| DISCURSO QUE O DR. LUÍS DE MAGALHÃES PROFERIU EM AVEIRO, POR
                          OCASIÃO DO CENTENÁRIO DE JOSÉ ESTÊVÃO, A 26 DE
                          DEZEMBRO DE 1909
                          
                            
                          
                           «Sr. Presidente, Minhas Senhoras, Meus Senhores:
                          
                            
                          
                           Há vinte anos já, aqui, neste mesmo lugar, eu tive a honra de vos
                          exprimir, por mim e pelos meus, os sentimentos de
                          gratidão indelével e de comovido enternecimento que
                          o vosso ardente culto pela memória de meu Pai
                          despertava nos nossos corações. Ao cabo do um longo
                          e tenacíssimo esforço, em que todas as classes se
                          uniram para o mesmo elevado fim, mas no qual, nem no
                          entusiasmo, nem nos sacrifícios, foi menor a parte
                          deste bom e laborioso povo - a cidade de Aveiro
                          realizava, finalmente, o seu grande sonho, de orgulho
                          cívico: ver erguida numa das suas praças, fundida no
                          bronze imorredouro e glorificador, a imagem do seu
                          filho mais querido, do seu filho mais ilustre.
                          
                           Vinte anos vão passados sobre esse dia de apoteose! E alguns
                          daqueles que a ela assistiram e de quem eu vos traduzi
                          então o reconhecimento, alguns daqueles que foram das
                          suas e das minhas mais idolatradas afeições
                          (perdoai-me esta lembrança íntima que, neste
                          momento, não posso apartar da intensa e complexa emoção
                          que me domina! ... ) dormem já, a seu lado, o bom e
                          sereno sono do túmulo, nessa modesta jazida fúnebre,
                          onde amanhã iremos em devota romagem, e que, se é
                          para vós como que o Panteon, onde repousa o vosso
                          Santo e o vosso Herói, é para mim um relicário de
                          amor, urna cinerária, que guarda o pó sagrado de
                          tantos corações que eu adorei, adoro, e hei-de
                          adorar até que o meu nela seja por sua vez encerrado,
                          tão piedosamente como eles o foram!
                          
                           Vinte anos vão passados, e estamos de novo aqui, unidos na mesma
                          devoção, dominados pela mesma idolatria! É que,
                          bons e queridos amigos, o vosso coração é desses
                          corações raros - que não sabem esquecer! É que vós,
                          com um nobre instinto moral, fizestes da sua
                          personalidade como que o vosso padroeiro cívico, como
                          que o vosso génio tutelar, e de geração em geração
                          sabeis manter acendrado e vivo esse culto que, se é
                          para a sua memória a suprema consagração, é para vós
                          um titulo de honra, de que legitimamente vos podeis
                          ufanar.
                          
                           Mas, hoje, o nosso agradecimento não é apenas para vós,
                          aveirenses! É para todo o pais, porque é de todo ele
                          esta festa de que nós aqui realizamos uma das celebrações.
                          Em face da memória ilustre, que é como o brasão
                          moral da vossa terra, todas as bandeiras, todas as
                          signas partidárias se inclinam com respeito, rendendo
                          homenagem a duas coisas que não têm, que não podem
                          ter partido: o génio e o carácter! A todos, pois, os
                          que aqui, ou em qualquer outro ponto do país, se
                          reunam hoje para aclamar, com sincero amor e sincero
                          entusiasmo, esta memória para mim sagrada, deste
                          lugar envio a saudação reconhecida que devemos aos
                          que nos acompanham nos melhores e mais íntimos
                          sentimentos do nosso coração.
                          
                           E, ditas estas palavras, meus senhores, cumprida esta grata obrigação,
                          eu deveria talvez calar-me e dar por finda a minha
                          interferência nesta cerimónia comemorativa. Porque,
                          bem o compreendeis, não me cumpria a mim, neste
                          momento e nesta solenidade, dizer-vos da vida e feitos
                          daquele de quem tão grandes e belos espíritos acabam
                          de fazer surgir diante de vossos olhos, com o poder
                          maravilhoso do talento e a magia da eloquência, o
                          vulto grandioso e dominador. Tal intento, da minha
                          parte, poderá, com razão, parecer indiscreto e
                          descabido. E será, além disso, inútil, bem inútil,
                          ir fazer de novo, medíocre, pálida e apagadamente o
                          que outros fizeram já com tanto brilho, tanto relevo
                          e tanta superioridade.
                          
                           Mas, desde que a vossa indulgência para comigo me quis honrar com
                          o encargo de unir, aqui, a minha pobre voz à dos
                          homens ilustres que escolhestes para celebrarem a glória
                          desse nome, que parece ser para a vossa adoração,
                          como era para a dos antigos o da sua divindade tópica
                          - eu não poderei eximir-me a dizer mais algumas
                          palavras (muito breves, todavia), para corresponder,
                          meus amigos, à vossa imerecida gentileza.
                          
                           Para isso, porém, preciso de infligir uma grande violência ao meu
                          espírito e ao meu coração. Preciso de esquecer os
                          laços que me unem àquele que vós glorificais.
                          Preciso de tornar-me surdo à voz do sangue, tão
                          imperativa e soberana. Preciso de fazer com que a este
                          nome: José Estêvão, não vibrem todas as
                          fibras do meu ser, toda a minha carne, todos os meus
                          nervos, toda a minha alma. Preciso de pôr-me fora de
                          mim mesmo, subtrair-me à minha própria natureza,
                          exilar por um momento do meu peito as minhas maiores
                          afeições, dar ao meu cérebro uma plena independência
                          de juízos, libertando-o da influência de todas as
                          idolatrias, de todos os fanatismos da religião
                          familiar.
                          
                           Consegui-lo-ei? É o que se vai ver. Sobre vós, porém, meus
                          amigos, descarrego desde já a responsabilidade do
                          provável insucesso desta arriscada e temerária
                          empresa.
                          
                            
                          
                           Meus Senhores, quando eu medito nesta vida, de cujo primeiro dia
                          hoje celebramos o centenário, quando eu medito nesta
                          existência relativamente curta, porque pouco passou
                          de meio século, mas tão intensamente vivida, toda
                          uma série de visões desfila diante dos meus olhos,
                          desde esse alegre Natal em que ele veio ao mundo, a
                          dois passos daqui, na austera casa de sua Avó, entre
                          a enternecida felicidade da Mãe e as primeiras
                          esperanças, os primeiros sonhos de ambição e do
                          orgulho paterno (tão completamente realizados
                          depois!) do homem venerando, do boníssimo e santíssimo
                          homem que foi seu Pai - até à hora do luto e dor,
                          luto e dor de um país inteiro, em que uns poucos de
                          milhares de cidadãos de todas as classes e condições,
                          ricos e pobres, nobres e plebeus, ministros de Estado
                          e simples operários, crentes e livres-pensadores,
                          amigos e adversários políticos, numa multidão promíscua,
                          em que todas as categorias se nivelaram e fundiram na
                          unidade igualitária do mesmo sofrimento, levaram a
                          braços, pelas ruas da cidade, melancólica e dorida,
                          o esquife onde ia o seu cadáver, a relíquia do Cidadão
                          exemplar, do Cidadão sans Peur et sans reproche,
                          ungido das lágrimas mais saudosas, sagrado para a
                          imortalidade pelo amor de todo um povo, pelo
                          reconhecimento de toda uma nação!
                          
                           Vejo a sua infância e a sua adolescência, passadas entre os
                          carinhos do lar, desabrochando já numa eclosão de
                          puros sentimentos e nobres aspirações sob a influência
                          do espírito lucidíssimo e das virtudes incomparáveis
                          do seu adorado Pai; sim, vejo-o aqui, menino e moço,
                          recebendo das impressões desta admirável paisagem -
                          da amplidão destas campinas verdejantes e planturosas,
                          destes canais fugitivos na sua extensa perspectiva
                          rectilínea e desta imensa laguna da Ria, de tão
                          variados e cambiantes aspectos; destas lindas
                          marinhas, onde a neve imaculada dos montes do sal - do
                          sal, símbolo da graça ática que tão finamente
                          temperou a sua eloquência! -, onde essa neve
                          imaculada põe em redor não sei que tons de candidez
                          e de virgínia frescura; desse perfil soberbo das
                          cordilheiras da Beira, que de longe parecem encarar,
                          por sobre estas planícies, a vastidão do Oceano,
                          como duas majestades que com majestade se contemplam;
                          desse mesmo Oceano, cuja grandeza revoltada, cuja
                          beleza convulsiva, ele tão profundamente sentiu e
                          exprimiu num dos mais vibrantes trechos dessa ode
                          patriótica, que é o discurso de Charles et
                          Georges vejo-o, digo, recebendo das impressões
                          desta paisagem, essa transfusão espiritual de beleza,
                          esse influxo estético e moral, que para sempre lhe
                          vinculará aqui a sua alma de artista e de poeta; e
                          recebendo ainda do nascente afecto dos seus patrícios,
                          que foram meus amigos, os vossos pais e os vossos avós,
                          essa atracção de humanidade, essa inclinação
                          social, esse primeiro nó dos laços colectivos, que
                          haviam de fazer dele o grande cidadão e o grande
                          patriota, ante o qual a posteridade já dobra,
                          reverente, o joelho.
                          
                           Vejo-o, depois, em Coimbra, na atmosfera inflamada de entusiasmo de
                          uma mocidade que via aproximar-se a hora de intervir
                          nos destinos do país, deslumbrada pelo sonho radiante
                          da liberdade, incitado pelos mais generosos estímulos
                          cívicos, deixar os livros, agarrar arrebatadamente o
                          pesado fuzil de pederneira, e, com os seus irmãos de
                          armas, receber, aos dezoito anos, no primeiro revés e
                          na primeira decepção, essa têmpera de estoicismo e
                          de inflexível coragem, que só o infortúnio é capaz
                          de dar ao carácter, tornando-o invulnerável como uma
                          coiraça de bronze. Vejo-o na triste retirada para a
                          Galiza e no áspero caminho do exílio, atravessar
                          descalço, e os pés em sangue, a ingrata terra
                          estrangeira! Vejo-o na sua desolação de desterrado,
                          como o mármore genial do nosso grande e infeliz
                          estatuário, os braços inertes, a alma corroída de
                          saudades, o espírito perdido nas incertezas, cada vez
                          maiores do seu destino, olhar com melancolia, do frio
                          e nevoento refúgio de Plymouth, esse vasto mar, para
                          além do qual lhe ficavam a pátria, a família, e
                          todos os seus amores, e todos os seus sonhos, e todas
                          as suas esperanças!
                          
                           Vejo-o mais tarde, vindo do Arquipélago heróico, onde começara a
                          Ilíada libertadora, avistar, numa radiante manhã de
                          Julho, entre lágrimas de intensa emoção, as nossas
                          verdejantes costas do Norte; vejo-o saltar nas areias
                          dessa praia de Pampelido, que eu tantas vezes visito
                          evocando este comovente episódio da sua vida, vejo-o
                          a saltar ali, com o coração a bater de fé e de
                          receios; vejo-o avançar sobre a cidade, arrastando,
                          com os seus camaradas, os pesados canhões pelos
                          velhos caminhos quase intransitáveis, e aí, em meio
                          de uma praça, súbita, inesperadamente, descobrir
                          entre a multidão o vulto querido e adorado de seu
                          Pai, de quem, havia quatro anos, mal sabia, e, com o
                          maior grito de alma estrangulado na garganta pela comoção,
                          cair-lhe nos braços, face contra face, peito contra
                          peito, lágrimas santas misturadas na mais patética,
                          mais inexprimível, mais louca e delirante das
                          felicidades!
                          
                           E vejo-o agora na hora suprema da sua vida de soldado. Vejo-o na
                          Serra, na lendária Serra, entre o sibilar das balas,
                          o troar dos canhões, o estalar da metralha, o retinir
                          das espadas e das baionetas, cruzando-se às vezes já
                          sobre os peitoris das baterias; vejo-o aí haver-se
                          com tal bravura e tal serenidade, que a Torre e Espada
                          lhe desabrocha no peito como uma flor de glória, não
                          já concedida pelo arbítrio justiceiro de um chefe,
                          mas posta ali (suprema e inigualável honra!) pelas mãos
                          dos próprios camaradas que, num voto unânime e por
                          um acto colectivo e espontâneo, o proclamavam assim o
                          bravo dos bravos! Vejo-o na Flecha dos Mortos, nesse
                          terrível reduto, cujo nome só por si é um pregão
                          de heroísmo, vejo-o impávido e audaz, entre os seus
                          vinte soldados, caídos a seu lado, mortos ou feridos,
                          esperar de morrão aceso, ao pé da sua peça, a
                          esposa heróica do artilheiro nessas núpcias de morte
                          e de glória, que são as batalhas! - esperar ao pé
                          dela a entrada dos inimigos na bateria, que já não
                          podia defender, queimar com o morrão, num gesto
                          violento e provocador, as barbas do comandante da força,
                          e retirar sob um chuveiro de balas, para logo voltar
                          com reforços e reaver, à arma branca, numa carga
                          furiosa, a posição um momento perdida!
                          
                           Mas o cenário muda agora de repente. Já não são os campos de
                          batalha, juncados de cadáveres, rubros de sangue,
                          fumegantes de ruínas; já não são as muralhas das
                          fortalezas, rasgando-se em brechas formidáveis sob as
                          lufadas de ferro e fogo da metralha. Não. Agora é a
                          sala de um Congresso, onde essa geração, que veio
                          dos sofrimentos e misérias do exílio e dos triunfos
                          de cinco anos de lutas gloriosas, vai tomar nas suas mãos
                          o destino do regime que o seu valor e o seu civismo
                          acabavam do fundar. E, então, não menos belo, não
                          menos intrépido, não menos vibrante de entusiasmo, o
                          seu vulto aparece a meus olhos, nobre, radiante,
                          varonil, dominador, aureolado pelo halo divino do
                          talento, em toda a majestade da grandeza tribunícia.
                          Vejo fuzilar-lhe o olhar ardente na face pálida de
                          iluminado; vejo os meneios nervosos da sua bela cabeça,
                          o fulgor da sua larga fronte, o ofegar do peito, o
                          palpitar das narinas, a imponência das atitudes, a
                          empolgante fascinação do gesto. Oiço a sua voz, a
                          sua bela voz, de tantas e tão variadas notas, como
                          afirmam todos aqueles que o escutaram, ora vibrante e
                          estrídula como um grito de águia real, ora cheia,
                          profunda, sonora como um rugido de leão, ora
                          arrebatada e impetuosa como uma rajada de vendaval,
                          ora cantante e cristalina como um rumor de águas numa
                          fresca levada...
                          
                           E, assombrado, contemplo-o nessa tribuna como num pedestal de glória,
                          a proclamar e a defender, com irresistível eloquência,
                          todos os seus princípios, todos os artigos de fé do
                          seu credo político. - A liberdade, primeiro, - a
                          liberdade de que ele foi, entre nós, como face a
                          face, no parlamento lhe disse PASSOS MANUEL, «o mais
                          estrénuo defensor», a liberdade de que ele foi o
                          paladino intemerato, o campeador invencível; essa
                          pura liberdade, primeiro dos direitos morais do homem,
                          que era na sua alma, não um sentimento faccioso e
                          estreito, não uma cega e virulenta paixão sectária,
                          mas uma nobre, uma generosa aspiração do espírito,
                          reivindicando a sua plena independência em face de
                          todos os problemas do Universo, da Consciência ou da
                          Vida Social, e um largo e ardente sonho humanitário,
                          um direito novo fraternal e justiceiro, cujos benefícios
                          e regalias ele, na sua imensa tolerância, sempre
                          afirmada em palavras e confirmada em actos, como na
                          defesa do Portugal Velho, queria que, sem excepções,
                          que seriam um ilogismo, uma contradição fundamental
                          da doutrina, se estendesse a todas as convicções e a
                          todas as crenças, a todos os princípios políticos e
                          a todas as reservas confessionais! - A justiça,
                          enlevo supremo das grandes almas, pedra de toque de
                          todo o carácter, sentimento em que a serenidade
                          austera da razão se funde maravilhosamente com a
                          piedade humana, - a justiça, pedra angular de toda a
                          vida social, timbre, honra e dever dos que guiam as
                          sociedades, garantia e direito de todos os que a
                          constituem, - a justiça, guarda vigilante da ordem,
                          defensora dos fracos, libertadora dos oprimidos,
                          demolidora dos privilégios, niveladora das classes, -
                          a justiça, a bússola firme e segura desse norte de
                          igualdade, para onde a civilização política avança
                          na viagem da História, - a justiça que o inspirou em
                          todos os seus actos, o guiou em toda a sua vida e foi
                          para a sua alma aquela fome e sede
                          bem-aventuradas, de que o Cristo, num profundo
                          pensamento, só prometia aos homens a plena saciedade
                          no seu reino idealmente perfeito! - O patriotismo,
                          que, com a sua fé de cristão sincero e o seu amor da
                          família, constituía os três grandes cultos do seu
                          coração, o tríptico das suas devoções mais
                          profundas; - o patriotismo, que era nele uma síntese
                          de amores, de intensos e puros amores: o amor desta
                          bela e boa terra portuguesa, a que o seu coração se
                          sentia preso por tantas e tão fortes raízes, o amor
                          dos seus concidadãos, a quem o uniam o seu poderoso
                          sentimento cívico e todos os nexos ancestrais de
                          sangue e de raça, o amor das nossas tradições históricas,
                          do nosso assombroso passado, tão cheio do frémito
                          heróico, com que mais de uma vez palpitara a sua alma
                          de soldado; - o patriotismo, que na sua boca de oiro
                          vibrava em verdadeiros cantos de epopeia, retumbante e
                          ardente como um fragor de refrega, sonoros e triunfais
                          como um hino de vitória! - O civismo, essa religião
                          grandiosa do dever social, em cujas tábuas da lei
                          se inscreveu, como mandamentos supremos, o altruísmo
                          na sua forma colectiva, o sacrifício individual, a
                          abnegação, o desinteresse, a honestidade inconcussa,
                          o zelo da causa pública, código austero de que a sua
                          vida de cidadão foi um exemplo de admirável
                          cumprimento estrito, que o levou aos riscos da guerra,
                          às misérias e às lágrimas da expatriação e o fez
                          manter-se, até ao fim da sua carreira, tão isenta de
                          honrarias e proventos como a começara, tendo apenas
                          no peito o seu colar da Torre e Espada, no braço os
                          seus galões de oficial e uma cadeira no magistério,
                          conquistada também, como um trofeu de vitória, numa
                          luta em que o seu talento ficara vencedor. - O
                          progresso, o progresso material e moral, o progresso
                          indicador da civilização dos povos, de que ele se
                          constitui um dos mais fervorosos apóstolos, quando,
                          após tantos anos de guerras civis, de querelas partidárias,
                          de conflitos de doutrina, que imobilizaram toda a
                          energia produtiva do país, e travaram a roda do seu
                          desenvolvimento económico e social, se convenceu de
                          que as fórmulas não tinham, só por si, o poder mágico
                          de educar o povo, de fomentar o trabalho, de criar
                          riqueza, de fazer circular produtos, de difundir a
                          instrução em todos os seus ramos, de equilibrar os
                          interesses das classes segundo os justos princípios
                          da democracia social! ...
                          
                           Vejo ainda...
                          
                           Mas - basta! Esta evocação já vos parecerá longa de mais,
                          atropelada e confusa. E eu temo bem que ela tenha sido
                          mais nociva do que útil ao meu propósito, que era o
                          de dar-vos, numa visão rápida, a síntese da sua
                          grande vida, tal como eu a vejo e contemplo na minha
                          pura admiração de homem, e fora do âmbito mais
                          reservado da piedade filial.
                          
                           Este quadro, porém, tão mal esboçado, tão impreciso de linhas,
                          tão empastado de cores, este escorço, este resumo da
                          sua vida, visava a um fim: o poder tirar dele uma
                          conclusão de moralista. Lembro-me de, há vinte anos,
                          vos ter dito, aqui mesmo, que, em política, eu era,
                          sobretudo, um moralista. Sou-o ainda hoje: sou-o hoje
                          mais do que nunca! Estes vinte anos, com a sua árdua
                          experiência, as suas muitas lições dos homens e das
                          coisas, os seus desenganos, as suas responsabilidades,
                          arreigaram mais profundamente no meu espirito este
                          critério. Já mal sei ver os homens de outra forma ou
                          por outro prisma. Já mal distingo as extremas das
                          suas classes, no retalhado campo social. Já mal
                          enxergo os emblemas litúrgicos dos seus cultos e os
                          guiões de combate das suas falanges políticas.
                          
                           Quase que só vejo espíritos e só vejo almas!
                          
                           Ora, através dessa vida, meus Senhores, o que eu descortino, o que
                          eu sinto, o que eu palpo, numa espécie de misterioso
                          contacto psíquico, é uma das maiores, das mais
                          puras, das mais nobres, das mais generosas almas que
                          palpitaram em peitos portugueses.
                          
                           Porque, para mim, o génio e o heroísmo, quando os não divinizam
                          a grandeza moral e um elevado sentimento de
                          humanidade, são no homem altos, brilhantes, sublimes
                          predicados, sim, mas elementos insuficientes,
                          incompletos, para constituírem, integra, plena e
                          global, deixem-me assim dizer, a personalidade humana.
                          Em todas as figuras históricas, mesmo as mais
                          grandiosas, há sempre um não sei quê de imperfeito,
                          sente-se como que uma falha, semelhante à moeda que não
                          dá, ao toque, o timbre característico do ouro de lei
                          - quando nelas não achamos, distintas ou confundidas,
                          a austeridade severa do carácter e esse doce leite
                          da bondade humana, como lhe chama o ilustre
                          pensador inglês, esse poder de emoção, de benevolência,
                          de filantropia, de amor, enfim, que torna os grandes
                          homens não só admirados, mas amados também.
                          
                           Admiração, amor, - êxtase do espírito, êxtase do coração:
                          eis a imortalidade! Mas na admiração pode deixar de
                          haver amor; ao passo que o amor, esse, é já em si
                          mesmo uma verdadeira admiração. E quem não amou os
                          homens, poderá ter deles todas as consagrações, que
                          uma alta individualidade impõe aos contemporâneos e
                          aos vindouros, mas nunca terá esse amor, que lhes não
                          soube dar!
                          
                           Admiramos o Infante de Sagres, admiramos o Príncipe Perfeito,
                          admiramos Vasco da Gama e o terribil Albuquerque.
                          Mas o egoísmo do visionário, a duplicidade insidiosa
                          do político, a dureza inclemente e a desumanidade
                          truculenta dos conquistadores cerram-lhes os nossos
                          corações. Deslumbra-nos a sua glória, assombram-nos
                          o seu génio e a sua força, orgulhamo-nos dos seus
                          grandes nomes; mas não os amamos, não os podemos
                          amar!
                          
                           Mas Nun'Álvares, no seu heroísmo cândido, na pureza mística da
                          sua alma, na sua humildade, que o levou ao claustro,
                          quando o seu braço já não era preciso à pátria;
                          mas o Infante D. Pedro, o austero regente, o
                          cavalheiresco vencido de Alfarrobeira, espelho de
                          incomparáveis virtudes, maravilha de honra, de
                          lealdade, de justiça, de valor; mas Camões, que, na
                          sua agitada vida, iluminada pelo génio, coroada pelo
                          heroísmo, sagrada pelo infortúnio e pela dor, pôs
                          em tudo o seu grande e ardente coração amando com
                          igual intensidade patética a Mulher, a Pátria e a glória
                          - ah! estes, sim, estes têm em nós um culto
                          perfeito, têm no altar das nossas almas uma plena e
                          completa adoração!
                          
                           Meus Senhores, é esta mesma adoração, íntegra e sem reservas,
                          que em vós, que no País inteiro, tem a memória do
                          homem de quem celebramos o centenário natalício. E
                          é esse, entre os muitos sinais da sua grandeza, um
                          dos maiores, dos mais irrecusáveis. Não lhe faltou o
                          génio, não lhe faltou o valor - e os loiros, que
                          cingem a fronte dos inspirados e dos bravos, ficam bem
                          na sua, tão nobre e tão bela. Mas o que, tanto como
                          esses títulos, enaltece o seu nome, avoluma o seu
                          vulto, e é a magnanimidade do seu nobilíssimo coração:
                          são as suas virtudes de homem e de cidadão, a sua
                          bondade, a sua cordialidade, a sua lealdade, a sua
                          inteireza, a sua honradez, a sua abnegação, a
                          sinceridade das suas convicções, o ardor da sua fé
                          política, a austeridade do seu intemerato civismo. Sim, é tudo isto que, junto à eloquência
                          fulgurante do tribuno e à valentia do soldado, torna
                          enorme, avassaladora, empolgante e verdadeiramente
                          adorável a sua figura - essa grande sombra de Além-túmulo,
                          que parece ressuscitar à evocação do nosso amor e
                          pairar agora aqui sobre nós, para que o seu coração
                          sinta ainda uma vez, bem vivos e palpitantes, a doce
                          carícia dos nossos afectos, a santa unção das
                          nossas saudades, o calor do vosso entusiasmo, que em
                          vida foram para ele incitamento para tanta luta, prémio
                          de tantos esforços, alívio para as suas maiores
                          dores!»
                          
                          
 In:  «Arquivo do Distrito de Aveiro»,
                    vol. XXVIII, 1962. |