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– Continuação da pág.
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Interiormente, nas casas de melhor
aspecto, os tectos de masseira, de castanho, cobrem os aposentos numa
tradição que deve entroncar com os trabalhos de ensamblaria dos
artífices árabes, que tantos vestígios deixaram na nossa habitação, nas
rótulas, balaústres e alpendres (cfr. pág. 38, Alfarge). São
frequentes ainda, em certas vilas do norte, ao alto das janelas, os
ganchos de ferro onde se prendiam as adufas, que tapavam as aberturas
antes da aplicação das vidraças. As fachadas de granito das casas
beiroas oferecem por vezes um grande carácter de força austera e sóbria,
como se vê para os lados da Guarda, Mangualde e
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outros pontos. Também nas aldeias de encosta, por onde se escalonam os
enormes blocos graníticos, alguns em prodigioso equilíbrio, há
casas-cavernas, talhadas na rocha viva, que lhes fornece a área do
pavimento, além de uma ou duas paredes, servindo-lhes em alguns casos de
cobertura, pelo aproveitamento de grandes lajes que avançam sobre os
esteios naturais e formam vastas palas monolíticas. É a antítese da casa
de adobe (ou adobo, adobe ou adoba em
espanhol), paralelepípedo de barro a que se mistura palha cortada, seco
ao sol ou ao forno, e privativo das regiões onde de todo falta a pedra,
como nas zonas geológicas de formação recente, tais as das cercanias
imediatas de Aveiro.
É este o antiquíssimo exemplo da Mesopotâmia, com
as suas muralhas de adobes secos ao sol do mês de Nizam, chamado
do tijolo, muralhas que uma cheia levava às vezes na
impetuosidade da corrente. Mas o tijolo ou ladrilho (ladrillo em
espanhol) é o barro cozido, e não simplesmente seco, assim como a
taipa (esp. tapiel), de tanto uso também em certos pontos da
Beira Litoral, é uma argamassa de terra e gesso calcada entre duas
tábuas. Outras vezes é o xisto, a pedra lousinha, que fornece
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quase todo o material das construções: vemo-lo na serra da Lousã, por
exemplo na faixa pré-câmbrica do distrito de Aveiro e nas zonas xistosas
da Beira Alta (parte do Caramulo, Gralheira, etc.). Quem da vila de
Lousã, rodeada da sua cinta de olivais, sobe a vertente da serra que
leva ao ponto culminante do Altar de Trevim e a portela que, próximo
dele, põe em comunicação a Beira Alta com a Estremadura beirense, não
pode deixar de notar os casinhotos de xisto, que na vertente oposta
parecem subir a serra, pegados à rocha e alinhados ao lado uns dos
outros, como cortejos de «processionários»), casinhotos rasgados de
raras aberturas, e que por vezes se confundem de tal maneira com a
própria rocha que parecem fraguedos também.
Em algumas regiões serranas são
frequentes as habitações colmadas ou cobertas de giestas. Por vezes,
como nas cercanias de Mangualde e em alguns pontos do distrito de
Coimbra, vêem-se casas-cubatas, choupanas ou choças primitivas,
cilíndricas, formadas de pedra solta e cobertas por aquele material. Nas
zonas onde há o xisto, a cobertura é muitas vezes de lousa, como no vale
do Paiva, na região montemurana e em Macieira do Sul. Na linha de
contacto, o granito é usado na construção das paredes e o xisto na
cobertura (Manhouce, Albergaria-das-Cabras). Em toda esta região
serrana, as aberturas são em geral sumárias e pouco numerosas.
Nas zonas mais baixas do litoral, a telha
forma a cobertura geral das habitações. Percorrendo a linha férrea do
Norte, ao chegarmos aos arredores de Coimbra, não nos deixa de
impressionar a brancura, claridade e nitidez das casas, postas em
equilíbrio com a paisagem, numa nota de doçura rural e de pulcra
alegria. É a região calcária, onde a alvenaria dá, com os seus
variadíssimos recursos, um grande pitoresco às habitações, pelo emprego
do tijolo, do azulejo, da telha recortada, da figura decorativa, que na
faixa litoral de Aveiro e Coimbra ornamentam as empenas com figuras de
olaria popular, modeladas na própria telha: leões heráldicos, de aspecto
quimérico, perus, pombas, não deixando de empregar as telhas recortadas
na ponta dos beirais.
A pedra de Ançã, macia e alva,
extraída, com relativa abundância, nos arredores de Coimbra, das camadas
do calcário bajociano material mais dócil,
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embora friável, permite os lavores mais delicados da pedra. Grande parte
das construções arquitectónicas da Beira Litoral, tanto civis como
religiosas, são feitas nesta matéria tão plástica, embora tão pouco
resistente às intempéries: de pedra de Ançã são os túmulos de S. Marcos,
de Góis, da Trofa do Vouga ou de Oliveira do Hospital, as capelas de
Cantanhede, Varziela, de S. Marcos, Penela, do palácio da Ega.
No baixo distrito de Aveiro, nas margens
do Vouga inferior, parte das construções aproveitam também como material
os arenitos, vermelhos do triássico da região do Eixo e Eirol.
Na Beira duriense, nas encostas que se
voltam para o rio, as casas são muito caiadas como no Algarve, embora a
sua traça arquitectural seja diferente; chegam mesmo a cobrir de listas
brancas de cal os próprios telhados, que assim apresentam alternadamente
faixas de um vermelho vivo e de um branco alvinitente; ao lado,
contrastando com este branco e este vermelho, perfila-se geralmente o
tronco negro dum cipreste.
Na casa citadina, pela infiltração das
correntes da moda, por vezes de influência cosmopolita, a habitação foge
ao emprego dos elementos construtivos espontâneos da casa rural, para se
engalanar com os factores dos estilos arquitectónicos que nos vários
períodos históricos foram renovando inicialmente os
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monumentos religiosos. Assim o gótico, o manuelino, a arquitectura
renascentista deram exemplares de trechos decorativos que ainda hoje se
admiram, portas e janelas de curvas policêntricas, ornamentadas com a
sinuosidade da corda, flanqueadas pelos colunelos torcidos, tão da
simpatia da arte portuguesa dos começos do séc. XVI, e depois a
simplicidade clássica, com a perfilagem das suas pilastras, das suas
cornijas e dos seus frontões.
Do séc. XV pode citar-se, como um dos
exemplares mais curiosos, embora de grande simplicidade, o solar dos
Metelos, em Freixeda do Torrão, de austera silharia de granito, ligada
por um arco e um passadiço a uma torre gótica, com os seus dois balcões
de cachorros recortados, de pitoresco e elegante perfil.
Ao manuelino pertencem a casa onde é
tradição ter nascido D. Duarte, em Viseu, e o palácio da Ega, no
concelho de Condeixa. Exemplar rico desse período é a casa de Sub-Ripas,
em Coimbra, quase plateresca, mas com o calabre do estilo bem patente no
portal, emoldurando-o ao alto a modo de sanefa de pedra e correndo num
frémito sob os janelões que o ladeiam superiormente. São frequentes os
portais e janelas
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desta época na cidade do Mondego e em alguns solares espalhados pela
zona das Beiras (S. Pedro do Sul, Gouveia, Monsanto, etc.).
Do período do Renascimento podem citar-se
alguns edifícios em Coimbra, como o paço episcopal, de tão curioso
pátio, hoje transformado em museu.
Dos séculos XVII e XVIII, e
principalmente da época barroca, há exemplares de maior gosto e também
de maior carácter, da casa portuguesa, tanto citadina como rural. Na
Beira, devem mencionar-se, entre os mais notáveis exemplares, alguns
palacetes e casas solarengas de Viseu, Guarda e Aveiro. Citaremos, em
especial, o palácio dos condes da Anadia, em Mangualde, com a sua
guarnição, nas janelas, de aventais lavrados em bom gosto; a simples,
mas tão graciosa casa de S. Miguel, em Viseu, com a dupla escadaria
subindo do terreiro até ao alpendre apoiado em delicadas colunas; a casa
do Cabo, na Pesqueira, dos Pais de Sande Castro, e hoje pertencente à
baronesa de Fragozela; o palácio dos Ramalhos, em Condeixa-a-Nova,
actualmente do capitalista Cândido Sottomayor; o solar dos marqueses da
Graciosa, em Anadia; uma bela casa à beira
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da estrada de Viseu a Moimenta da Beira, entre A-de-Barros e Rua, etc.
Antes de concluirmos esta nota, não
queremos deixar de referir-nos à construção dos palheiros do litoral:
obedece esta ao princípio pré-histórico da construção lenhosa que nas
palafitas (do italiano palafitta, estacas, pilotis em
francês) dos lagos alpinos (Suíça e Sabóia) e nos terramares da planície
lombarda, estações sobre estacaria estabelecidas sobre terra firme,
impôs os primórdios da habitação humana, quer por Insuficiência técnica
quer mais provavelmente pela necessidade da utilização da madeira, na
falta de material mais duradoiro e sólido. As pranchas pintadas de
vermelhão elevam-se sobre estacaria em obediência ao ritmo invasor da
duna, da qual pretendem esquivar-se, quando esta, passando-lhes por
baixo, se vai reformar mais adiante ou prolongar-se ainda para mais
longe. Vão da costa de Aveiro (Torreira, S. Jacinto, Costa Nova) até
para além do Cabo Mondego, à Praia de Vieira, (vol. II, pág. 693),
estendendo-se, por conseguinte, por toda a fímbria marítima da Beira
Litoral. Construções da zona movediça, são efémeras diante da constante
deslocação do mar de areia.
Falando do emprego da madeira na
construção, não podemos deixar de nos referir ainda às pitorescas
varandas corridas, análogas às balconadas de Navarra, que se
encontram em muitos lugares da Beira, como em Manteigas, Unhais da
Serra, algumas povoações do concelho de Tarouca e em Monsanto, a aldeia
beiroa, que pela singularidade da sua posição e fisionomia, é tida como
a mais linda aldeia portuguesa.
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