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HOMEM
CRISTO E O LICEU DE AVEIRO
(actual Escola Secundária Homem Cristo)
No
jornal n.º 7 de A FOLHA, publicado em Março de 1992, num artigo
por nós intitulado «Mea Culpa», pp. 3-4, além de corrigirmos um
erro cometido, chamávamos a atenção para o papel de Homem Cristo
na defesa do edifício do «Liceu de Aveiro», hoje Escola Secundária
e com o nome de quem, há cerca de cem anos, o defendeu, durante
doze extensos artigos publicados no jornal “O Povo de Aveiro”,
de que Homem Cristo era o director.
De
facto, o actual patrono da Escola Secundária - Homem Cristo -,
entre 27 de Novembro de 1887 e 19 de Fevereiro de 1888, em doze números
do seu jornal semanal, publicado aos domingos, insurgia-se contra a
ideia de se atribuir ao edifício construído sob a acção de José
Estêvão outra função que não fosse a que lhe foi efectivamente
destinada, ou seja, a do ensino. Não vamos agora repetir o que
dissemos, em Março de 1992, nas páginas de A
FOLHA, acerca do
problema da desactivação da escola. Uma vez que celebramos, nesta
altura, o cinquentenário da morte de Homem Cristo e que se corre o
risco, uma vez mais, de algumas pessoas de Aveiro - talvez que não
sejam mesmo de Aveiro, pois a sê-lo teriam um pouco mais de afeição
às coisas aveirenses - respeitarem devidamente a memória dos
nossos antepassados, iremos aqui recordar Homem Cristo,
transcrevendo algumas passagens dessa longa e vigorosa defesa.
O
primeiro artigo de Homem Cristo em defesa da Escola saiu no n.º 302
- e não no n.º 312, como se refere no Livro Comemorativo do 1º Centenário,
organizado em 1951 por José Pereira Tavares -, no domingo de 27 de
Novembro de 1887. Este artigo ocupou três das cinco colunas da
primeira página. Dele passamos a transcrever algumas passagens:
«Diz-se,
e se não nos enganamos já um jornal da localidade o referiu, que o
edifício do liceu desta cidade vai ser destinado às repartições
do governo civil, fazenda, e outras da mesma natureza,
transferindo-se as escolas de instrução secundária para um outro
edifício de construção somenos que se projecta elevar ou
arranjar. Se não estivéssemos costumados aos mais estupendos
disparates, aos maiores dos desconchavos por parte dos dirigentes
desta terra e principalmente dos dirigentes progressistas, não
acreditaríamos no boato, tão tolo se nos afigura. Porém, a julgar
pelos precedentes, deve ser verdadeiro e exacto. Fica bem a
monstruosidade referida ao lado doutras tantas com que o bando
firminista tem pejado a cidade e desfeito as melhores das nossas
riquezas naturais e das nossas tradições.
O
liceu está perfeitamente onde está. Representa um melhoramento de
primeira ordem. É um documento vivo e permanente do maior patriota
que tivemos. É uma tradição gloriosa que será mais do que um
erro, porque será um crime, não acatarmos e pouparmos. Motivos de
sobra porque aquele edifício deve ficar intacto e respeitado para o
fim grandioso e belo a que os seus fundadores o destinaram. E contra
razões desta ordem elevada não podem os vândalos da Granja
argumentar senão com subterfúgios e tolices. (...)
Após
esta primeira expressão da sua opinião, após esta primeira
expressão de descontentamento e apresentação da opinião de que o
edifício se deve manter ligado ao ensino, funções para que foi
efectivamente criado, Homem Cristo apresenta as razões invocadas
por alguns para a alteração das suas funções e contrapõe com vários
argumentos, por vezes numa linguagem um pouco vigorosa, para não
dizermos mesmo acintosa, explicando as razões pelas quais o edifício
deverá continuar ligado ao ensino. Como prova dessa linguagem um
tanto violenta, comprovativa dos sentimentos de quem a empregou,
leia-se o excerto que passamos a transcrever do final da segunda
coluna:
«Estúpidos
uns, ignorantes outros, sem a larga educação do belo, não vêem
nem reparam nestas coisas.
E erguidos de pobres lavradores analfabetos a vereadores municipais,
da trica eleitoral a governadores civis, associados a alguns outros
que, embora inteligentes, não têm educação científica nem
estética, vão inconscientemente arrasando tudo, construindo
tolamente e danificando ou perdendo as ideias aproveitáveis que os
outros lhes deixaram. É uma verdadeira praga.»
E
o primeiro artigo termina mantendo a mesma linguagem violenta,
recordando que quem fez o liceu e o projectou sabia bem o que fazia,
que o fez como uma casa completa, pelo que, o seu artigo terá de
continuar no próximo número, pois tem «umas verdades duras a
dizer». Mas, melhor do que o nosso comentário, será a
transcrição dessas últimas linhas:
«...Quem
fez o liceu, quem o projectou, quem o aprovou, fê-lo com as
proporções de uma casa de ensino completa. (...) Sabia o que
fazia. Vir agora meia dúzia de ignorantes com outra meia dúzia de
estúpidos proclamar que o liceu é grande para o fim que se
propõe, que é necessário reduzi-lo, que convém escangalhá-lo,
lembra realmente o borrador de tintas a pintar quadros.
Terminaremos no próximo número, que temos umas verdades
duras a dizer, já que tantas alarvices vão irritando todos os
homens que pensam e que têm amor a mais alguma coisa, que não seja
a sua barriga e os seus interesses pessoais.»
Apesar de Homem Cristo ter dito que terminaria o seu artigo
no domingo seguinte, a verdade é que, ao consultarmos a sua
continuação, no número 303, de 4 de Dezembro de 1887, verificamos
que a sua indignação está ao rubro, perante as informações que
entretanto lhe foram fornecidas. Contrariamente à época actual, em
que muitas vozes se ergueram contra a desactivação da Escola,
secundadas por todo o actual corpo docente, parece que, naquela
altura, perante o pasmo de Homem Cristo, o corpo docente não reagia
negativamente à mudança, merecendo do articulista fortes palavras
de censura. Ouçamo-las. Ficaremos com uma ideia da personalidade de
Homem Cristo. Ficaremos a ver que ele não fazia a mais pequena
cerimónia em criticar fosse quem fosse, passando um rótulo de
«bárbaros» ao corpo docente dessa época:
«Disseram-nos, depois do nosso último artigo, que o corpo
docente do liceu, ouvido sobre o monstruoso projecto progressista,
acordara em sentido favorável.
É pasmoso! É incrível! Aquilo não são homens por quem
tenha passado um raio ténue de civilização. Aquilo são
bárbaros!
Bem diz o Zé da Caetana, que há sertões virgens em Aveiro
piores que os sertões do Serpa Pinto. Mas o que o Zé da Caetana
ainda não nos tinha revelado, é que os indígenas do sertão das
pescadeiras são professores do liceu nacional! Pois fique-o sabendo;
aí tem a glosa, moteje-os agora no seu latim espirituoso.»
E,
durante quase duas colunas, seguem-se palavras de indignação de
Homem Cristo pela posição assumida pelo corpo docente daquela
altura, considerando-o como constituído não por homens de cultura,
mas por bárbaros, se não vierem à praça pública desmentir o
boato que pesa sobre eles: «Repetimos: - Aquilo não são homens;
aquilo são bárbaros, se não vêm a público, para lustre e honra
sua, desmentir este boato vergonhoso.(...)». E, um pouco mais a
frente, considera uma autêntica selvajaria o que se está a passar
relativamente ao liceu: «É
inacreditável, porque é monstruoso, porque é selvagem o
que se está passando a propósito do liceu e dos pretextos que se
invocam para tamanha monstruosidade e selvajaria tão nefasta...»
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