numa situação de perigo. Dirigi-me
a uma das casernas e, uma vez lá dentro, pedi a um dos soldados que
fosse à outra chamar o pessoal, para lhes falar. Com toda a gente
reunida e sem a presença dos furriéis, pus os soldados ao corrente da
situação:
— Já se devem ter apercebido que estamos
neste momento numa situação de prevenção. Como já devem ter dado conta,
o furriel de serviço veio reforçar as sentinelas. Em vez de um homem em
cada posto, passámos a ter dois, para maior segurança. Há umas semanas,
antes do Natal, passámos a noite nos abrigos. Os «turras» tentaram
apalpar-nos, apesar de haver quem não tenha querido acreditar nas nossas
palavras. Agora, às onze da noite, o Costa das transmissões entrou-me no
gabinete a comunicar que a Camuanga estava a ser atacada. Para lhes dar
força psicológica, já que outra ajuda não é possível a esta hora da
noite, mandei o Costa dizer-lhes que, logo que amanhecesse, iríamos com
uma secção socorrê-los. Eu estou disposto a ir com um grupo que não
tenha medo, apesar de estarmos sem aparelho portátil de transmissões,
por falta de baterias.
— E os furriéis? Também vão? — perguntou
um soldado.
— Não! Pus o problema aos furriéis e
eles recusaram-se a ir ajudar os nossos camaradas, com o pretexto de que
estamos sem rádio.
— Mas o meu alferes só tem que indicar
um nome e dar a ordem para o acompanhar. — disse outro soldado.
— De facto assim é! E se ele não acatar
a ordem?
— As ordens são para serem cumpridas,
meu alferes.
— Tens toda a razão. As ordens são para
serem cumpridas. E têm de ser cumpridas, a partir do momento em que as
dê. Mas a situação é de risco! E eu prefiro não ir acompanhado com quem
vai contrariado e acagaçado com medo de morrer. A situação não é para
homens com medo, mas para homens que não o tenham e sigam com o máximo
de atenção e com os sentidos bem despertos, para que nada nos aconteça.
Por isso, estou aqui a falar-vos. Eu estou disposto a ir em socorro dos
nossos camaradas. E quero ir acompanhado com pessoal voluntário,
cauteloso, e que não tenha medo de ir comigo. E estou mesmo disposto a
ir sozinho. Tenho a certeza que os GEs não vão deixar de me acompanhar.
Por isso, peço àqueles que me quiserem acompanhar e que não sejam
casados e com filhos que venham para este lado.
Passados uns instantes, tinha do meu
lado direito um grupo razoável de soldados. Do pessoal voluntário,
escolhi para seguir, logo pela madrugada, o Régua, cujo verdadeiro nome
é Rodrigues, o Carlos Ferreira, o enfermeiro Alves, o condutor Sobreiro,
e mais dois elementos, cujo nome não consigo recordar neste momento.
— O meu alferes está-se a esquecer de
mim? O condutor Monteiro nunca o deixa ir sozinho. Só uma viatura não
chega, alferes. Como é que quer levar o nosso pessoal e mais os GEs numa
só viatura?
— Tens toda a razão. Nem podia passar
sem ti. Estás quase sempre presente, quando é preciso. Só é pena que às
vezes sejas um bocado brusco, intempestivo. Mas a verdade é que és
indispensável. Então já sabem: aos elementos que vão comigo, amanhã,
peço que verifiquem atentamente a espingarda e as munições. Eu irei
fazer o mesmo. Amanhã, mal amanheça, deverão ir levantar granadas e duas
caixas de ração de combate: uma para nós; a outra para os elementos que
iremos procurar à Cabaca. Tomamos o pequeno-almoço e arrancamos logo.
Apenas paramos na Cabaca para pedir a colaboração dos GEs. Cumpram agora
rigorosamente as minhas instruções e aproveitem as restantes horas de
sono.
Perto da meia-noite, tinha levado também
uma tampa do furriel de serviço, que não quis deixar os camaradas sem a
companhia dele. Mandei-o providenciar para que, às seis da manhã,
estivesse um pequeno-almoço pronto para o grupo que ia sair. Redigi uma
mensagem para a Companhia, a participar a saída em socorro da Camuanga,
inspeccionei minuciosamente a G3 e os carregadores e, para aliviar um
pouco a tensão, mantive-me na companhia das sentinelas dobradas até às
duas da manhã, altura em que um dos soldados me chamou a atenção para as
horas:
— O meu alferes não vai dormir? Até
amanhecer, ainda tem umas quatro horas de sono. E logo vai ter de ir de
olhos bem abertos...
— Tens toda a razão! Vou seguir os teus
conselhos. Vou tentar dormir um pouco. Está descansado que amanhã, com a
tensão com que vou fazer a viagem, não vai haver sono que consiga
fechar-me os olhos. Tenciono regressar inteiro com o pessoal. Até
amanhã.
Antes de entrar no gabinete, falei ainda
com as sentinelas que ficam junto ao comando:
— Logo, mal o sol comece a clarear o
céu, agradeço que um de vós vá ao meu gabinete acordar-me. Temos de
partir cedo para a Camuanga.
Com quatro horas de sono, achei que não
valia a pena perder tempo a despir-me e a enfiar-me entre lençóis. Tirei
as botas e estiquei-me sobre a cama. Foi um sono agitado. Foi uma noite
de sonhos pouco agradáveis, que anteciparam negativamente a operação do
dia seguinte. Felizmente que as minas, que se erguiam ameaçadoras do
meio da picada em direcção à viatura e que nós procurávamos evitar,
desviando-nos para um e outro lado, não passaram de um sonho. Se elas
tivessem sido colocadas na picada, não se teriam levantado
ameaçadoramente para nos atingirem. E, seguramente, não estaria agora
aqui a redigir estas linhas. Mas, nos sonhos, tudo é possível. As coisas
mais disparatadas acontecem. Conseguimos mesmo realizar o impossível.
Torna-se fácil respirar debaixo de água. Ganhamos asas, que nunca
poderemos possuir, e voamos livremente pelos ares. Encontramos a miúda
que no baile nos deu tampa, e tornamo-nos com ela as estrelas da noite.
Ao contrário do que imaginara, quando
saí do meu gabinete e quarto, não fui o primeiro. Quando cheguei à
caserna do lado da pista de aviação, já o pessoal estava à minha espera.
O condutor Sobreiro tinha atestado a viatura e passado uma rápida
inspecção, com a ajuda do Piedade, o mecânico auto-rodas.
— Tens tudo em ordem para qualquer
eventualidade funesta? — perguntei ao enfermeiro Alves.
— Sim, meu alferes. Tenho tudo em ordem.
— Levas álcool em quantidade suficiente?
— Vai tudo o que é necessário para
qualquer urgência médica.
— Não é isso... Quero saber se levas
álcool a mais. Vou levar a mochila com a máquina de café e a lamparina.
A meio da manhã ou depois da ração, o pessoal vai apreciar com prazer um
bom café.
— Não se preocupe com isso, alferes.
Temos álcool em quantidade suficiente.
— Está tudo pronto para partirmos? —
perguntei aos condutores.
— Meu alferes, as viaturas estão
atestadas. Com um pouco de sorte, não devemos ficar empanados na picada.
— Bom, vamos então tomar rapidamente o
pequeno-almoço, para podermos seguir.
— Faltam as rações de combate, alferes.
— lembraram os soldados.
— Não me esqueci. Vamos tomar o
pequeno-almoço e depois levantamos o que é preciso. Antes disso, tenho
eu de passar pelo gabinete para enfiar a máquina fotográfica num dos
bolsos do camuflado e pegar na tralha. Vamos agora atestar os nossos
depósitos e despachar-nos, que ainda temos de parar na Cabaca.
Passava pouco das seis e meia da manhã,
quando saímos do destacamento do Alto Zaza. À excepção do furriel de
serviço, que veio assistir à nossa partida, os outros nem se dignaram
levantar-se. Estariam ainda a dormir? Estariam com medo que eu, à última
da hora, mobilizasse algum para nos acompanhar? Estariam retraídos pela
cobardia, sem vontade de enfrentar o pequeno grupo que não receava
avançar em socorro da Camuanga?
Cinco minutos depois, estávamos na
Cabaca. Àquela hora, com o sol já a iluminar o céu, havia uma certa
azáfama na sanzala. Em breve, tínhamos alguns GEs à nossa volta.
— Esta noite, o destacamento da Camuanga
foi atacado. Recebi às onze horas um pedido de ajuda pela rádio.
Necessito da vossa colaboração, para irmos em socorro da Camuanga.
— Meu alféris, o chefe Simão saiu munto
cedo. Não está. Está na sanzala ao lado o chefe Francisco com os
milícia.
O Francisco é um antigo soldado que
ficou em Quimbele, depois de ter acabado a comissão. Gostou da vida
militar ou encontrou aqui um modo de vida tão ao seu gosto, que trocou a
Metrópole por Angola. Deixou-se ficar por cá. Bom conhecedor de toda a
região, ficou a chefiar as milícias. De cabo, com um reduzido pré na
tropa, passou ao posto de chefe e a auferir um vencimento razoável.
— Chamem-me o Francisco, para falar com
ele.
— Está na sanzala ao lado, meu alféris.
— Avança até à outra sanzala. — disse
para o condutor, ao mesmo tempo que fazia sinal ao da outra viatura.
Alguns segundos depois, entrávamos na
sanzala civil, pegada à dos GEs. Em breve, tinha o chefe dos milícias e
alguns dos seus elementos na minha frente.
— Esta noite, recebemos um pedido de
socorro da Camuanga. Vamos agora para lá. Na sanzala dos GEs, verifiquei
que o chefe Simão tinha saído para a mata com um grupo. Disseram-me que
estavam aqui as milícias de Quimbele, comandadas pelo chefe Francisco.
Por isso, aqui vim à sua procura. Posso contar consigo?
— Sim, meu alferes. Pode contar sempre
connosco, para tudo o que for preciso. Conheço bem a região. Já cá estou
há muitos anos. Já fiz parte da tropa, como o meu alferes.
— Vamos ter de ir com muito cuidado.
Pode haver minas. E nem rádio temos, para pedir ajuda.
— Não tem problemas, meu alferes. O
alferes quer ouvir as minhas sugestões?
— Quem sou eu para recusar as ideias de
um homem mais experiente e com muitos anos de guerra?
Por indicação do chefe dos milícias, ele
ocupou o meu lugar, ao lado do condutor. Os homens, que iam no banco de
trás, mudaram também de posição, passando parte deles para a viatura de
trás. No lado da frente, imediatamente a seguir à cabina, colocou dois
elementos de confiança, tendo-lhes dado instruções para prestarem a
maior atenção à picada, para procurarem detectar qualquer irregularidade
suspeita. Eu fiquei do lado do Francisco, imediatamente a seguir a um
elemento dele. Na outra extremidade do banco, em cada lado, ficou também
um milícia. O grupo do Alto Zaza ficou, deste modo, perfeitamente «ensanduichado»,
no meio dos milícias, que tiveram também o cuidado de colocar elementos
na outra viatura. Mais conhecedores e habituados às operações no mato,
confiavam mais na acuidade dos olhos deles do que nos nossos. E seguimos
rumo à Camuanga, rodando devagar, para dar tempo a que os diferentes
pares de olhos inspeccionassem devidamente a picada e a área envolvente.
Curiosamente, ainda que sempre com
alguma apreensão, não senti o mais pequeno receio. O facto de me ver na
companhia de homens muito mais experimentados do que eu e há muito
habituados a todas as dificuldades de uma guerra, que se prolonga já há
vários anos, bons conhecedores da vida na selva, e capazes de nela
sobreviverem sem qualquer dificuldade, tudo isto incutiu-me uma
confiança instintiva e profunda.
A viagem decorreu lenta, muito
lentamente e com os maiores cuidados. Nas zonas mais difíceis, o
Francisco fazia sinal aos condutores e mandava-os avançar mais devagar.
Noutros locais, dava-lhes indicações para acelerarem ligeiramente. Pelo
menos, três pares de olhos experientes perscrutavam atentamente todos os
vestígios antigos de rodados ou de pegadas na picada. Prestavam também
toda a atenção ao estado do capim e outra vegetação na orla do caminho.
A estes três pares de olhos dianteiros juntavam-se os dos milícias que
iam atrás e também os nossos. Todos os ocupantes dos unimogues levavam
os sentidos bem despertos. Todos dávamos a maior atenção a tudo quanto
nos rodeava. Eu próprio procurava observar o caminho à frente da viatura
e os cuidados dos milícias, esperando com eles aprender alguma coisa,
treinando e desenvolvendo os meus sentidos, especialmente a audição e a
visão, para outras ocasiões em que me visse sem a ajuda de gente mais
experiente do que eu.
Na povoação de Quilambiquissa, o
Francisco mandou parar as viaturas. Reinava na sanzala a actividade
habitual de todas as sanzalas. O Francisco e os milícias saltaram do
unimogue e foram falar com os habitantes.
— Deixem-se estar nas viaturas. — disse
para o meu pessoal — Vamos procurar saber informações e seguimos já.
Saltei também da viatura e acompanhei o
Francisco. Na povoação, ouviram o barulho do ataque durante a noite.
Durou pouco tempo. Na área envolvente, os nativos não tinham detectado
movimentação invulgar. Ninguém desconhecido. A vida parecia decorrer na
maior tranquilidade.
Antes de prosseguirmos, observei
demoradamente a área onde, a seguir à povoação, a picada argilosa
descreve uma curva e inicia a subida íngreme. Como a povoação fica
ligeiramente desviada da picada, numa zona planáltica, permite-nos
observar de um plano superior a etapa que considero a mais perigosa de
todo o percurso, com todas as características ideais para uma emboscada
bem sucedida e sem hipóteses de baixas para o grupo atacante.
O chefe do grupo, o Francisco, deve
ter-se apercebido da minha preocupação. Orientou o olhar pelo meu e
inspeccionou atentamente o mesmo local. Não notei nele qualquer reacção,
confirmando a minha observação. Tudo parecia normal e sem o menor
indício de perigo.
Retomámos a viagem. Saímos da sanzala e
reentrámos na picada. Na zona da subida, que se fez sem problemas por
não ter chovido, a terra barrenta estava completamente seca. As rodas
agarravam-se sem dificuldade. Não tivemos surpresas desagradáveis.
Ninguém disparou! Não havia ninguém a emboscar-nos!
A poucos quilómetros da Camuanga, os
milícias mandaram parar as viaturas. Saltaram para a picada e resolveram
efectuar o resto da progressão a pé, inspeccionando tudo minuciosamente
na frente.
Na proximidade da sanzala, a umas
dezenas de metros da entrada íngreme da povoação, surgiram-nos vários
soldados de cor. Ouviram o ruído das viaturas e vieram ao nosso
encontro. Receberam-nos com acenos e, sobretudo, com largos sorrisos de
satisfação, que nos permitiam ver umas fiadas de dentes muito brancas,
contrastantes com o escuro da pele. Éramos recebidos com vivas
manifestações de alegria por soldados e nativos da Camuanga.
Após a recepção pelos soldados e
população, que nos vieram esperar à entrada da sanzala, entrámos e
subimos até ao terreiro central e plano da povoação. Parámos os
unimogues em frente ao amplo coberto de zinco, entre as tendas cónicas e
ao lado de um abrigo, onde está instalado um morteiro. Fomos recebidos
pelo furriel Amândio:
— Chegam numa boa altura. Vou mandar
reforçar as doses, para almoçarem connosco.
— Não é necessário. Obrigado. Trazemos
rações de combate.
— Não veio nenhum furriel com o alferes?
— Não era possível vir toda a gente.
Para vir um deles, não teria vindo eu. Além disso, não temos mais
viaturas disponíveis. Nem um rádio pudemos trazer, por falta de bateria.
Para nossa segurança, dei prioridade aos milícias do chefe Francisco.
Têm mais experiência do que nós. Mas o que é que sucedeu? Já fizeram uma
patrulha de reconhecimento na zona?
— Fomos atacados durante a noite, por
volta das onze horas. Passámos a noite nos abrigos. Foi quando enviámos
a mensagem a pedir ajuda.
— Receberam a minha resposta? Só
chegámos agora, porque viemos com a máxima precaução. Arrancámos do Alto
Zaza ao amanhecer. Viemos devagar, com muita atenção, com receio de
minas ou alguma emboscada. Por isso, demorámos tantas horas. Mas fale-me
do sucedido.
— Não há muito que dizer. Ouvimos vários
disparos durante a noite. Passámos a noite nos abrigos. Não houve
baixas.
— Não terá sido algum animal que tenha
assustado as sentinelas e provocado os disparos?
— Não, alferes. Os disparos vieram de
fora. Existe uma paliçada à volta da povoação, que impede a aproximação
de animais. Só podiam ser terroristas.
— Está certo. Mas não fizeram uma
patrulha de reconhecimento na área envolvente?
— Ainda não. Somos poucos homens. E a
população retomou a vida normal.
— Isso não significa nada. Podem ter
deixado algumas surpresas nos trilhos por onde vocês vão ao
abastecimento da água. O que é que o Francisco pensa?
— Penso que o meu alferes tem razão. É
melhor ver. Podem haver minas.
— Também acho. A seguir ao almoço, o
furriel reúne um grupo. Vamos, com a ajuda dos milícias, efectuar um
pequeno patrulhamento na zona. É melhor termos a certeza que não terão
problemas.
Logo a seguir à refeição, efectuámos um
patrulhamento da área envolvente. Descemos com precaução o trilho
íngreme e difícil que leva à linha de água, onde a tropa e a população
se abastece, quando não obtêm o precioso líquido directamente das fortes
chuvadas da época. O trilho, além de íngreme, é estreito e perigoso. Há
um espaço entre rochas, que não permitem sair do estreito caminho. É um
local que poderá tornar-se numa armadilha fatal, se o carreiro for
semeado com minas anti-pessoal. Foi esta a minha preocupação e o local
onde senti um certo receio de pousar os pés. Foi também a zona que
preocupou o grupo de milícias que nos acompanhou. Não deixaram avançar
sem uma inspecção minuciosa e cautelosa. Felizmente, não havia nada. O
trilho estava limpo. Mas não deixei de chamar a atenção do furriel para
os cuidados a ter futuramente, quando tiver de passar por ali.
Entrámos na Camuanga cerca de duas horas
mais tarde, depois de termos contornado toda a base da colina.
Enquanto o meu pessoal dispersou, para
descansar da caminhada difícil que acabáramos de fazer, eu aproveitei a
companhia do furriel e do chefe Francisco. Demos uma volta pela sanzala.
O Francisco fez algumas recomendações pertinentes e sensatas ao furriel:
«Prestar atenção na descida do trilho para a água, por causa de
possíveis minas; avisar a população nativa para prestar atenção a gente
desconhecida e suspeita que encontre, nas deslocações às lavras e às
linhas de água...» Em suma, recomendações de quem já tem uma experiência
de longos anos de guerra e de vivência na região.
— O alferes vai embora hoje? —
perguntou-me, a certa altura, o furriel Amândio.
— Trouxe comida apenas para um dia.
Embora cada um de nós tenha levantado duas rações de combate, uma delas
foi fornecida aos elementos que trouxemos connosco da Cabaca. Porquê?
— Ficávamos mais tranquilos se o alferes
não fosse hoje embora. O pessoal ficou nervoso. E era também um apoio
para a população, que ficou assustada.
— Podemos ficar esta noite, se o
Francisco também não se importar. Mas amanhã teremos de arrancar bem
cedo. Não posso deixar o Alto Zaza abandonado. Para mais, ficaram sem
viaturas para irem à água e à lenha. Posso dar-lhe algumas sugestões?
— Sim, alferes.
— Verifico que, se a Camuanga for
seriamente atacada durante a noite, ou mesmo de dia, ninguém tem a menor
segurança. Com a paliçada à volta, não há hipóteses de saber se alguém
suspeito se aproxima.
— Apenas há selva e montes a toda a
volta, alferes.
— Claro. Mas os acessos só se podem
fazer pelos trilhos. Logo, será por eles que alguém poderá aproximar-se.
Devia haver sentinelas nos pontos perigosos, mesmo durante o dia. E se
houver um ataque com morteiros, a população não tem onde se abrigar das
ameixas que vos caiam em cima. Tirando os vossos abrigos, à volta das
tendas e coberto, não há mais nada. Era altura de falarem com a
população acerca deste problema e construírem abrigos. Nunca se sabe
quando poderá acontecer algum ataque a sério. E depois de mortos, já não
vale a pena cavar os abrigos.
O Francisco, que nos acompanhava, seguiu
com atenção as minhas palavras. Entendeu perfeitamente o que eu queria
dizer e reforçou a minha opinião. E as palavras devem ter produzido
algum efeito! Depois de me ter afastado momentaneamente do grupo, para
me distrair um pouco na observação dos costumes da sanzala, vi os
milícias na conversa com a população nativa. Falavam e gesticulavam
muito. Será que estavam a falar da defesa e da construção de abrigos?
Pilando e
peneirando a fuba, na sanzala da Camuanga, sector de Uíje, em Angola.
Fotografia de Henrique J. C. de Oliveira, 1973.
A minha reflexão foi perturbada pelo
barulho de um pilão. Uma mulher, junto à cubata, erguia um pau grosso e
deixava-o cair, ritmadamente, num enorme almofariz de madeira cheio de
mandioca. Apalpei o bolso das calças do camuflado. Desapertei o botão e
tirei a máquina fotográfica. Efectuei o enquadramento, mostrando a
mulher a trabalhar. Um miúdo escondeu-se atrás da estaca que suporta o
telhado de colmo. Espreitava-me com curiosidade e surpresa. Por detrás,
passava um elemento militar do destacamento. Carreguei no botão de
disparo e ouviu-se o «clique» da máquina. Continuava a funcionar, apesar
de ter andado todo o dia aos balanços, enfiada no bolso do camuflado.
— E já agora, qual vai ser a ementa? —
Foi esta a pergunta que fiz aos cozinheiros.
— Meu alferes, vamos comer uma
bacalhoada de bacalhau esfiado com arroz.
— Não é nada mau! Sempre é melhor que o
nosso almoço de hoje, que foi da ração de combate.
O ter de passar a noite na Camuanga não
estava nos meus planos. Tinha previsto, na véspera, uma viagem com ida e
volta no mesmo dia. Por isso, nenhum de nós viera prevenido com material
para dormir: nem cobertor, nem tenda! Se, de manhã cedo, estivesse a
chover, ainda teria trazido a capa impermeável do camuflado. Embora seja
para a chuva, talvez ajudasse a manter o calor do corpo durante a noite.
Mas nem esta peça do vestuário, que raramente utilizo, veio comigo.
Depois do jantar, no final do dia,
resolvi passar a noite na conversa com o furriel Amândio e o Francisco,
o chefe dos milícias. Até à uma da manhã, o tempo passou depressa. O
Francisco aproveitou a minha presença para recordar o tempo de tropa.
Fizera parte de uma Companhia que passou por Quimbele e pelo Cuango, no
princípio da década de mil novecentos e sessenta. No final da comissão,
resolveu ficar por Angola. Regressou a Quimbele e passou de cabo a chefe
dos milícias. Não há área nenhuma desta região de Angola onde ainda não
tenha estado e que não conheça como as suas mãos. Apesar de branco,
assimilou alguns costumes nativos. Além de efectuar diferentes
patrulhamentos na zona, é também responsável por vários grupos de
milícias, civis nativos devidamente treinados e armados para defesa das
povoações, no caso de ataques terroristas. Foi uma sorte ter coincidido
o ataque à Camuanga com a presença dele na Cabaca, onde viera, segundo
depreendi, controlar as milícias e dar assistência à miúda nativa que
tem na sanzala. Talvez por isso o Francisco nunca tenha pensado em
casar. Prefere ir dando assistência às várias mulheres que tem nas
diferentes zonas por onde periodicamente vai rodando.
— E da terra onde nasceu, não tem
saudades? — perguntei-lhe a certa altura da conversa.
Lá ter saudades, evidentemente que tem.
Mas aqui é alguém importante, com ordenado certo ao fim do mês,
conhecido, e com alguém que o ama em vários pontos por onde vai tendo de
passar, para cumprir a sua missão como chefe dos milícias e como homem.
E se miúda havia na Metrópole, há muito o terá esquecido e constituído
família. A família dele, agora, são todos os elementos desta vasta
região, onde se sente perfeitamente integrado.
Por volta da uma da manhã, depois de ter
passado algumas rondas, sentei-me junto do meu pessoal, próximo do lume
onde se cozinha.
Afagado pelo calor da fogueira, os meus
olhos estavam a querer fechar, quando fui assaltado por um burburinho
proveniente das sentinelas.
— Alferes, estamos a ser atacados. Anda
gente à volta da Camuanga.
— Como assim?
— Anda gente. Vêem-se umas luzes
esquisitas a apagar e a acender. São turras a darem sinal uns aos
outros.
— Mas que disparate! Se fossem turras,
não andavam a acender luzes de maneira a serem vistos pelas sentinelas.
— É verdade, alferes. Eu próprio vi as
luzes a apagarem e a acenderem.
Levantei-me contrariado e reuni uns
soldados, para irmos ver o que se passava:
— Malta, vamos ver o que é. Há algo fora
do normal. Venham daí e não façam barulho. Onde é que viste as luzes?
— Ali daquele lado, alferes.
— Vamos lá. Com cuidado e em silêncio.
Aproximámo-nos do local com a maior
precaução e sem qualquer ruído. Quando lá cheguei, verifiquei que havia
uma luzes estranhas. Também eu as estava a ver. Lá estavam elas, mas...
A sua frequência era bastante cadenciada. E havia luzes que desapareciam
dum sítio e surgiam depois noutro, um pouco mais adiante. Achei
estranhíssimo. Nenhum terrorista, por muito estúpido que fosse, faria
sinais de luzes tão visíveis e cadenciados como aqueles. Fui avançando
devagar. Cada vez mais perto e as luzes cada vez mais distintas, a
flutuarem no ar.
— Malta, podem aproximar-se sem receio.
Não há qualquer perigo. Venham admirar os terroristas que vos
assustaram.
E admirámos, com um certo encanto,
aqueles terroristas que piscavam de um lado para o outro, junto dos
arbustos. Eram pirilampos. Eram pirilampos de um tamanho descomunal,
muito maiores do que aqueles que observamos na Metrópole, nas nossas
aldeias, nas noites quentes de Verão. Um punhado deles, dentro de um
frasco de vidro, seria uma óptima fonte natural de iluminação. Seria uma
fonte de luz fosforescente, capaz de iluminar o bastante para vermos
quase perfeitamente à nossa volta.
Regressei ao afago do calor da fogueira.
E adormeci, finalmente, para um curtíssimo mas profundo sono. Quando
abri os olhos, observei os ponteiros fosforescentes do relógio
Caunymatic, que comprei na messe do quartel, em Mafra, durante a
especialidade. Marcavam cinco da madrugada. Levantei-me e passei uma
nova ronda. Conversei um pouco com as sentinelas. As estrelas começavam
a desvanecer-se, à medida que o manto da noite começava a ceder o lugar
a uma claridade cada vez mais esbranquiçada. Em breve, teríamos o
astro-rei a surgir por cima das elevações que rodeavam a Camuanga. Já
não valia a pena voltar a dormir.»
Após este evocar de um caricato
episódio, com um amanhecer que muitos terão conhecido, quando passaram
por Angola e, sobretudo, quando andaram em operações, durante dias, no
meio do mato angolano, vejamos uma situação que, de certeza absoluta,
todos os que suportaram dois anos de guerra em África viveram e
apreciaram muito mais do que muitas outras coisas.
Um dos grandes problemas do pessoal, ao
fim de alguns meses de mato e de cacimbo, eram as saudades da terra, da
família e dos amigos. Por isso, tirando os programas de rádio da
Emissora Nacional, que ouvíamos através das ondas curtas, o melhor
refrigério para as saudades eram os momentos da chegada do «reab»,
porque, com ele, vinha também o alimento mais apetecido: as notícias de
casa e, não raras vezes, umas lembranças enviadas pelos familiares. De
vez em quando, além do correio e dos já familiares aerogramas,
chegavam-nos encomendas com gulodices da terra. Ele era um queijo
daqueles que tanto apreciávamos, ele eram umas chouriças e outros
enchidos, escurecidos ao fumo das lareiras da casa paterna, em suma,
aqueles mimos gastronómicos que só existiam e podíamos saborear no nosso
ninho paterno, na companhia da família e dos amigos. E eles chegavam-nos
regularmente, juntamente com o correio, para nos ajudar a matar as
saudades.
Daí que, uma das melhores invenções da
altura, para além do Serviço Postal Militar, em Setembro de 1961, foi o
sistema de correspondência criado para o efeito, que não carecia de
portes postais. Era totalmente gratuito para todos os que procuravam
corresponder-se com os militares em serviço no Ultramar. Esse sistema
era constituído pelos aerogramas, o nosso suporte amarelinho para as
linhas de grafia ou outras formas de comunicação complementares da
escrita.
Como eram os aerogramas utilizados na
época?
Essencialmente amarelos, mas não apenas
desta cor, porque também os tivemos de um azul clarinho, a verdade é que
este suporte de escrita era prático. Enquanto aberto e sem qualquer
informação, apresentava aproximadamente as dimensões de uma folha A4.
Era dobrável. Fechava-se graças à cola que trazia. Adquiria, desta
forma, as dimensões dos envelopes. Muito melhor do que a descrição de um
aerograma, é a sua apresentação visual. Conservamos um dossier com
centenas de aerogramas escritos entre 1972 e 1974, pelo que se torna
fácil seleccionar um exemplar para apresentação como documento
fotográfico de uma época em que, por dia, deveriam circular uns milhares
de exemplares, entre Portugal e as então designadas províncias
ultramarinas.
Um exemplar dos
aerogramas utilizados para correspondência entre militares e familiares
ou amigos.
Poderíamos aqui referir episódios
curiosos, relacionados com a chegada do correio. Mas, neste momento,
parece-nos, muito mais importante lembrar um aspecto comum a quase todos
os militares e que anda sempre esquecido. Esse aspecto diz respeito às
nossas mascotes. Desde o posto mais baixo ao mais elevado, raros eram
aqueles que não possuíam a sua própria mascote, isto para não falarmos a
um nível mais amplo, como seja o do grupo ou o da companhia ou batalhão.
Os animais foram sendo, ao longo da
existência da Humanidade, a companhia fiel em todos os momentos, desde
os mais agradáveis aos mais funestos. E a tropa não constitui excepção.
Geralmente, quando os maçaricos chegavam
a uma zona, já lá tinham as mascotes à sua espera. Elas passavam quase
sempre de uns grupos para os outros. Para além da transmissão de poderes
e do material militar, era tacitamente feita a transmissão de todos os
haveres orgânicos, porque recebíamos não só os animais, mas também as
plantas e até as lavras, quando calhava haver nos grupos pessoal que
gostava de ter o seu canto numa zona baixa, humedecida pela linfa
criadora de uma linha de água.
Mas restrinjamo-nos às mascotes de duas
ou quatro patas, já que as plantas e ornamentos herdados, não sendo
levados por nós, não tinham a particularidade de nos seguirem para onde
quer que fôssemos. As mais altas patentes tinham geralmente um papagaio
ou um cão de raça, para lhes fazer companhia. Os restantes
contentavam-se com espécies com menos «pedigree». Eram por vezes os
nossos irmãos macacos, os nossos parentes afastados na escala da
evolução, mas sobretudo os cães e os gatos. E não posso deixar de aqui
referir a inteligência de alguns dos nossos amigos de quatro patas.
Estou agora a lembrar-me daquele cão meio cego, o Trotil, que encontrei
no destacamento de Marimbanguengo, em Angola. Era um animal de rara
inteligência e verdadeiramente amigo dos soldados. E digo de rara
inteligência porquê? Muito simplesmente porque o animal distinguia
perfeitamente as patentes militares e fazia a selecção entre tropas e
civis. Assim que tomei posse do destacamento, ele atrelou-se a mim. Para
onde quer que me deslocasse, seguia-me a curta distância, como se fora a
minha segurança pessoal. Quem lhe explicou que era eu o comandante do
destacamento? Aquilo foi pura e simplesmente o resultado de uma invulgar
intuição. Se eu permanecia sentado à porta do gabinete, fazia-me
companhia. E ai de quem quisesse entrar no destacamento sem autorização!
Embora com problemas de visão, devido a uma brincadeira estúpida de um
soldado de um grupo anterior ao nosso, o faro apurado e o ouvido sempre
atento não lhe deixavam escapar nada. Só depois da permissão do
comandante o civil podia entrar sem ter de prestar contas aos dentes do
animal. Quando o sol desaparecia completamente e era o momento de
colocar as sentinelas nos postos, então, depois de uma lambidela numa
das mãos do alferes, o cão afastava-se e ia dar ajuda aos soldados. Era,
sem dúvida, a melhor companhia das sentinelas do destacamento, sempre
atento ao mais pequeno sinal de perigo. E os soldados não passavam sem
ele durante todo o decurso da noite.
Apesar de termos ainda um elevado número
de tópicos registados, cujo desenvolvimento não deixaria de suscitar o
interesse de todos os leitores que passaram por terras longínquas,
durante um longo período de cerca de vinte e quatro meses, iremos
terminar as nossas palavras com uma homenagem simbólica a todos os
portugueses desta época. Não são apenas os elementos de Cacia que são
aqui lembrados. Por todo o nosso País, foram milhares os que conheceram
outros sóis. Por isso, vamos simbolicamente render-lhes aqui a nossa
tácita homenagem, recorrendo a um espólio colectivo feito com a
colaboração de muitos. Desse espólio, reproduzem-se, nas páginas
seguintes, uma imagem de cada lugar, abrangendo as várias regiões por
onde os portugueses andaram. No final, será registada uma lista
alfabética com a totalidade dos nomes que contribuíram para essa
partilha, lembrando-lhes, a eles e a outros que ainda aqui não figuram,
que estarão sempre a tempo de partilhar aquilo que guardam como memória
de uma época passada e por todos nós intensamente vivida.
Aveiro, 19 de Março de 2010
Henrique J. C. de Oliveira |