DISCURSO QUE O DR. LUÍS DE MAGALHÃES PROFERIU EM AVEIRO, POR
OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE JOSÉ ESTÊVÃO, A 26 DE
DEZEMBRO DE 1909
«Sr. Presidente, Minhas Senhoras, Meus Senhores:
Há vinte anos já, aqui, neste mesmo lugar, eu tive a honra de vos
exprimir, por mim e pelos meus, os sentimentos de
gratidão indelével e de comovido enternecimento que
o vosso ardente culto pela memória de meu Pai
despertava nos nossos corações. Ao cabo do um longo
e tenacíssimo esforço, em que todas as classes se
uniram para o mesmo elevado fim, mas no qual, nem no
entusiasmo, nem nos sacrifícios, foi menor a parte
deste bom e laborioso povo - a cidade de Aveiro
realizava, finalmente, o seu grande sonho, de orgulho
cívico: ver erguida numa das suas praças, fundida no
bronze imorredouro e glorificador, a imagem do seu
filho mais querido, do seu filho mais ilustre.
Vinte anos vão passados sobre esse dia de apoteose! E alguns
daqueles que a ela assistiram e de quem eu vos traduzi
então o reconhecimento, alguns daqueles que foram das
suas e das minhas mais idolatradas afeições
(perdoai-me esta lembrança íntima que, neste
momento, não posso apartar da intensa e complexa emoção
que me domina! ... ) dormem já, a seu lado, o bom e
sereno sono do túmulo, nessa modesta jazida fúnebre,
onde amanhã iremos em devota romagem, e que, se é
para vós como que o Panteon, onde repousa o vosso
Santo e o vosso Herói, é para mim um relicário de
amor, urna cinerária, que guarda o pó sagrado de
tantos corações que eu adorei, adoro, e hei-de
adorar até que o meu nela seja por sua vez encerrado,
tão piedosamente como eles o foram!
Vinte anos vão passados, e estamos de novo aqui, unidos na mesma
devoção, dominados pela mesma idolatria! É que,
bons e queridos amigos, o vosso coração é desses
corações raros - que não sabem esquecer! É que vós,
com um nobre instinto moral, fizestes da sua
personalidade como que o vosso padroeiro cívico, como
que o vosso génio tutelar, e de geração em geração
sabeis manter acendrado e vivo esse culto que, se é
para a sua memória a suprema consagração, é para vós
um titulo de honra, de que legitimamente vos podeis
ufanar.
Mas, hoje, o nosso agradecimento não é apenas para vós,
aveirenses! É para todo o pais, porque é de todo ele
esta festa de que nós aqui realizamos uma das celebrações.
Em face da memória ilustre, que é como o brasão
moral da vossa terra, todas as bandeiras, todas as
signas partidárias se inclinam com respeito, rendendo
homenagem a duas coisas que não têm, que não podem
ter partido: o génio e o carácter! A todos, pois, os
que aqui, ou em qualquer outro ponto do país, se
reunam hoje para aclamar, com sincero amor e sincero
entusiasmo, esta memória para mim sagrada, deste
lugar envio a saudação reconhecida que devemos aos
que nos acompanham nos melhores e mais íntimos
sentimentos do nosso coração.
E, ditas estas palavras, meus senhores, cumprida esta grata obrigação,
eu deveria talvez calar-me e dar por finda a minha
interferência nesta cerimónia comemorativa. Porque,
bem o compreendeis, não me cumpria a mim, neste
momento e nesta solenidade, dizer-vos da vida e feitos
daquele de quem tão grandes e belos espíritos acabam
de fazer surgir diante de vossos olhos, com o poder
maravilhoso do talento e a magia da eloquência, o
vulto grandioso e dominador. Tal intento, da minha
parte, poderá, com razão, parecer indiscreto e
descabido. E será, além disso, inútil, bem inútil,
ir fazer de novo, medíocre, pálida e apagadamente o
que outros fizeram já com tanto brilho, tanto relevo
e tanta superioridade.
Mas, desde que a vossa indulgência para comigo me quis honrar com
o encargo de unir, aqui, a minha pobre voz à dos
homens ilustres que escolhestes para celebrarem a glória
desse nome, que parece ser para a vossa adoração,
como era para a dos antigos o da sua divindade tópica
- eu não poderei eximir-me a dizer mais algumas
palavras (muito breves, todavia), para corresponder,
meus amigos, à vossa imerecida gentileza.
Para isso, porém, preciso de infligir uma grande violência ao meu
espírito e ao meu coração. Preciso de esquecer os
laços que me unem àquele que vós glorificais.
Preciso de tornar-me surdo à voz do sangue, tão
imperativa e soberana. Preciso de fazer com que a este
nome: José Estêvão, não vibrem todas as
fibras do meu ser, toda a minha carne, todos os meus
nervos, toda a minha alma. Preciso de pôr-me fora de
mim mesmo, subtrair-me à minha própria natureza,
exilar por um momento do meu peito as minhas maiores
afeições, dar ao meu cérebro uma plena independência
de juízos, libertando-o da influência de todas as
idolatrias, de todos os fanatismos da religião
familiar.
Consegui-lo-ei? É o que se vai ver. Sobre vós, porém, meus
amigos, descarrego desde já a responsabilidade do
provável insucesso desta arriscada e temerária
empresa.
Meus Senhores, quando eu medito nesta vida, de cujo primeiro dia
hoje celebramos o centenário, quando eu medito nesta
existência relativamente curta, porque pouco passou
de meio século, mas tão intensamente vivida, toda
uma série de visões desfila diante dos meus olhos,
desde esse alegre Natal em que ele veio ao mundo, a
dois passos daqui, na austera casa de sua Avó, entre
a enternecida felicidade da Mãe e as primeiras
esperanças, os primeiros sonhos de ambição e do
orgulho paterno (tão completamente realizados
depois!) do homem venerando, do boníssimo e santíssimo
homem que foi seu Pai - até à hora do luto e dor,
luto e dor de um país inteiro, em que uns poucos de
milhares de cidadãos de todas as classes e condições,
ricos e pobres, nobres e plebeus, ministros de Estado
e simples operários, crentes e livres-pensadores,
amigos e adversários políticos, numa multidão promíscua,
em que todas as categorias se nivelaram e fundiram na
unidade igualitária do mesmo sofrimento, levaram a
braços, pelas ruas da cidade, melancólica e dorida,
o esquife onde ia o seu cadáver, a relíquia do Cidadão
exemplar, do Cidadão sans Peur et sans reproche,
ungido das lágrimas mais saudosas, sagrado para a
imortalidade pelo amor de todo um povo, pelo
reconhecimento de toda uma nação!
Vejo a sua infância e a sua adolescência, passadas entre os
carinhos do lar, desabrochando já numa eclosão de
puros sentimentos e nobres aspirações sob a influência
do espírito lucidíssimo e das virtudes incomparáveis
do seu adorado Pai; sim, vejo-o aqui, menino e moço,
recebendo das impressões desta admirável paisagem -
da amplidão destas campinas verdejantes e planturosas,
destes canais fugitivos na sua extensa perspectiva
rectilínea e desta imensa laguna da Ria, de tão
variados e cambiantes aspectos; destas lindas
marinhas, onde a neve imaculada dos montes do sal - do
sal, símbolo da graça ática que tão finamente
temperou a sua eloquência! -, onde essa neve
imaculada põe em redor não sei que tons de candidez
e de virgínia frescura; desse perfil soberbo das
cordilheiras da Beira, que de longe parecem encarar,
por sobre estas planícies, a vastidão do Oceano,
como duas majestades que com majestade se contemplam;
desse mesmo Oceano, cuja grandeza revoltada, cuja
beleza convulsiva, ele tão profundamente sentiu e
exprimiu num dos mais vibrantes trechos dessa ode
patriótica, que é o discurso de Charles et
Georges vejo-o, digo, recebendo das impressões
desta paisagem, essa transfusão espiritual de beleza,
esse influxo estético e moral, que para sempre lhe
vinculará aqui a sua alma de artista e de poeta; e
recebendo ainda do nascente afecto dos seus patrícios,
que foram meus amigos, os vossos pais e os vossos avós,
essa atracção de humanidade, essa inclinação
social, esse primeiro nó dos laços colectivos, que
haviam de fazer dele o grande cidadão e o grande
patriota, ante o qual a posteridade já dobra,
reverente, o joelho.
Vejo-o, depois, em Coimbra, na atmosfera inflamada de entusiasmo de
uma mocidade que via aproximar-se a hora de intervir
nos destinos do país, deslumbrada pelo sonho radiante
da liberdade, incitado pelos mais generosos estímulos
cívicos, deixar os livros, agarrar arrebatadamente o
pesado fuzil de pederneira, e, com os seus irmãos de
armas, receber, aos dezoito anos, no primeiro revés e
na primeira decepção, essa têmpera de estoicismo e
de inflexível coragem, que só o infortúnio é capaz
de dar ao carácter, tornando-o invulnerável como uma
coiraça de bronze. Vejo-o na triste retirada para a
Galiza e no áspero caminho do exílio, atravessar
descalço, e os pés em sangue, a ingrata terra
estrangeira! Vejo-o na sua desolação de desterrado,
como o mármore genial do nosso grande e infeliz
estatuário, os braços inertes, a alma corroída de
saudades, o espírito perdido nas incertezas, cada vez
maiores do seu destino, olhar com melancolia, do frio
e nevoento refúgio de Plymouth, esse vasto mar, para
além do qual lhe ficavam a pátria, a família, e
todos os seus amores, e todos os seus sonhos, e todas
as suas esperanças!
Vejo-o mais tarde, vindo do Arquipélago heróico, onde começara a
Ilíada libertadora, avistar, numa radiante manhã de
Julho, entre lágrimas de intensa emoção, as nossas
verdejantes costas do Norte; vejo-o saltar nas areias
dessa praia de Pampelido, que eu tantas vezes visito
evocando este comovente episódio da sua vida, vejo-o
a saltar ali, com o coração a bater de fé e de
receios; vejo-o avançar sobre a cidade, arrastando,
com os seus camaradas, os pesados canhões pelos
velhos caminhos quase intransitáveis, e aí, em meio
de uma praça, súbita, inesperadamente, descobrir
entre a multidão o vulto querido e adorado de seu
Pai, de quem, havia quatro anos, mal sabia, e, com o
maior grito de alma estrangulado na garganta pela comoção,
cair-lhe nos braços, face contra face, peito contra
peito, lágrimas santas misturadas na mais patética,
mais inexprimível, mais louca e delirante das
felicidades!
E vejo-o agora na hora suprema da sua vida de soldado. Vejo-o na
Serra, na lendária Serra, entre o sibilar das balas,
o troar dos canhões, o estalar da metralha, o retinir
das espadas e das baionetas, cruzando-se às vezes já
sobre os peitoris das baterias; vejo-o aí haver-se
com tal bravura e tal serenidade, que a Torre e Espada
lhe desabrocha no peito como uma flor de glória, não
já concedida pelo arbítrio justiceiro de um chefe,
mas posta ali (suprema e inigualável honra!) pelas mãos
dos próprios camaradas que, num voto unânime e por
um acto colectivo e espontâneo, o proclamavam assim o
bravo dos bravos! Vejo-o na Flecha dos Mortos, nesse
terrível reduto, cujo nome só por si é um pregão
de heroísmo, vejo-o impávido e audaz, entre os seus
vinte soldados, caídos a seu lado, mortos ou feridos,
esperar de morrão aceso, ao pé da sua peça, a
esposa heróica do artilheiro nessas núpcias de morte
e de glória, que são as batalhas! - esperar ao pé
dela a entrada dos inimigos na bateria, que já não
podia defender, queimar com o morrão, num gesto
violento e provocador, as barbas do comandante da força,
e retirar sob um chuveiro de balas, para logo voltar
com reforços e reaver, à arma branca, numa carga
furiosa, a posição um momento perdida!
Mas o cenário muda agora de repente. Já não são os campos de
batalha, juncados de cadáveres, rubros de sangue,
fumegantes de ruínas; já não são as muralhas das
fortalezas, rasgando-se em brechas formidáveis sob as
lufadas de ferro e fogo da metralha. Não. Agora é a
sala de um Congresso, onde essa geração, que veio
dos sofrimentos e misérias do exílio e dos triunfos
de cinco anos de lutas gloriosas, vai tomar nas suas mãos
o destino do regime que o seu valor e o seu civismo
acabavam do fundar. E, então, não menos belo, não
menos intrépido, não menos vibrante de entusiasmo, o
seu vulto aparece a meus olhos, nobre, radiante,
varonil, dominador, aureolado pelo halo divino do
talento, em toda a majestade da grandeza tribunícia.
Vejo fuzilar-lhe o olhar ardente na face pálida de
iluminado; vejo os meneios nervosos da sua bela cabeça,
o fulgor da sua larga fronte, o ofegar do peito, o
palpitar das narinas, a imponência das atitudes, a
empolgante fascinação do gesto. Oiço a sua voz, a
sua bela voz, de tantas e tão variadas notas, como
afirmam todos aqueles que o escutaram, ora vibrante e
estrídula como um grito de águia real, ora cheia,
profunda, sonora como um rugido de leão, ora
arrebatada e impetuosa como uma rajada de vendaval,
ora cantante e cristalina como um rumor de águas numa
fresca levada...
E, assombrado, contemplo-o nessa tribuna como num pedestal de glória,
a proclamar e a defender, com irresistível eloquência,
todos os seus princípios, todos os artigos de fé do
seu credo político. - A liberdade, primeiro, - a
liberdade de que ele foi, entre nós, como face a
face, no parlamento lhe disse PASSOS MANUEL, «o mais
estrénuo defensor», a liberdade de que ele foi o
paladino intemerato, o campeador invencível; essa
pura liberdade, primeiro dos direitos morais do homem,
que era na sua alma, não um sentimento faccioso e
estreito, não uma cega e virulenta paixão sectária,
mas uma nobre, uma generosa aspiração do espírito,
reivindicando a sua plena independência em face de
todos os problemas do Universo, da Consciência ou da
Vida Social, e um largo e ardente sonho humanitário,
um direito novo fraternal e justiceiro, cujos benefícios
e regalias ele, na sua imensa tolerância, sempre
afirmada em palavras e confirmada em actos, como na
defesa do Portugal Velho, queria que, sem excepções,
que seriam um ilogismo, uma contradição fundamental
da doutrina, se estendesse a todas as convicções e a
todas as crenças, a todos os princípios políticos e
a todas as reservas confessionais! - A justiça,
enlevo supremo das grandes almas, pedra de toque de
todo o carácter, sentimento em que a serenidade
austera da razão se funde maravilhosamente com a
piedade humana, - a justiça, pedra angular de toda a
vida social, timbre, honra e dever dos que guiam as
sociedades, garantia e direito de todos os que a
constituem, - a justiça, guarda vigilante da ordem,
defensora dos fracos, libertadora dos oprimidos,
demolidora dos privilégios, niveladora das classes, -
a justiça, a bússola firme e segura desse norte de
igualdade, para onde a civilização política avança
na viagem da História, - a justiça que o inspirou em
todos os seus actos, o guiou em toda a sua vida e foi
para a sua alma aquela fome e sede
bem-aventuradas, de que o Cristo, num profundo
pensamento, só prometia aos homens a plena saciedade
no seu reino idealmente perfeito! - O patriotismo,
que, com a sua fé de cristão sincero e o seu amor da
família, constituía os três grandes cultos do seu
coração, o tríptico das suas devoções mais
profundas; - o patriotismo, que era nele uma síntese
de amores, de intensos e puros amores: o amor desta
bela e boa terra portuguesa, a que o seu coração se
sentia preso por tantas e tão fortes raízes, o amor
dos seus concidadãos, a quem o uniam o seu poderoso
sentimento cívico e todos os nexos ancestrais de
sangue e de raça, o amor das nossas tradições históricas,
do nosso assombroso passado, tão cheio do frémito
heróico, com que mais de uma vez palpitara a sua alma
de soldado; - o patriotismo, que na sua boca de oiro
vibrava em verdadeiros cantos de epopeia, retumbante e
ardente como um fragor de refrega, sonoros e triunfais
como um hino de vitória! - O civismo, essa religião
grandiosa do dever social, em cujas tábuas da lei
se inscreveu, como mandamentos supremos, o altruísmo
na sua forma colectiva, o sacrifício individual, a
abnegação, o desinteresse, a honestidade inconcussa,
o zelo da causa pública, código austero de que a sua
vida de cidadão foi um exemplo de admirável
cumprimento estrito, que o levou aos riscos da guerra,
às misérias e às lágrimas da expatriação e o fez
manter-se, até ao fim da sua carreira, tão isenta de
honrarias e proventos como a começara, tendo apenas
no peito o seu colar da Torre e Espada, no braço os
seus galões de oficial e uma cadeira no magistério,
conquistada também, como um trofeu de vitória, numa
luta em que o seu talento ficara vencedor. - O
progresso, o progresso material e moral, o progresso
indicador da civilização dos povos, de que ele se
constitui um dos mais fervorosos apóstolos, quando,
após tantos anos de guerras civis, de querelas partidárias,
de conflitos de doutrina, que imobilizaram toda a
energia produtiva do país, e travaram a roda do seu
desenvolvimento económico e social, se convenceu de
que as fórmulas não tinham, só por si, o poder mágico
de educar o povo, de fomentar o trabalho, de criar
riqueza, de fazer circular produtos, de difundir a
instrução em todos os seus ramos, de equilibrar os
interesses das classes segundo os justos princípios
da democracia social! ...
Vejo ainda...
Mas - basta! Esta evocação já vos parecerá longa de mais,
atropelada e confusa. E eu temo bem que ela tenha sido
mais nociva do que útil ao meu propósito, que era o
de dar-vos, numa visão rápida, a síntese da sua
grande vida, tal como eu a vejo e contemplo na minha
pura admiração de homem, e fora do âmbito mais
reservado da piedade filial.
Este quadro, porém, tão mal esboçado, tão impreciso de linhas,
tão empastado de cores, este escorço, este resumo da
sua vida, visava a um fim: o poder tirar dele uma
conclusão de moralista. Lembro-me de, há vinte anos,
vos ter dito, aqui mesmo, que, em política, eu era,
sobretudo, um moralista. Sou-o ainda hoje: sou-o hoje
mais do que nunca! Estes vinte anos, com a sua árdua
experiência, as suas muitas lições dos homens e das
coisas, os seus desenganos, as suas responsabilidades,
arreigaram mais profundamente no meu espirito este
critério. Já mal sei ver os homens de outra forma ou
por outro prisma. Já mal distingo as extremas das
suas classes, no retalhado campo social. Já mal
enxergo os emblemas litúrgicos dos seus cultos e os
guiões de combate das suas falanges políticas.
Quase que só vejo espíritos e só vejo almas!
Ora, através dessa vida, meus Senhores, o que eu descortino, o que
eu sinto, o que eu palpo, numa espécie de misterioso
contacto psíquico, é uma das maiores, das mais
puras, das mais nobres, das mais generosas almas que
palpitaram em peitos portugueses.
Porque, para mim, o génio e o heroísmo, quando os não divinizam
a grandeza moral e um elevado sentimento de
humanidade, são no homem altos, brilhantes, sublimes
predicados, sim, mas elementos insuficientes,
incompletos, para constituírem, integra, plena e
global, deixem-me assim dizer, a personalidade humana.
Em todas as figuras históricas, mesmo as mais
grandiosas, há sempre um não sei quê de imperfeito,
sente-se como que uma falha, semelhante à moeda que não
dá, ao toque, o timbre característico do ouro de lei
- quando nelas não achamos, distintas ou confundidas,
a austeridade severa do carácter e esse doce leite
da bondade humana, como lhe chama o ilustre
pensador inglês, esse poder de emoção, de benevolência,
de filantropia, de amor, enfim, que torna os grandes
homens não só admirados, mas amados também.
Admiração, amor, - êxtase do espírito, êxtase do coração:
eis a imortalidade! Mas na admiração pode deixar de
haver amor; ao passo que o amor, esse, é já em si
mesmo uma verdadeira admiração. E quem não amou os
homens, poderá ter deles todas as consagrações, que
uma alta individualidade impõe aos contemporâneos e
aos vindouros, mas nunca terá esse amor, que lhes não
soube dar!
Admiramos o Infante de Sagres, admiramos o Príncipe Perfeito,
admiramos Vasco da Gama e o terribil Albuquerque.
Mas o egoísmo do visionário, a duplicidade insidiosa
do político, a dureza inclemente e a desumanidade
truculenta dos conquistadores cerram-lhes os nossos
corações. Deslumbra-nos a sua glória, assombram-nos
o seu génio e a sua força, orgulhamo-nos dos seus
grandes nomes; mas não os amamos, não os podemos
amar!
Mas Nun'Álvares, no seu heroísmo cândido, na pureza mística da
sua alma, na sua humildade, que o levou ao claustro,
quando o seu braço já não era preciso à pátria;
mas o Infante D. Pedro, o austero regente, o
cavalheiresco vencido de Alfarrobeira, espelho de
incomparáveis virtudes, maravilha de honra, de
lealdade, de justiça, de valor; mas Camões, que, na
sua agitada vida, iluminada pelo génio, coroada pelo
heroísmo, sagrada pelo infortúnio e pela dor, pôs
em tudo o seu grande e ardente coração amando com
igual intensidade patética a Mulher, a Pátria e a glória
- ah! estes, sim, estes têm em nós um culto
perfeito, têm no altar das nossas almas uma plena e
completa adoração!
Meus Senhores, é esta mesma adoração, íntegra e sem reservas,
que em vós, que no País inteiro, tem a memória do
homem de quem celebramos o centenário natalício. E
é esse, entre os muitos sinais da sua grandeza, um
dos maiores, dos mais irrecusáveis. Não lhe faltou o
génio, não lhe faltou o valor - e os loiros, que
cingem a fronte dos inspirados e dos bravos, ficam bem
na sua, tão nobre e tão bela. Mas o que, tanto como
esses títulos, enaltece o seu nome, avoluma o seu
vulto, e é a magnanimidade do seu nobilíssimo coração:
são as suas virtudes de homem e de cidadão, a sua
bondade, a sua cordialidade, a sua lealdade, a sua
inteireza, a sua honradez, a sua abnegação, a
sinceridade das suas convicções, o ardor da sua fé
política, a austeridade do seu intemerato civismo.
Sim, é tudo isto que, junto à eloquência
fulgurante do tribuno e à valentia do soldado, torna
enorme, avassaladora, empolgante e verdadeiramente
adorável a sua figura - essa grande sombra de Além-túmulo,
que parece ressuscitar à evocação do nosso amor e
pairar agora aqui sobre nós, para que o seu coração
sinta ainda uma vez, bem vivos e palpitantes, a doce
carícia dos nossos afectos, a santa unção das
nossas saudades, o calor do vosso entusiasmo, que em
vida foram para ele incitamento para tanta luta, prémio
de tantos esforços, alívio para as suas maiores
dores!»
In: «Arquivo do Distrito de Aveiro»,
vol. XXVIII, 1962. |