Trabalhos antes da consoada |
A noite passou num instante. São dez
horas da manhã. Um domingo de céu azul e grande calor.
Um domingo diferente dos outros: é véspera de Natal.
Não há frio. Não há neve. Não há gelo. Não
há enfeites nem música de Natal. Mas sente-se que é um
domingo diferente dos outros. Paira no ar aquela
sensação característica das vésperas de Natal. Se
calhar é só imaginação minha! Mas que sinto qualquer
coisa de diferente, lá isso sinto! Não fosse ter de ir
ainda à Camuanga, teria sido um domingo de relativo
descanso. Mas não o foi! Foi um domingo de trabalho. Ao
domingo não se deve trabalhar. Mas se não se trabalha,
sofrem-se as consequências da falta do trabalho, que
são mais funestas que ocupando-se o dia a trabalhar.
Logo, como o que tem de ser tem muita força, foi um
domingo de trabalho para todos: uns a viajar na picada,
para levar o reabastecimento; outros, a trabalharem na
reconstrução do forno; outros ainda, a tratarem da
comida para toda a gente. Se respeitássemos o domingo e
ninguém trabalhasse, acabávamos por passar fome. Antes de arrancar com o
reabastecimento para a Camuanga, enquanto o furriel foi
com o pessoal carregar o unimogue, fui dar apoio ao velho
Manel. A Berliet, que deixámos na véspera
carregada com o tijolo junto ao forno abatido, foi de
manhã, logo a seguir ao pequeno almoço, descarregada
pelos miúdos da sanzala, que ajudam os cozinheiros. Uma
secção foi, entretanto, com o velho Manel carregar
barro na zona próxima do local onde vamos à água. Toda
a terra à volta do destacamento é barrenta. Mas o
local indicado pelo velhote é o melhor. É lá que os
nativos retiram o barro com que fazem os tijolos secos ao
sol para as cubatas mais evoluí das. O barro foi descarregado próximo do
forno e amassado com os pés pelos miúdos. Depois de
limpa toda a superfície onde é cozido o pão, o velho
Manel começou a dispor as fiadas de tijolo em círculo. Quando arranquei com o pessoal para a
Camuanga, estava-se na fase da limpeza e escolha dos
tijolos aproveitáveis. Não posso descrever a maneira
como o velho Manel reconstruiu o forno, porque todo o
trabalho decorreu na minha ausência. Posso apenas
imaginar como é que ele deverá ter procedido.
Todavia, como prefiro factos concretos e não imaginados,
vou ter de pôr de lado estes pormenores e limitar-me ao
relato da viagem à Camuanga. Será um relato
muito mais breve do que as quatro horas de viagem, duas
horas para cada lado. Vou-me limitar ao mínimo de
informações. Nem a descrição farei. Também, nem tive
tempo de a visitar devidamente. Foi descarregar o
reabastecimento o mais depressa possível e regressar ao
Alto Zaza. Durante o próximo ano, não hão-de faltar
oportunidades de conhecer e fotografar a Camuanga.
Bastará dizer que a viagem se fez com a máxima
velocidade que a picada nos permitiu. Não tivemos
problemas no percurso. Apenas aqui registo que há
algumas zonas que são óptimas para fazer emboscadas. A maior parte do percurso é feita no
meio de mata cerrada. Nestes locais, a menos que sejam
colocadas minas na picada, não há grandes hipóteses de
ataques. Mas, na zona a seguir à povoação de
Quilambiquissa, há um local que daria uma óptima
emboscada. Se eu fosse turra, era ali que preparava uma
emboscada a uma coluna. Depois da povoação, há uma
curva aberta antes de uma subida bastante íngreme, de
terra argilosa onde, com chuva, as viaturas terão
dificuldade em subir. No flanco esquerdo da subida, há
um morro elevado, de onde se deve abarcar toda a picada.
Com os homens aí distribuídos e umas metralhadores
bem posicionadas, era uma limpeza geral na coluna que
surgisse depois da curva, sem consequências para o grupo
atacante. Devo acrescentar que, naquela zona,
tive uma sensação no estômago. No começo da subida,
acariciei a espingarda e reflecti rapidamente sobre o que
faria, se ouvisse subitamente qualquer detonação. Foi
uma sensação esquisita, que guardei comigo e agora
mesmo me fez eriçar os pelos do corpo. Guardei comigo
esta sensação e só aqui a deixo para desabafo. Mas
não me posso esquecer de uma coisa importante: nas
próximas deslocações à Camuanga, terei de
alertar o meu pessoal para os cuidados a ter,
especialmente quando chegarmos àquele zona. Da ida à Camuanga não digo mais nada.
Termino aqui o registo deste facto, anotando a
satisfação do grupo, ao receber o reabastecimento e o
saco da correspondência. Entreguei também a caixa com o
bolo-rei ao furriel que comanda o destacamento e
regressei imediatamente ao Alto Zaza. Antes, ainda
cumprimentei todo o pessoal, para lhe desejar um feliz
Natal. Passava pouco das duas da tarde quando
entrámos no destacamento. Durante o almoço, que estava
guardado para nós, fui informado pelo furriel de
serviço da situação no destacamento. — Alferes, o forno do pão está
pronto. Tem de o ir ver. O velho Manel é um artista do
caraças. Está ali uma obra que se pode ver. — E quando é que temos a primeira
fornada? — Há pouco, a seguir ao almoço,
foi feita uma grande fogueira para secar e cozer o barro.
O padeiro já tem a massa a levedar. Ao fim da tarde,
devem começar a sair as primeiras fornadas. — Temos de festejar a inauguração do
novo forno. Pão quente com manteiga e uma cervejas
dá uma gulodice de lamber os beiços. — O alferes gosta disso? — Pudera! Não havia de gostar do
cheiro do pão acabado de cozer e, sobretudo, de lhe
meter o dente depois de bem amanteigado?! Quem
é que não gosta? — Pode contar connosco para esse
servicinho. — disseram os furriéis que estavam ali
comigo. Alinhamos nisso. — E a propósito, Ramalho, o que vai
ser hoje a nossa ceia de Natal? — — E couves? — Não, alferes. Não estamos na
Metrópole. Aqui não há couves dessas que o alferes
está a imaginar. Batatas cozidas com bacalhau e
azeite e umas azeitonas, para quem gostar... — ... E já não é nada mau! —
acrescentei, completando a frase do furriel. Decora-se a
mesa com o bolo-rei e as frutas secas que recebemos da
Metrópole. Com um pouco de imaginação, sentimo-nos
quase como em casa. — As sentinelas para a noite são as
habituais, alferes? — De modo nenhum. De acordo com as
mensagens recebidas, estamos de prevenção. As
sentinelas têm de ser redobradas. Têm de ter o máximo
do cuidado. Estas alturas são as melhores para ataques a
quartéis. Por que razão acha que tivemos a operação
de cinco dias junto à fronteira? Foi para dissuadir
as infiltrações terroristas na nossa zona. — E o alferes acha que a acção teve
algum efeito? — Creio que não. Os turras não são
parvos. Antes da operação se ter realizado,
já eles deviam estar fartos de receber
informações. Além do mais, com o barulho e aparato dos
helicópteros, junto à fronteira, e com o
território vastíssimo como é a nossa zona, eles
têm sempre por onde penetrar em território nacional.
Vamos nós para um lado, vão eles para outro. É um jogo
do gato e do rato. Agora, se me dão licença, vou dar
uma volta. Estou em pulgas para ir ver a obra do velho
Manel. Saí do edifício do comando.
Acompanharam-me dois furriéis, que aproveitaram a minha
companhia para ajudar a passar o tempo. Encontrei o
velhote no local. Inspeccionava orgulhosa e atentamente a
cozedura do forno. Verificava se estava tudo em ordem e
se não saía fumo por alguma frincha. — Meu alferes, 'tá a ver? Aqui o
velho Manel cumpriu a missão. Temos um forno novo.
Está uma beleza! Agradeci o trabalho e dei-lhe os
parabéns. De facto, a obra está digna de se ver. E
logo, quando sair a primeira fornada, temos de celebrar a
inauguração com umas cervejitas e pão quente com
manteiga. O velho Manel e todo o pessoal que colaborou
consigo vai alinhar, não é verdade? Antes do nosso jantar de consoada,
parte da primeira fornada foi o prato forte da nossa
solene inauguração do forno. Se estivéssemos no
continente, tínhamos quase de certeza aqui algum
ministro a cortar as fitas. Não cortámos as fitas, mas
sim o pão acabado de sair para o lubrificar com uns bons
nacos de manteiga, que se derretia logo com a elevada
temperatura do miolo. Foi uma solene e saborosa
inauguração, com muitos convivas. Juntaram-se não
só os soldados que ajudaram no trabalho, mas
também os miúdos da sanzala, que ajudam na cozinha, e
que emprestaram os pés para amassar o barro. Era um
grupo numeroso, bem superior ao número de elementos
necessários para a reconstrução do forno. Cerveja para
os adultos, refrigerantes para a pequenada. Pouco depois, antes do meu jantar com
os furriéis, passei uns minutos no refeitório com o meu
pessoal. Além de lhes ter desejado um Natal o mais feliz
possível, dentro das limitações do momento,
lembrei-lhes que, estando-se na época do Natal, as
sentinelas têm de se manter nos postos com redobrada
atenção. Fiz-lhes notar que, se quisermos ter os
futuros Natais em segurança, junto dos nossos
familiares, essas ocasiões futuras estão apenas
dependentes do nosso comportamento actual. Fiz-lhes notar
que a desatenção de um só elemento pode ser a causa da
morte de quarenta elementos. Fiz-lhes notar que já uma
vemos tínhamos recebido um aviso sem consequências,
ainda na fase da «maçariquice» e que maçaricos
seremos sempre, se não usarmos das devidas cautelas.
Creio que todo o pessoal ouviu com a máxima atenção a
minha mensagem de boas festas. Entenderam perfeitamente
que as melhores boas festas que poderemos ter
é acordar sempre no dia seguinte com o físico
intacto e sem sustos. |