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farol n.º 18 - mil novecentos e sessenta e cinco ♦ sessenta e seis, págs. 19 e 20.

No bicentenário de Bocage

Jorge Abreu

CORRIA tumultuoso o ano de 1765. O homem setecentista vivia num século diferente, num século em que se procurava esquecer o passado e construir um Presente novo. Foi neste ambiente que Bocage viu a luz. Cresceu e gastou os cinco anos, que havia de consagrar à Academia Real da Marinha, em botequins, outeiros e boémias. A sua figura pertence ao número dos característicos frequentadores do Agulheiro dos Sábios, dependência do Nicola.

Foi neste sórdido meio que cultivou a veia repentista, o pensamento mordaz, a resposta ágil e hilariante, provocadora dum volta face.

Egocentrista, perseguido pela ideia dum segundo Camões, ei-lo, como este, minando-se em Goa conhecendo a vida irreverente e injusta dum vate desconhecido. E é Gertrúria que o conforta e em sonhos o afaga. Volta à Pátria e a Setúbal. Aí sabe da triste (para si) nova: a sua Gertrúria, a sua fiel Gertrúria casara com seu irmão. Pobre poeta! Ei-lo mais trágico do que nunca, reengolindo às mãos cheias a dor que lhe sobejava, recalcando-a bem em si. E os seus versos são os seus confidentes, leais, porque são mudos. Então, Bocage, em tom laudatório, soando a falso, veste-a com o pesado samarrão do léxico arcádico. É o alvor de algo que agora mal se conhece, que é um fito duma revolta, uma esperança que mude a vida que se vive; não interessa se conduzirá a uma Desilusão, o que importa é que se mude o que está mal ou parece está-lo. Vamos encontrar Bocage a estalar a carapaça rígida do arcadismo e a sonhar-se languidamente recostado à sua amada, mas, de súbito, a sua imagem evapora-se e o poeta desfaz-se em angústias e melancolias.

Na vida igual de cada um ele é um revoltado, é um idealista com boas intenções, que por tudo e por nada se exalta. Já depois / 20 / de se integrar na Nova Arcádia, de contra ela se rebelar e em especial contra José Agostinho Macedo, conhece o limoeiro. Razão? Devido às suas ideias liberalistas ser considerado Pedreiro-livre. Tem que se retratar e, quando de lá sai, vai purificar-se nos mosteiros de S. Bento e dos Oratorianos. Alquebrado, chama de vela a extinguir-se, trabalha afincadamente. Camões continua a persegui-lo. Morre pobre, paupérrimo. Parece-me vê-lo balbuciar, cabelo na fronte suarenta, olhos quase vítreos:

– Já Bocage não sou!...

 

 

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08-06-2018