Preparativos para a consoada |
Tive de interromper por momentos o meu
relato. Surgiu um pequeno problema para resolver, que
não foi problema nenhum. Nada de especial. Apenas foi
necessário mandar uma secção à água. É uma
situação que não precisava sequer da minha presença.
Mas queriam saber se eu também queria ir com o grupo. A
razão é fácil de ver. Estão habituados à minha
frequente companhia. Costumo ir com o pessoal e aproveito
para tomar um banho no riacho. É um momento agradável
de convívio. Depois de colocadas duas ou
três sentinelas em locais estratégicos e enchidos os
bidões, o pessoal despe-se e vai para dentro de água
tirar a porcaria e poeira da picada de cima do corpo. Às
vezes, encontram-se mulheres nativas a lavar a roupa. Mas
já nos habituámos uns aos outros. Salta toda a gente
à mesma, em pelota, para dentro da água. Ninguém
repara. Da primeira vez, os soldados ainda fixaram os
olhos nas mulheres. É que elas, habitualmente,
encontram-se em tronco nu, de seios à mostra. Mas
isto já não constitui surpresa, nem motivo de
atracção. É cena frequente aqui na zona. Do mesmo
modo, também elas não ligam nenhuma se estamos vestidos
ou não. É uma situação que é encarada como
a coisa mais natural deste mundo. Curiosamente, se uma
nativa se apresenta nua, na nossa frente, ficamos
indiferentes; todavia, se nos aparece bem vestida, com
saias com desenhos e cores vistosas, olhamos
imediatamente e admiramo-la. Em suma, fui desviado do assunto que
estava a tratar por esta interrupção. Aliás, foi esta
a primeira interrupção. Reflectindo um pouco sobre o
que já escrevi, verifico que o volume de aerogramas
já vai elevado. Neste momento, tenho vinte
aerogramas escritos em letra miudinha e compacta. Também
não é de admirar. Consegui estar umas três horas
seguidas a escrever, sem nunca ter sido interrompido. A
verdade, contudo, é que o convite do meu pessoal para ir
ao banho foi o bastante para me fazer perder o fio à
meada. Como fazer para o reatar? Já sei! Vou
preparar uma bebida fresca, uma Seven-Up ou uma Quick
gelada com uma tampa de uísque. Releio tudo o que
já escrevi e será a maneira mais fácil de
retomar a escrita. Durante o jantar, as conversas giraram
todas em torno da operação helitransportada. Ouvimos o
relato do furriel que ficou com as duas secções do Alto
Zaza e falou-se da correspondência recebida. A urgência
em iniciar a reparação das viaturas fez-me sair mais
cedo do nosso edifício. Queriam também saber qual a
surpresa que trazia de Quimbele, mas desculpei-me com a
necessidade de ir dar apoio psicológico aos mecânicos.
Em breve, estava na zona das viaturas, ou seja, na zona
onde está o depósito de combustível e o coberto, feito
de estacas e chapas de zinco, onde são guardadas as
viaturas mais pequenas. A falta de luz eléctrica no
destacamento, por avaria prolongada do gerador, foi
ultrapassada pelos mecânicos. Aproveitando a energia
acumulada nas baterias, os mecânicos improvisaram uma
espécie de gambiarra com que iluminam a área a reparar.
Apesar de termos «petromaxes», estas pequenas
gambiarras são mais práticas e menos perigosas. Se o
candeeiro a petróleo cair, estilhaça-se o vidro de
protecção e desfaz-se a manga incandescente, onde arde
o petróleo pulverizado sob pressão. E há o risco
de incêndio. Com as gambiarras, a pequena lâmpada de 12
voltes é colocada onde é mais necessário. Com o
açaime de arame em toda a volta, que os mecânicos lhe
fizeram, não corre o risco de se partir e dá uma
óptima luz, que uma folha brilhante de alumínio,
retirada de uma lata de leite em pó, concentra na área
pretendida. — O alferes não precisa de estar aqui
connosco. — diz-me um dos mecânicos.
Vá aproveitar para dormir, que nós damos conta do
recado. — De certeza que não querem a minha
companhia? — A sua companhia é agradável,
alferes. Mas não é preciso perder a noite. — Amanhã de manhã temos de
ir levar o reabastecimento ao pessoal da Camuanga. É
véspera de Natal. Têm o direito de comer e receber a
correspondência, que trouxemos de Quimbele. — Ó alferes, esteja descansado.
Amanhã temos as viaturas em ordem. Com as peças
recebidas, isto é trabalho para umas duas ou três
horitas. Não se preocupe. Vá descansar. Despedi-me do pessoal e fui passar uma
pequena ronda ao destacamento, antes de regressar ao
edifício do comando. Estava tudo em ordem. A noite estrelada. Todas as sentinelas
nos devidos lugares. Nas casernas, alguns soldados
jogavam as cartas. Outros conversavam. Outros liam e
reliam as cartas dos familiares e namoradas. De vez em
quando, no meio das conversas e risadas, ouviam-se roncos
surdos. Alguns soldados, cansados dos cinco dias na mata,
recuperavam e sonhavam com a terra, os familiares, os
amigos, as namoradas. Um deles estava com ar calmo e
feliz. Pela posição, deveria estar abraçado
à namorada ou à mulher deixada na Metrópole.
Revivia em sonhos as noites passados a dois. Quem sabe
até se não estariam a sonhar com a consoada de Natal
junto da família, com a ida à Missa do Galo, lá
na aldeia, e com os momentos passados junto ao cepo do
Natal, o enorme tronco que, em algumas aldeias, costuma
arder durante toda a noite no adro da igreja? Animado por estes pensamentos
agradáveis, regressei ao edifício do comando. O Donato estava já deitado.
Também ele recuperava dos últimos cinco dias. Os
restantes furriéis conversavam em voz baixa, sentados à
mesa onde tomamos as nossas refeições, onde jogamos às
cartas ou ao póquer, onde os furriéis costumam pôr a
correspondência em dia e onde me reúno com eles, quando
é preciso transmitir ordens e verificar a escala de
serviço. Interrompi-lhes a conversa e preparei as
actividades do dia seguinte. — Amanhã é véspera de Natal.
Antes de festejarmos a consoada, vamos ter um dia muito
ocupado. — Amanhã, alferes? — perguntou um
furriel. — Sim, amanhã. O pessoal da Camuanga
tem de ser reabastecido e receber a correspondência que
trouxemos de Quimbele. O forno tem de ser reconstruído,
para comermos pão fresco. Há muito que fazer. O
Ramalho vai agora fazer-me um favor... — Diga, alferes. — Vai ao depósito buscar uma das
caixas que recebemos. Temos de saber o que lá vem. Passados uns minutos, reentrava o
Ramalho com uma caixa. Abrimo-la. Tivemos uma surpresa agradável. Lá dentro, um magnífico e enorme
bolo-rei. — Estamos com sorte! — disse um dos
furriéis. Vamos ter uma pequena lembrança do Natal da
Metrópole. Sem bolo-rei não era Natal, nem nada! — Quantas caixas recebemos? Onde
estão as guias para eu assinar? As caixas não eram muitas. Dava, com
um bom racionamento, para celebrarmos a consoada e o
almoço de Natal. Fiz a distribuição: — Uma caixa vai amanhã comigo
para o pessoal da Camuanga, juntamente com o
reabastecimento e o correio. Três são para o nosso
pessoal. E esta aqui é para nós comermos. Bem
racionado, metade dá para a noite de consoada e o
almoço de Natal; a outra, ficará para termos
bolo-rei na passagem do ano. Por causa das coisas, esta
caixa vai já para o meu gabinete.
Amanhã será incertada. Irá decorar a nossa mesa,
juntamente com as gulodices que os meus pais me mandaram. — O alferes já se quer aboletar com o
bolo... — Vocês são parvos! Parece que ainda
não me conhecem! Mudemos de conversa, para não nos
chatearmos. Quem quer ir amanhã comigo à Camuanga?
É o destacamento mais próximo da fronteira, na
área do Alto Zaza, que eu ainda não conheço. Para facilitar a análise da
situação, fui ao gabinete buscar uma carta militar.
Desdobrei-a sobre a mesa. Procurámos a Camuanga. Lá
estava o destacamento, assinalado com três caganitas de
mosca, que mal se viam, na extremidade de uma picada. — Sabem que mais? — perguntei aos
furriéis. Tive agora uma ideia. Para não andar com a
carta topográfica dobrada e a pesar no bolso do
camuflado, a aquecer-me a coxa, vou buscar papel vegetal
e fazer um duplicado. Será mais fácil a consulta,
apenas com os elementos de que necessitamos mais
frequentemente. A ideia foi bem aceite por todos.
Serviu-nos de passatempo. Em poucos minutos, obtive um
perfeito duplicado da carta topográfica. Vai passar a
acompanhar-me para todo o lado, enquanto estiver aqui na
zona. E há de ir comigo para a metrópole, quando
acabar a comissão. Será uma recordação e um
documento interessante quando, mais tarde, daqui por uns
anos, reler esta correspondência. — Afinal, quem é que vai
amanhã comigo? Ninguém se importava de ir. Estavam
todos dispostos a acompanhar-me. — Então, é necessário escolher.
Quem vai estar amanhã de furriel de dia? Consultámos a escala de serviço. E,
para o furriel de serviço, fiz-lhe imediatamente as
minhas recomendações: — Amanhã, enquanto nos deslocarmos
à Camuanga, deverá ser dado o máximo apoio
ao velho Manel. Se ele precisar, temos aqui soldados que
são pedreiros na vida civil. Temos, por exemplo, o
Valentim. O Monteiro também é pedreiro, mas agora fica
de fora, porque é um dos nossos condutores. Se calhar,
até vai ser ele amanhã o nosso condutor. Temos
também o Carvalho, de Cabeceiras de Basto. É agora
apontador de metralhadora, mas poderá também dar
uma ajuda. — O alferes não se preocupe. Amanhã
eu cá me desenrasco. — Ah, já me esquecia... Se o
velho Manel quiser, pode-se refrescar enquanto trabalha
com umas cervejitas frescas. É por conta da tropa. Se
não houver dinheiro, serei eu que lhas dou. — E o resto do pessoal que o for
ajudar? — Quando digo o velho Manel, incluo
também todo o pessoal que o ajudar. O que é mais
importante é termos forno e pão fresco. Interrompo novamente o meu relato. Acabo de ser assaltado. Surgiu-me uma nova reflexão. Acabo de me colocar no vosso lugar e surgiram-me os vossos pensamentos. Estão a pensar que, com tantos diálogos, nunca mais chego à véspera de Natal e às respostas à correspondência. Que querem que faça? Aqui, no meio do mato, enquanto estou a escrever, começo a reviver as cenas passadas. As personagens apoderam-se da minha caneta e dos meus dedos. Mesmo sem eu querer, aproveitam-se da minha fraqueza para retomarem a conversa umas com as outras. É como se tivéssemos rebobinado a máquina do tempo e a fita dos acontecimentos voltasse a ser lida. Por outro lado, o que é que querem que eu faça aqui no meio do mato? Sem televisão, sem cinema, sem cafés, sem outras formas de passar o tempo, tenho que me dar por muito satisfeito em ter esta forma de ocupar o tempo. É uma fuga temporário deste local. Enquanto escrevo, sinto-me em conversa junto de vós. Revivo os factos e o tempo passa muito mais depressa. Mas dou-vos razão. Vou ter de pôr freio na imaginação e cingir-me a um relato mais sintético dos acontecimentos. Fica aqui a intenção. Mas não a promessa! Posso voltar a esquecer-me. Voltam as personagens a reviver os acontecimentos na minha mente, e lá se vai a promessa! |