As
diferenças acentuadas de paisagem, de condições económicas de existência
oferecidas pela sua multiforme exposição geográfica, pelo seu variado
solo e clima, fazem da Beira uma complexa unidade provincial
particularmente rica em expressões populacionais. As feições muito
próprias das numerosas regiões diferenciadas que a constituem
determinaram naturalmente nos núcleos humanos, que nelas se formaram e
aclimataram, usos e costumes particulares, modos relativamente distintos
de ser, de vestir, de alimentação e habitação. Há uma distância bem
notória, por exemplo, tanto nos aspectos exteriores como íntimos, entre
o pastor cuja existência decorre nos grandes silêncios da Serra da
Estrela, solitário e nómada, periodicamente transpondo o vale com os
seus rebanhos, nas suas migrações transumantes, em demanda ou no
regresso dos pastos das serras secundárias, e o beirão convivente do
litoral, acumulado em buliçosas povoações, pescador e cultivador de
polders e campos de aluvião, cruzando-se a cada instante em
bicicleta nas estradas planas, com a sua alfaia de lavoura ao ombro, ou
deslizando, no seu barco, entre nateiros, pelos labirínticos canais;
levando cargas de adubo marítimo ou apetrechos de pesca. Se o primeiro
tem na sua fisionomia alguns traços de homem originário, constituindo
seguramente na Europa uma das sobrevivências mais características de
montanhês primitivo, e sugerindo, pelo seu ar vagamente telúrico, alguma
coisa de reminiscente das eras em que se construíam os dólmens e os
castros (que a cada passo nesta região se encontram), o segundo tem já
as feições e
/ 21 /
mentalidade um pouco cosmopolitas peculiares das populações atlânticas
do ocidente europeu, habituadas ao trânsito frequente e à emigração.
Um exame sumário da extensa periferia do conjunto das
três províncias beiroas facilmente nos revela, além dos dois tipos
extremos apontados, a existência de muitos outros. Assim, a nordeste, é
relativamente distinguível o beirão raiano das ribas e elevadas
ondulações do Côa, pela sua compleição pacífica, laboriosa, lhana,
sensivelmente afim da do trasmontano do planalto fronteiro de Miranda.
Na Beira Baixa, além do tipo beirão chamado o ratinho, que na
época das canículas passa a fronteira ou o Tejo, em enxames humildes,
assalariados para as tarefas ofegantes das ceifas, apontemos o
cultivador dos extensos plainos de trigo dos confins meridionais da
província, já tendencialmente de feitio prenunciador do alentejano.
Passando-nos para o flanco marítimo, fácil nos será discriminar uma
sucessão de tipos populacionais bastante afastados do beirão genuíno do
interior da antiga província, notando as características estremenhas do
íncola da região do Lis, observando o cultivador e o guarda de gado do
Baixo Mondego, no qual se reflectem vagos ares de campino e trabalhador
do Ribatejo, conhecendo
/ 22 /
a existência do magro gandarês, nas dunas, e a do seu vizinho da
Bairrada,
todo ocupado nas vinhas, e mais ao norte, confrontando o homem
da lavoura, meio minhoto, algo patriarcal (como a retina emotiva de
Júlio Dinis daí recolheu) dos vales de Cambra, com a população
vareira, das redondezas da ria de Aveiro, parte empenhada na
safra, ao longo da costa, parte no arranque do moliço, enquanto aqui e
além, à porta das casas térreas e brancas conversam e descansam alguns
homens nos intervalos das longínquas companhas nos bancos da Terra Nova.
Não se pode dizer, portanto, tendo presente toda a Beira nas suas
múltiplas feições, que o beirão seja, como é por exemplo o
trasmontano, um tipo humano ou provincial unitário. É-o, sim,
restringindo os limites da província tradicional ao que poderemos chamar
seu solar; quer dizer, olhando apenas a Beira que tem como vulto
dominador do horizonte o vulto da Estrela; então encontraremos um
escrínio de população rústica e serrana portadora de qualidades
relativamente homogéneas e vincadas.
A acção de presença das grandes montanhas na
/ 23 /
modelação da mentalidade e temperamento dos povos é um fenómeno que a
sociologia de escola a custo aceita. O certo é que essa acção, por
indiscerníveis filtros, se exerce, imprimindo como que uma sugestão de
firmeza e amplitude de alma nos que nascem e se criam sob o seu discreto
influxo. A presença da Serra da Estrela não é certamente um dos factores
menos informadores das virtudes que caracterizam o beirão. Quando
Júlio César, como pretor da Lusitânia, quis impor à população dos vales
e dos castros dos Hermínios a fixação nas terras baixas do litoral, não
o fez, possivelmente, só por razões militares, mas também digamos por
razões espirituais, sentindo quanto a altitude ou a proximidade
da altitude, por si só, contribuía de certo para o carácter
dessas tribos insubmissas.
Dotado destas grandes forças de alma e do corpo que se
chamam franqueza e frugalidade, espírito liberal e senso positivo,
hombridade e coração desafrontado, o habitante da gema da Beira
constitui, com o trasmontano, (como no voI. I deste Guia, pág.
64) houve ocasião de se afirmar), o elemento mais resistente da amálgama
étnica portuguesa. Os dois traços éticos mestres do seu carácter são a
rudeza voluntariosa e a largueza de ânimo: a primeira exprime-se na
convivência do beirão no seu modo incisivo e franco de falar, de
responder, de pôr uma questão e resolvê-la; a segunda,
/ 24 /
no desembaraço com que abre a porta ao desconhecido e ao pobre, na
presteza com que estende os braços ao amigo e se reconcilia com quem
julgou ser seu adverso. Por essas virtudes (que, nos maus momentos, não
deixam de se apresentar como reversos passionais, tão hispânico e
violento é no desforço, no ciúme e na revindicta) o exemplar beirão é,
sem discrepância, um dos elementos provinciais que melhor guardam os
primitivos tiques e predicados do português classicamente rústico de
antes quebrar que torcer.
Outro
factor que não deve ser tido como alheio ao feitio duro do beirão
serrano é o clima áspero que suporta e a constituição pedregosa da terra
sobre a qual moireja. Como na grande trincheira duriense, escavada de
cima a baixo, por um esforço obscuro e ingente de muitas gerações, a
terra central da Beira obriga o cultivador a grandes canseiras para dela
receber em troca uma magra demasia. Em Lafões, por exemplo, «os campos
cultivados dão por vezes a impressão de gigantescos anfiteatros
denotando prodígios de aproveitamento da terra arável pelo homem», (Amorim
Girão). Essa pugna surda e monótona contra um solo íngreme e pobre,
em grande parte descarnado pelo desgaste erosivo, tem necessariamente de
reflectir-se na dureza característica de trato do nativo. O beirão do
litoral, esse, (salvo o gandarês), mais ajudado da água e dos terrenos
de aluvião que desceram das montanhas, acusa na residência, no vestuário
e na fisionomia, uma relativa suficiência que lhe subtraiu bastante as
duras feições que distinguem o seu irmão do interior.
________________________________________
(1)
– Por SANT'ANNA DIONÍSIO (até Alimentação, inclusive).
|