|
|
PÁGINA
CULTURAL
Um
conto de Virgílio Ferreira |
|
A
PALAVRA MÁGICA |
Nunca
o Silvestre tinha tido uma pega com ninguém. Se às vezes
guerreava, com palavras azedas para cá e para lá, era apenas com
os fundos da própria consciência. Viúvo, sem filhos, dono de umas
leiras herdadas, o que mais parecia inquietá-lo era a maneira de
alijar bem depressa o dinheiro das rendas. Semeava tão facilmente
as economias, que ninguém via naquilo um sintoma de pena ou de
justiça — mesmo da velha —, mas apenas um desejo urgente de
comodidade. Dar aliviava. Pregavam-lhe que o Paulino ia logo de casa
dele derretê-lo em vinho, que o Carmelo não comprava nada, livros
ou cadernos ao filho, que andava na instrução primária. As moedas
rolavam-lhe para dentro da algibeira e com o mesmo impulso fatal
rolavam para fora, deixando-lhe, no sítio, a paz.
Ora
um domingo, o Silvestre ensarilhou-se, sem querer, numa disputa colérica
com o Ramos da loja. Fora o caso que ao falar-lhe, no correr da
conversa, em trabalhadores e salários, Silvestre deixou cair que,
no seu entender, dada a carestia da vida, o trabalho de um homem de
enxada não era de forma alguma bem pago. Mas disse-o sem um desejo
de discórdia, facilmente, abertamente, com a mesma fatalidade clara
de quem inspira e expira. Todavia, o Ramos, ferido de espora, atacou
de cabeça baixa:
—
Que autoridade tem você para falar? Quem lhe encomendou o sermão?
—
Homem! — clama o Silvestre, de mão pacífica no ar. — Calma aí,
se faz favor. Falei por falar.
—
E a dar-lhe. Burro sou eu em ligar-lhe importância. Sabe lá você
o que é a vida, sabe lá nada. Não tem filhos em casa, não tem
quebreiras de cabeça. Assim, também eu.
—
Faço o que posso — desabafou o outro.
—
E eu a ligar-lhe. Realmente você é um pobre diabo, Silvestre. Quem
é parvo é quem o ouve. Você é um bom, afinal. Anda no mundo por
ver andar os outros. Quem é você, Silvestre amigo? Um inócuo, no
fim de contas. Um inócuo é o que você é.
Silvestre
já se dispusera a ouvir tudo com resignação. Mas, à palavra
“inócuo”, estranha ao seu ouvido montanhês, tremeu. E à
cautela, não o codilhassem por parvo, disse:
—
«inoque» será você.
Também
o Ramos não via o fundo ao significado de inócuo. Topara por acaso
a palavra, num diálogo aceso de folhetim, e gostara logo dela, por
aquele sabor redondo a moca grossa de ferros, cravada de puas. Dois
homens que assistiam ao barulho partiram logo dali, com o vocábulo
ainda quente da refrega, a comunicá-lo à freguesia:
—
Chamou-lhe tudo, o patife. Só porque o pobre entendia que a jorna
de um homem é fraca. Que era um paz-de-alma. E um
«inoque».
—
Que é isso de «inoque»?
—
Coisa boa não é. Queria ele dizer na sua que o Silvestre não
trabalhava, que era um lombeiro, um vadio.
Como
nesse dia, que era domingo, Paulino entrara em casa com a bebedeira
do seu descanso, a mulher praguejou, como estava previsto, e cobriu
o homem de insultos como não estava inteiramente previsto:
—
Seu bêbado ordinário. Seu «inoque» reles.
Quando
a palavra caiu da boca da mulher, vinha já tinta de carrascão. E
desde aí, «inoque» significou, como é de ver, vadio e bêbado.
Ora
tempos depois apareceu na aldeia um sujeito de gabardina, a vender
drogas para todas as moléstias dos pobres. Pedra de queimar carbúnculos,
unguentos de encoirar, solda para costelas quebradas. Vendeu todo o
sortido. Mas logo às primeiras experiências, as drogas falharam.
Houve pois necessidade de marcar a ferro aquela roubalheira de
gabardina e unhas polidas. E como o vocabulário dos pobres era
curto, alguém se lembrou da palavra milagrosa do Ramos. Pelo que,
«inoque» significou trampolineiro ou ladrão dos finos. Mas como
havia ainda os ladrões dos “grossos”, não foi difícil meter
dentro da palavra mais um veneno.
Como,
porém, as desgraças e a cólera do povo pediam cada dia termos
novos para se exprimirem, “inócuo” foi inchando de mais
significações. Quando a Rainha deu um tiro de caçadeira, num dia
de arraial, ao homem da amante, chamaram-lhe, evidentemente, «inoque»,
por ser um devasso e um assassino de caçadeira. Daí que fosse fácil
meter também no «inoque» o assassino de faca e a cróia de porta
aberta.
“Inócuo”
dera a volta à aldeia, secara todo o fel das discórdias, escoara
todo o ódio da população. A moca grossa de ferro, seteada de
puas, era agora uma arma terrível, quase desleal, que só se usava
quando se tinha despejado já toda a cartucheira de insultos. Até
que o Perdigão dos Cabritos entrou pela ponte norte da aldeia, com
o cavalo carregado de reses, num dia de feira, e se azedou com o
taberneiro, quando trocava um borrego por vinho. De olhos
chamejantes, perdido, já no quente da refrega, o taberneiro
atirou-lhe o verbo da maldição. Houve quem achasse desmedida a
vingança do homem. Perdigão arriou:
—
«Inoque» será você.
Também
ele não sabia que veneno tinham despejado na palavra, mas, pelo sim
pelo não, aliviou. E pela tarde, enfardelou o termo infame com as
peles da matança, e abalou com ele pela ponte sul. Longos meses a
palavra maldita andou por lá a descarregar o ódio das gentes. Até
que um dia voltou a entrar na aldeia, não já pela ponte sul que
dava para a Vila, mas pela ponte norte que levava a terras sem nome.
Vinha em farrapos, na boca de um caldeireiro, mais estropiada,
coberta da baba de todos os rancores e de todos os crimes. Quando
deitava um pingo num caneco de folha, o caldeireiro pegou-se de razões
com o freguês. O dono do caneco correu uma mão amiga pelas costas
do vagabundo:
—
Lá ver isso, velhinho. O combinado foram cinco tostões.
—
Não me faça festas que eu não sou mulher, seu «inoque» reles.
E
“inócuo” significou um nome feio para um homem. Então o
ajudante, ou o que era, do caldeireiro, tentou deitar água na
fogueira.
—
Cale-se também você, seu «inoque» ordinário. A mim não me mata
você à fome como fez a seu pai.
Porque
“inócuo” também queria dizer parricida. Então o Ramos, que
passava perto, tomou a palavra excomungada nas mãos e pediu ao
velho que a abrisse, para ver tudo o que já lá tinha dentro. Um
cheiro pútrido a fezes, a pus, a vinagre, alastrou pelo espanto de
todos em redor. Com os dedos da memória, o caldeireiro foi tirando
do ventre do vocábulo restos de velhos significados, maldições,
ódios, desesperos. “Inócuo” era “bêbado”, ‘ladrão”,
“incendiário’, ‘pederasta’, e, uma que outra vez, um
desabafo ligeiro como “poça” ou “bolas”. Para o calão da
gente fina, que topara a palavra na cozinha, nos trabalhos do campo,
soube-se um dia que significava ainda 'escroque', «souteneur»,
e mais.
A
aldeia em peso tremeu. Era possível a qualquer apanhar com o palavrão
na cara e ficar coberto de peste. Eis porém que uma vez o filho do
Gomes, que andava no colégio da Vila, insultado de «inoque» por
um colega, numa partida de bilhar, lembrou-se à noite de ver no
dicionário a fundura vernácula da ofensa. Procurou «inoque». Não
vinha. Procurou «noque». Também não vinha. Furioso, buscou à
toa, «quinoque», «moque»,
«soque». Nada. Quando a mãe o procurou, para ver se estudava,
encontrou-o às marradas no dicionário. Choroso, o rapaz declarou:
—
O meu «pagnon» chamou-me «inoque», mãe. Queria saber o que era.
Mas não vem no dicionário.
—
Não vejas! — clamou a mulher, de braços no ar. — Deixa lá! Não
te importes.
—
Mas que quer dizer?
—
Coisas ruins, meu filho. Herege, homem sem religião e mais coisas más.
Não vejas!
Começaram
então a aparecer as primeiras queixas no tribunal da Vila, contra a
injúria de «noque», «inoque» e, finalmente, de “inócuo”,
consoante a instrução de cada um. Como a palavra estropiada era um
termo bárbaro nos seus ouvidos cultos, o juiz pedia a versão da
injúria em linguagem correcta, sendo essa versão que instruía os
autos.
—
Chamou-me «noque».
—
Absolutamente. Mas que queria ele dizer na sua?
—
Pois queria dizer que eu era ladrão.
E
escrevia-se “ladrão”. Pelo mesmo motivo, gravava-se a ofensa,
de outras vezes, nos termos de “assassino”, “devasso”, ou
“bêbedo”.
Ora
um dia foi o próprio Bernardino da Fábrica que moveu um processo
ao guarda-livros pela injúria de «inócuo». Metida a questão nos
trilhos legais, o Bernardino procurou o juiz, para ver se podia
ajustar, previamente, uma bordoada firme no agressor. Mas aí, o
juiz atirou uma palmada à coxa curta, clamou:
—
Homem! Agora entendo eu. «Noque» era ‘inócuo’!
E
admitindo que o vocábulo contivesse um veneno insuspeito, pegou num
dicionário recente, o último modelo de ortografia e significados.
Então pasmou de assombro, perante o escuro mistério que carregara
de pólvora o termo mais benigno da língua: “inocuo’ significa
apenas «que não faz dano, inofensivo”. E pôs o dicionário
aberto diante da ofensa de Bernardino. O industrial carregou a
luneta, e longo tempo, colérico, exigiu do livro insultos que lá não
estavam.
—
Nada feito — repetia o juiz. — O homem chamou-lhe,
correctamente, “pessoa incapaz de fazer mal a alguém”.
—
Mas há a intenção — opôs o advogado, mais tarde, quando se
voltou ao assunto. — Há o sentido que toda a gente liga à
palavra.
—
Nada feito — insistia o juiz. — “Inócuo” é
‘inofensivo’ até nova ordem.
Então
o advogado desabafou. Também ele sabia, como toda a gente culta,
que “inócuo” era um pobre diabo dum termo que não fazia mal a
ninguém. Sabia-o, com um saber analítico, desde as aulas de Latim
do seu Padre Mestre. Mas não ignorava também que o ódio humano
nem sempre conseguia razões para se justificar. E nesse caso,
qualquer palavra, mesmo inofensiva, era um pendão desfraldado no
pau alto da vingança. Bernardino fora ofendido. Mas podia querer
amanhã ofender e as razões serem curtas para o seu rancor. Uma
palavra informe, soprada de todos os furores, seria então a melhor
arma. Despir o mastro da bandeira seria desnudar-se na dureza bárbara
do pau. ‘Inócuo’ era uma maravilha para a última defesa da
racionalidade humana, pelos ocos esconderijos onde podiam ocultar-se
todos os rancores e maldições. “Inócuo” era um benefício
social. Não havia que emendar-se a vida pelo dicionário. Havia que
forçar-se o dicionário a meter a vida na pele.
—
Cultive-se o “inócuo”. Salvemo-lo, para nos salvarmos.
Desgraçadamente,
porém, os receios do advogado eram vãos. A vida, de facto,
emendara o dicionário. Como bola de neve, “inócuo” rolara do
ódio alto dos homens e longo tempo levaria a derreter o calor da
compreensão e da justiça. Foi assim que o filho do Gomes, depois
de ter encontrado a correspondência vernácula da injúria do «pagnon»,
tentou reabilitar a palavra excomungada. Esbaforido, foi com o
dicionário aberto no sítio maldito, da mãe para o pai, do pai
para os amigos. Mas ninguém o entendeu. «Noque» ou “inócuo”
era um anátema verde de pus.
—
Que importa o que
dizem? — clamou o heroísmo do rapaz. — Podem chamar-me «inoque»
ou “inócuo”, que não ligo. Agora sei o que quer dizer.
Dias
depois, porém, um colega precisou de o insultar, e arremessou-lhe
outra vez com o termo nefando. Toda a gente conhecia já a opinião
do dicionário. Mas o furor era sempre mais forte do que o simples
livro impresso.
Pelo
que, nessa noite, o filho do Gomes não dormiu, preocupado apenas
com descobrir uma maneira profícua de sovar bem o colega, para
desforra integral.
|