Primeiro dia no destacamento |
São agora três da manhã. Já dormi um bom bocado e acabo de me voltar a enfiar na cama, depois de ter passado uma ronda e ter estado alguns minutos com as sentinelas. Estou muito bem sentado na cama, com a prancheta de contraplacado sobre os joelhos, iluminada pela luz do petromax. Para quebrar o relativo silêncio da noite, ouve-se ao lado um conjunto de serras. São os furrieis, que há muito dormem ao lado, na sala comum, e que estão em concurso a ver quem ronca mais. Qualquer dia, quando tiver um gravador, registarei este concerto para brincar com eles. Vou agora desligar os ouvidos e sair daqui. Ponho a imaginação a funcionar e recuo até ao dia 13 de Novembro, o primeiro que passei no Alto Zaza e em que comecei, com a ajuda do alferes Manata, a inteirar-me de todos os factos relativos ao destacamento.
A noite passou-se depressa. Cansados como vínhamos, não tivemos muita dificuldade em adormecer. Mas, muito cedo ainda, estávamos novamente a pé ao fim de poucas horas, que não deram para nos pormos totalmente em forma.
Saio do quarto onde fiquei com o alferes que vim render. Sabendo da nossa chegada, teve a feliz ideia de mandar instalar uma segunda cama no cubículo rectangular, na extremidade do pavilhão pré-fabricado e ao lado da porta principal. Neste pavilhão, além do quarto independente do comandante, que serve de dormitório e de escritório, fica o refeitório e quarto com as quatro camas para os furrieis. Na extremidade oposta, separada por uma parede e sem comunicação interna, fica a sala das transmissões.
Saio do edifício. É muito cedo. O Sol está ainda bastante baixo, sendo a sua temperatura, neste momento, bastante suave. Pela primeira vez, observo distintamente a zona onde me encontro. Na minha frente, a poucos metros do edifício de comando que irei ocupar durante os próximos meses, vêem-se os abrigos escavados no chão: um deles, o mais próximo da zona de entrada, à minha direita, tem no centro um morteiro de grande calibre; na minha frente, mesmo diante da entrada, está um abrigo de grande largura, tendo no centro uma das muitas árvores que dão sombra e frescura ao aquartelamento; à esquerda, num abrigo circular, está um canhão sem recuo montado sobre um forte tripé. Alguns metros mais à frente, fica a vedação rectilínea de arame farpado, que impede a entrada e nos dá alguma protecção. Para além dele, estende-se uma vasta clareira rectangular, com duas balizas nas extremidades e sem o mais pequeno vestígio de capim, indício evidente de que este campo de futebol deverá ser bastante utilizado pelo pessoal. A uns cinco metros da porta onde me encontro, ergue-se um pequeno monumento construído por militares que por aqui passaram antes de nós. No centro, apresenta um escudo com uma cruz; na base, pode ler-se «Os Pioneiros C. Caç. 3343», bem como a indicação da companhia e do grupo de combate que o construiu.
— Alferes Ulisses...
Tenho de interromper a minha observação. Sou chamado pelo alferes que venho substituir. O pequeno-almoço espera-nos... e depois a visita às instalações e a conferência e recepção do material.
Terminado o pequeno-almoço e antes de começarmos a trabalhar, damos uma volta pelo aquartelamento. A primeira coisa que fiz, para poder ter uma visão de conjunto, foi sair pelo portão de entrada e afastar-me um pouco, seguindo o trilho por onde as viaturas entram. O quartel está situado sobre um vasto planalto, ao lado de uma pista de aviação de areia, onde as botas se enterram. Seguramente que, se alguma vez aqui aterrar um avião, não conseguirá rolar muitos metros, arriscando-se a ficar enterrado e a capotar. E se tiver a sorte de ficar direito, não conseguirá rolar sobre este tapete fofo de areia e ganhar velocidade para levantar voo.
A área onde se encontra o aquartelamento tem o formato de um vasto trapézio. É a única zona que conserva o que ficou das árvores que, outrora, deveriam cobrir todo o vasto planalto do Alto Zaza. No centro encontram-se os três edifícios principais pré-fabricados: ao meio, o edifício do comando, onde temos o quarto; do lado esquerdo, uma caserna e arrecadação de material; à direita, a cantina e outra caserna. Além destes três edifícios metálicos de cor verde, existem outros feitos de pau a pique e cobertos de chapa ondulada. No lado em frente à pista, afastado dos edifícios e escavado no solo arenoso, encontra-se o depósito de combustíveis, tendo na frente um coberto onde as viaturas são reabastecidas e reparadas. Entre as duas casernas e no lado oposto ao do edifício do comando, fica o refeitório dos soldados, todo aberto para que o ar corra livremente, apenas coberto pela chapa ondulada de zinco para protecção
das fortes chuvadas que aqui caem. Relativamente próximo do refeitório, temos a cozinha e um forno do pão, construído em tijolo burro por um velhote civil que vive com os soldados. Além destas construções, quatro enormes tendas quadradas de lona permitem alojar o meu pessoal, enquanto as casernas não forem deixadas pelos soldados que viemos render.
Agora, que já obtivemos uma visão de conjunto do aquartelamento, é altura de percorrer de perto as instalações e iniciar o trabalho. E como aquilo que tenho de fazer não apresenta grande interesse, é altura de acelerarmos a passagem do tempo para me pôr em dia. Para que conste, e só para isso, apenas direi que ocupei o meu primeiro dia no Alto Zaza com a inventariação e recepção do material, na companhia do alferes que vou substituir. Daqui resultou uma boa colecção de monótonas e enfadonhas listas de inventário, que tivemos de assinar conjuntamente, e que guardo comigo. Ao todo, são dezoito metades de folhas A4, com as relações de todo o tipo de material, de que guardo os duplicados a químico e que servirão, mais tarde, para nova conferência e transmissão, quando, dentro de um ano, chegar a nossa vez de sermos rendidos por outros grupos.
Sem querer diminuir a importância do trabalho já realizado, o mais significativo para mim neste dia consistiu na inventariação de todo o pessoal que tenho à minha responsabilidade e que ainda mal conheço. Comecei por elaborar uma simples listagem com o nome e posto de cada um numa folha de papel quadriculado de formato A4. Amanhã ou depois, com mais calma, farei um registo completo com todos os dados referentes a cada elemento do meu grupo de combate, não esquecendo os nomes dos familiares e a morada em Portugal. E para que o arquivo com todos os elementos seja mais funcional, utilizarei os verbetes que trouxe da metrópole, idênticos aos que utilizei para tratamento dos inquéritos linguísticos e etnográficos.
Vou terminar por agora esta carta. A hora vai avançada e necessito de dormir. Mais logo, quando for dia, espero aproveitar um momento de descanso para vos pôr ao corrente do que fiz nestes últimos dias. Não se admirem, pois, se receberem mais do que uma colecção de aerogramas datados do mesmo dia. Só não voltarei a pegar na caneta para vos escrever se me surgir algum imprevisto inultrapassável.
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