Véspera de operação

Sanza Pombo, 22 de Dezembro de 1972

Devem estar a receber um volumoso maço de aerogramas redigidos à pressa, verdadeiramente em contra-relógio, nas últimas horas do dia 18. Neste momento, deveria estar em plena selva, junto à fronteira, a festejar o meu aniversário com uma ração de combate ou a chupar uma bisnaga de leite condensado, debaixo de uma pequena tenda camuflada com arbustos, na companhia de dois camaradas. Todavia, como podem ver pelo início da carta (de momento não disponho de aerogramas), estou a escrever-vos de Sanza Pombo, sede do Batalhão 4511, relativamente distante do local para onde me desterraram. Porquê esta súbita e imprevista mudança de cenário? É o que vão ficar a saber, se tiverem a paciência e a curiosidade de ler o resto da carta.

São cinco da manhã do dia 19, uma terça feira. A primeira claridade do dia começa a penetrar no meu gabinete e a permitir observar as formas dos objectos. Nos colchões insufláveis, entre a minha cama e a mesa de trabalho, dormem ainda o capitão Alberto e o alferes Valério. Não sei bem onde o concerto é mais forte, se aqui no meu gabinete, se na sala ao lado, onde estão seis furriéis: os meus quatro elementos mais os dois que vieram de Quimbele. A sinfonia deve ser maior do outro lado, pois são seis contra dois. Deve ter sido este «roncerto» que me acordou. E daí talvez não. Ultimamente, durmo muito pouco. Ocupo muitas vezes a noite, ou a escrever, ou a dar uma volta pelo aquartelamento. Esta rotina permite-me reforçar as rondas dos furriéis e cabos de serviço. Depois de verificar que todas as sentinelas estão no devidos locais, fico a conversar um pouco em voz muito baixa com alguma delas.

Neste momento, não posso saltar da cama. Com os dois camaradas deitados no chão, ainda não tenho luz suficiente para me deslocar sem risco de tropeçar em algum. Dentro de poucos minutos já os primeiros raios solares começarão a entrar pelo postigo.

Estou agora a reflectir sobre a operação que se inicia daqui a pouco. Como é que o capitão vai conseguir orientar-se na selva sem a ajuda de guias? No meio da floresta, sem pontos de referência, as cartas e as bússolas pouca utilidade têm...

Estava eu a reflectir sobre vários problemas e Rá já a iluminar-me com os seus raios, quando os dois oficiais acordaram. Parece-me que os dois estão bem sincronizados. Acordaram praticamente ao mesmo tempo. Será que fiz barulho e lhes perturbei o descanso? Ou terão sido os meus pensamentos que os afastaram do reino de Morfeu? Se calhar, nem uma coisa nem outra.

Qual deles irá levantar-se primeiro? O Valério está a espreguiçar-se, baloiçando sobre os tubos insuflados do colchão pneumático. Não, é o capitão que já está a afastar os cobertores. Qual deles vai ganhar a corrida?

— Estás a olhar para nós? — pergunta o alferes Valério.

— Estou aqui há meia hora a ouvir a vossa sinfonia. E agora estava a magicar sobre o dia que nos espera e a divertir-me mentalmente convosco.

— A divertires-te connosco? Como?

— Estava a ver qual dos dois ia saltar do colchão em primeiro lugar. Pelos vistos é o capitão, que já está a pôr-se em pé .

— O que é que vocês estão para aí a resmorder?

— Nada de especial, capitão. Apenas a falar.

— Temos sorte com o dia. — diz o capitão, que entretanto saiu do gabinete e foi lá fora dar uma espreitadela. Temos o dia encoberto, com nuvens muito altas. Se não desabar nenhuma carga de água, será bom. Teremos menos problemas com o calor.

— Isso é agora. Daqui por umas duas ou três horas o céu limpa e temos um céu azul e cheio de calor.

— Vá lá , pessoal, são horas de levantar. O sol já vai alto e espera-nos um dia trabalhoso.

Dada a ordem, como alguns furriéis continuam embalados no sono, o capitão vai junto deles e dá-lhes um safanão, repetindo a ordem:

— Vá lá, pessoal. Toca a levantar.

Enquanto o capitão anda divertido a abanar os furriéis, que acordam estremunhados, aproveito para tirar uma dúvida com o Valério:

— Ouve lá, como é que o capitão vai conseguir orientar-se na selva sem a ajuda de guias?

— Está descansado. Ele não esqueceu esse aspecto. Ontem, enquanto vocês estavam na limpeza das armas, foi à Cabaca falar com o chefe dos GEs.

— Mas... Então não foi o furriel quem se deslocou à Cabaca como eu mandei?

— Foram os dois. Depois de ter estado connosco a analisar o terreno na carta topográfica, foi também à sanzala. Quando fomos ao banho, tinha ele acabado de chegar com tudo tratado.

— Assim fico mais tranquilo. Vamos lá arranjar-nos e preparar-nos para um bom pequeno almoço. Tão depressa não voltamos a ter uma refeição decente. Não me posso esquecer da máquina fotográfica e de meter um rolo de reserva no bolso do camuflado.

— Vais fazer muitos disparos?

— Espero fotografar toda a operação em pormenor, para ilustrar os meus relatos para casa.

— Parece-me que és o alferes que gasta mais aerogramas em toda a Companhia, ou até mesmo em todo o Batalhão.

— Tens melhor forma de ocupar o tempo aqui no meio do mato? Enquanto escrevo, sinto-me na companhia dos meus velhotes. Faço a comissão em duplicado e o tempo passa mais depressa.

— Fazes a comissão em duplicado? Como? Não te estou a perceber.

— É fácil de entender. Vivo os acontecimentos e depois, ao relatá-los, volto a vivê-los uma segunda vez. Logo, é uma comissão a dobrar.

— Estou a ver. No fim da comissão, acabas por ficar com material para escrever um livro.

— Eu sei lá se vou escrever um livro. Nem sei se vou conseguir chegar ao fim da comissão, quanto mais o que irei fazer no futuro.

— E porque não? Mesmo que tivesses o azar de não chegar ao fim, os teus relatos minuciosos poderão ser aproveitados. E se isso vier a acontecer, eu serei um dos primeiros a querer ter na minha estante os teus quilómetros de escrita.

— Estamos a sonhar demasiado. Estou-me agora a lembrar da Mofina Mendes, que se fartou de fazer castelos no ar e acabou de mãos a abanar.

— Quem é essa?

— Não interessa. Acabemos a conversa e vamos às migas.