SESSÃO
DE 5 DE ABRIL DE 1837
Senhores!
Não sei definir o sentimento que me domina, tendo de
usar da palavra, que tanto me foi regateada. Seja ele
qual for, nem me impede, nem me desobriga de falar.
Maravilhado com a extraordinária notícia de que há
um tribunal, um ser, uma inteligência superior, a que
se deu o pomposo nome de espírito humano, pelo qual
se inculcaram como definitivamente resolvidas todas as
questões de direito público, como claramente
demonstrados todos os direitos dos povos, e como
conhecidos e determinados os interesses de todas as nações
- eu entro cheio de timidez na questão da organização
política do meu país, com as fracas luzes do meu espírito,
e contrariarei talvez as decisões desse grande poder,
cujos arestos eu até aqui considerava, e ainda
persisto em considerar, mais como opiniões que era
permitido combater, do que como preceitos a que era
forçoso sujeitar-nos.
Senhores!
Está para mim chegada a ocasião em que é indispensável
que eu deposite francamente no vosso seio as minhas
opiniões políticas; e para vós também é vindo o
momento em que deveis dar um solene documento da vossa
tolerância.
A
minha convicção é forte e enérgica; e quando o espírito
se enche duma convicção destas, ainda que as ideias
que a formam se possam chamar perigosas, ainda que
pareça imprudência pronunciá-las, ainda que o silêncio
seja um dever, esse dever cumprido deixa o remorso de
uma falta cometida. Quando uma convicção sincera e
profunda se apodera do homem, e a sua língua se não
presta a manifestá-la, ou essa língua não é desse
homem, ou ele é dotado de uma prudência cem vezes
mais perigosa que a mais ilimitada franqueza.
Tolerância, lembrei-a, não a peço;
exigi-la-ia, se de nós fosse preciso exigir alguma
virtude de homens públicos; - prendem-nos deveres de
mútua complacência; é preciso que cada um de nós
respeite as opiniões dos outros, para que as suas
sejam respeitadas; eu respeitá-las-ei todas,
combatendo aquelas com que não concordar, e espero
que as minhas serão respeitadas, sem deixarem de ser
combatidas. (Apoiado.)
Atenção,
essa peço eu; e os únicos títulos, que apresento
para a merecer, são a ingenuidade das minhas confissões
e a brevidade do meu discurso.
Para
que a consideração da minha pouca idade, alguns
preconceitos levantados sobre a exaltação das minhas
opiniões políticas, e mesmo o preâmbulo de prevenções,
que tenho feito, não atemorizem as consciências tímidas
de alguns dos meus colegas e os não ponham em receio
de que vá sair da minha boca alguma explosão de
princípios pouco concordes com a dignidade do trono e
com a estabilidade da monarquia - eu, denunciando a
minha seita, patentearei em uma só palavra a minha
crença. Caracterizar-me-ei por um apelido, que não
pode dar suspeita de grande exageração política, e
que nós estamos muito acostumados a ouvir pronunciar
neste congresso. Eu também sou doutrinário;
mas a minha doutrina é a que se vai ouvir.
Se
nós julgamos ter dado um grande passo de progresso
declarando o princípio da soberania nacional,
enganamo-nos. Confessarmos este grande dogma político
é reconhecermos a força das cousas, não
contestarmos os fenómenos do dia, e sujeitar-nos à
influência invencível dos sucessos. Seria preciso
que rasgássemos as nossas próprias procurações,
que desconhecêssemos o facto da nossa existência política,
- seria preciso que déssemos um inaudito testemunho
de imoralidade e cepticismo para negarmos a luminosa
verdade de que no povo reside a soberania.
Aquele
filósofo, que, cortado o corpo de bastonadas, e tendo
no sentimento da dor a prova da sua existência, ainda
assim continuava a duvidar dela, seria um símile
exacto deste congresso, se ele negasse o princípio da
soberania popular. Confessá-lo, não foi pois virtude
nossa, foi necessidade.
Mas
confessar um princípio é nada; é preciso defini-lo
para lhe não cercear a importância, e submeter-nos
às suas consequências para não parar em uma teoria
estéril. Ora definir o princípio da soberania
popular é reconhecer que o povo é o único senhor de
todos os poderes políticos, de todas as faculdades
governativas; e sujeitar-nos às suas consequências
é reconhecer que ele pode delegar o exercício destes
poderes como quiser, e em quem quiser.
O
princípio da soberania popular e a cessação dos
abusos da Carta foram a grande conquista de 9 de
Setembro; e esta conquista foi que nos levantou
inimigos fora e dentro do país. A Europa do Direito
Divino não pode sofrer que nós quebrantássemos os
seus dogmas de escravidão; e os que viviam do
desgoverno da Carta enraiveceram-se pela volta a um
regimen de ordem e de responsabilidade. Estes inimigos
fizeram aliança entre si, e esta aliança comum fez o
seu comum descrédito. Os nossos inimigos internos,
apoiando-se para as suas maquinações nas influências
do estrangeiro, são contrários à nossa
nacionalidade; e os estrangeiros que, para combater a
nossa revolução, se ligam ao partido dos abusos,
querem estorvar a nossa prosperidade.
Se
pois nós reconhecemos e definimos o princípio da
soberania popular, se nos sujeitamos às suas consequências,
e se exercemos, por delegação especial, essa
soberania, - inquestionavelmente estão reunidos em
nossas mãos todos os poderes do estado, e temos
direito a distribui-los e dividi-los como melhor nos
parecer.
Permiti, senhores, que me eleve a esta altura, e que tire a
medida das nossas faculdades do espírito das nossas
procurações, sem me prender a palavras, para evitar
o embrulhar-me em questões que tocam com muitos dos
nossos contemporâneos, e se referem a sucessos em que
muita gente está envolvida.
Se
consideramos os fins e a natureza das associações
políticas, achamos que é indispensável que nelas
haja leis, julgador, execução; isto é, poder
legislativo, judicial e executivo.
Examinemos
se estes poderes, no projecto da Constituição, estão
divididos de modo que esta divisão dê as maiores
garantias de ordem e de liberdade.
Juiz
só, a julgar só; um rei só, com ministros responsáveis,
a executar só; uma câmara só, a legislar só;
- eis a minha monarquia, eis o meu governo
representativo. (Muitos apoiados.)
Creio
que ouvi apoiados de outra parte * além destas
cadeiras; se
continuarem, sento-me. (Vozes: Nada, nada, tal não
há.)
Pareceu-me;
seria um engano, mas um engano, que julgo não mostrar
outra coisa senão o meu zelo pela ordem. (Muitos
apojados.)
Vejo,
pelo projecto da Constituição, que não pode
completar-se a lei sem a cooperação do trono; mas
vejo que pode completar-se a sua execução sem a
concorrência do poder legislativo; - vejo que o trono
pode demitir os legisladores populares, pode estorvar
que a lei se faça, e que ele tem um colégio de
legisladores seus; mas não vejo que o poder
legislativo possa demitir os delegados do executivo,
que possa estorvar a execução, e que tenha algum colégio
de executores próprios. Com mais clareza: vejo que o
trono tem o veto absoluto, o direito de dissolver, e o
de nomear os senadores. Finalmente, vejo nesta
organização do projecto, não uma divisão igual de
poderes, mas uma sujeição completa do legislativo ao
executivo; vejo aquele estabelecido de forma que as
suas decisões podem a cada momento ser atacadas e
destruídas, e o trono convertido em padrasto político,
que não pode legalmente ser atacado.
Notemos
agora as expressões artificiosas com que se costumam
encobrir ou disfarçar a aspereza e exorbitância dos
direitos que se concedem à coroa, e os poderes e forças
fictícias, que se inculcam como próprias para
neutralizar a sua acção. Ao veto absoluto dá-se
modernamente o nome mais suave de sanção livre;
mas é preciso confessar que a suavidade da frase não
diminui em nada a força da ideia. A vontade do trono
sempre destrói a vontade do corpo legislativo; e a
lei, que a sabedoria de um congresso tinha julgado útil
ao país, morre às vezes por um capricho. Ser livre
em sancionar é ser absoluto em proibir. Ao direito de
dissolver chama-se direito de apelar para o povo; e
esta expressão, além de artificiosa, é falsa.
Quando se apela, é de um tribunal para o outro; mas
aqui apela-se do povo para o mesmo povo, porque a
sentença ou decisão do corpo legislativo, que motiva
a sua dissolução, sendo dada pelos representantes do
povo, é sem dúvida a sentença popular.
Além
de que não vela o povo pelos seus mandatários, não
julga os seus actos, não tem meios de os desaprovar?
Não conhece ele os seus interesses, não sabe quem
lhos promove, ou lhos arruina? Pois o povo, que é o
juiz nato dos seus representantes, que tenha direito
de os demitir. E que acontece quando se dissolve o
corpo legislativo? O governo cerca a urna eleitoral de
toda a sua influência. Ao cidadão necessitado, que
serve a nação, diz-lhe: «Se me não vendes a consciência,
reduzo-te à miséria». AO ambicioso: «Se me dás o
teu voto, abro-te o caminho das honras e das riquezas,
e franqueando-te o estádio senatório, investir-te-ei
do direito perpétuo de legislar, sem que te seja
preciso humilhar-te à urna para receberes a honra de
uma legislatura temporária». Ao timorato, mas amigo
do país, clama-lhe com as exagerações populares,
com as vistas ambiciosas das oposições, com as
democracias e com a anarquia.
É
isto, Sr. presidente, apelar para o povo, ou obrigar o
povo a reformar a sua sentença?
Se
o povo obedece e a sentença se reforma, o ministério,
altivo com a vitória, corre desatinado ao complemento
dos seus projectos, e a escravidão cai sobre o país:
- se o povo persiste em suas primeiras escolhas, e
manda à coroa os homens de que ela se quis
desafrontar, e se os ministros, não querendo receber
a lei da nação, contrariam ainda a sua expressa
vontade, a revolução vem abalar o edifício social.
Diz-se
também que o corpo legislativo pode retirar a confiança
ao ministro, e recusar-Ihe os tributos; mas quando com
tanta ênfase se fala neste direito de recusa, é
preciso não esquecer, como creio que esquece, que o
poder executivo, tendo o poder de dissolver, ou o
exercita provocado por essas recusas, ou prevenindo-as
se antecipa a exercitá-lo. Que importa que o corpo
legislativo recuse maioria ou tributos, se uma pronta
dissolução anula o efeito desses seus actos? A
dissolução é além disto a morte dos corpos
colectivos, e o suicídio, não sendo natural, não é
fácil. Um corpo legislativo só com muito custo toma
uma política que lhe atraia a dissolução: - o
receio de morrer sempre lhe acanha os brios.
O
direito de recusar tributos, sendo um direito
importante em si, é sempre usado com muita prudência,
e assim mesmo dá mais frutos de calamidade e
desordem, do que de liberdade e ventura. Consulte-se a
história (os factos são os mestres da política) e
havemos de notar que, por uma vez que um corpo
legislativo tem recusado tributos, cem vezes o poder
executivo tem dissolvido corpos legislativos. Que
denota isto? Se os tributos são recusados, e se se
lhe segue a dissolução, no intervalo das novas eleições,
ou eles continuam a perceber-se, a despeito da recusa,
e então o povo, pagando-os, e o ministério, tratando
de os receber, quebrantam as leis fundamentais do
sistema representativo, ou esses tributos se não
pagam efectivamente e uma quadra de penúria, de descrédito
e inacção governativa pesa sobre o país. No meio
destas alternativas muitas vezes a revolução
aparece; e eu não quero concorrer para que se faça
uma constituição, onde o princípio vital da
liberdade não esteja seguro nas formas e disposições
terminantes dela. (Apoiado).
Diz-se
que estes direitos nunca podem ser exercidos em dano
do país, porque a opinião pública tem meios fortíssimos
de censura e desaprovação, com que enfreia todos os
poderes e modera todos os excessos. Sr. presidente,
pois não se quer dar ao corpo legislativo, tribunal
onde se reúnem todas as luzes da nação, onde todos
os interesses são representados, a força suficiente
para contrariar as pretensões exageradas do
executivo, para subordinar a sua vontade aos
interesses nacionais, e quer-se sujeitar esse mesmo
executivo às incertezas da opinião pública, ao
apaixonado das suas decisões, à irregularidade das
suas sentenças? Sr. presidente - é extraordinário!
A inviolabilidade real é o princípio elementar da
liberdade e da ordem, é a base do sistema
representativo, é o mais seguro penhor da
estabilidade do trono. Esta inviolabilidade repousa e
baseia-se toda na inacção governativa; e se este
princípio se quebrantasse, se a inviolabilidade se
contestasse, o trono perdia o prestígio e as
prerrogativas da majestade, e em luta com a nação,
ou era derribado pelos braços do povo, ou encadeava o
povo aos seus degraus. Assim eu acredito, senhores, eu
defendo com todas as minhas forças o princípio de
que o rei
reina e não governa. Ora quando se contesta a
imprudente aglomeração de poderes de que se cerca a
coroa, sempre os partidários do desequilíbrio político
nos argumentam com o esplendor, com a majestade do
mesmo trono. Pois se os poderes que se concedem ao
trono não é o trono que os exercita; pois se a
majestade, se o esplendor da realeza, dependem da sua
estranheza aos negócios públicos, e estão ligados
à carência desses poderes, - como se quer legitimar
a concessão deles pelos mesmos motivos que mostram a
inconsequência de lhos conceder?!
Sr.
presidente, não é pelo trono, é pelo proveito dos
que o cercam, que se lhe acumulam poderes
exorbitantes; é para encobrir o domínio oligárquico
com o manto real; é para comprometer os príncipes
nos desvarios dos homens de estado, e satisfazer ambições
em dano da sociedade.
O
que até aqui tenho exposto é para mim suficientíssimo
para rejeitar o projecto da comissão. Mas, Sr.
presidente, além disto, vejo que o artigo desse mesmo
projecto, que trata da formação da segunda câmara,
estabelece que os senadores serão vitalícios. Eu
reputo este princípio contrário à dignidade senatória,
inimigo da liberdade e oposto à segurança do trono.
Vejo que só à coroa é dado o poder de nomear
senadores, e isto considero eu como uma restrição
desnecessária aos direitos populares, e como um fatal
presente feito à mesma coroa; e vejo finalmente que
os senadores podem ser nomeados sem número fixo, e
nesta faculdade descubro, ou a morte da liberdade, ou
o perigo das revoluções. Também li (e oxalá que não
lesse!) uns artigos transitórios, que estão unidos a
esta parte do projecto, onde se estabelece que o trono
só daqui a seis anos entrará no direito exclusivo de
nomear os senadores; mas que actualmente o povo
concorrerá para essa nomeação. Concede-se hoje ao
povo participar de um direito com o trono, e daqui a
seis anos esse direito une-se todo ao mesmo trono! Que
é isto? Não queremos nós conhecer o espírito
progressivo da época? Queremos renegar do evangelho
do século, e negar as tendências da nossa idade?
Que
profecia terrível de retrogradação é esta para o
nosso país? Pois o povo português daqui a seis anos
há-de ser privado de um direito de liberdade, que
hoje se lhe confere? O povo português há-de ter
menos capacidade para ser livre daqui a seis anos, do
que hoje? (Apoiado, apoiado.) Isto confunde-me,
isto é inaudito! Aqui não ha doutrina a combater, há
só uma profecia a esconjurar. Eu empenho pois todos
os poderes do céu e da terra para que a levem para
longe de nós, na profunda e grata convicção de que
o povo português há-de caminhar sempre na estrada do
progresso e da liberdade, debaixo dos auspícios da
ordem e da civilização.
Sr.
presidente, segundo a minha exposição, talvez amanhã
se diga que sou republicano. Se o fosse, havia de dizê-lo,
porque o nome não tem fealdade. Mas eu não sou
republicano, nem esse nome é de apetecer no nosso país.
Todos os homens públicos, que entre nós mereceram
esse apelido, têm assistido aos funerais da
liberdade, trajando galas e cantando hinos de alegria.
Eu amo os tronos, porque vejo neles um princípio
inocente na organização social; julgo que todos os
danos que têm feito não vêm deles, mas do modo de
os constituir, do erro de os cercar de direitos terríveis,
que lhes são funestos. O trono entregue às suas
atribuições de beneficência, fora das contestações
políticas, escudado pela sua indiferença governativa,
há-de descansar sempre sossegado à sombra das
simpatias populares.
Sr.
presidente, terminarei o meu discurso, repetindo a
minha profissão de fé política, que tanto folgo que
seja de todos os portugueses conhecida, como desejo
que por ninguém seja desfigurada. - Juiz só, a
julgar só; um rei só, com ministros responsáveis, a
executar só; um corpo legislativo só, a legislar só;
- eis aqui a minha monarquia, eis aqui o meu governo
representativo. |