Como viram pela leitura da transcrição da carta do dia 13 para os amigos de Luanda, deixei esta cidade no dia 11 de Novembro pelas cinco da manhã. Como tinha ido cear à Restinga, acabei por fazer uma directa, mal tendo tido tempo para arrumar as minhas coisas. Embora não tenha apreciado muito a estadia no Grafanil, não deixei de sentir uma certa pena de abandonar o local. Acabou-se o descanso e as idas a uma cidade, que ficou com quase tudo por descobrir. Pode ser que um dia mais tarde tenha oportunidade de lá voltar, para me saciar dela, descobrindo-lhe todos os recantos. Por agora, tive de me limitar a ficar com um sabor a pouco e com o desejo de lá poder voltar, inteiro e com todas as minhas aptidões físicas para a poder conhecer.
Não vou falar da viagem entre Luanda e Quimbele. Embora não tenha dito muito na carta que vos transcrevi, o que lá ficou registado é suficiente para vos dar a conhecer o desenrolar dos acontecimentos. Apenas me resta acrescentar, para que o relato fique mais completo, o percurso seguido, enumerando as povoações por onde passámos: Caxito (povoação relativamente próxima, ao norte de Luanda, a única que se encontra registada no mapa da minha agenda, entre Luanda e
Uíje), Sassa, Vista Alegre (que me fez lembrar, quando por lá passei, o topónimo com o mesmo nome ao lado de Ílhavo), Aldeia Viçosa, Quitexe, Carmona (cidade que está indicada no mapa da agenda com o nome de Uíje), Negage (povoação com casas modernas e amplas avenidas, onde está situada a Base Aérea donde partem os reabastecimentos em avioneta para um dos destacamentos da zona onde me encontro
- o Cuango - e que deverei conhecer dentro de alguns meses, quando couber a minha vez de rodar de destacamento), Puri e Sanza Pombo (onde se encontra a sede do Batalhão 4511 e onde pernoitei de sábado para domingo, antes de prosseguir para o norte, até Quimbele).
Eram precisamente horas de almoço quando chegámos a Quimbele, povoação onde está a sede da Terceira Companhia de Caçadores, a que pertenço.
Para vos falar de Quimbele, seria necessário que lá tivesse permanecido o tempo indispensável
para ficar a conhecer a povoação. Tirando a estrada alcatroada, ao longo da qual ela se estende,
a avenida principal, no alto de um planalto, onde fica a casa do administrador, o edifício de comando da companhia, a escola primária, a igreja e várias casas térreas e modernas de alguns comerciantes, tudo o que conheci, a seguir ao almoço, foi o café onde fomos tomar as bicas. Jogámos uma partida de póquer de dados, na companhia dos oficiais que viemos render. Estes permaneceram
connosco na região durante uns curtos dias, tendo havido um período de sobreposição. Deste modo, foi efectuada a conferência e transferência de todo o material e contactámos, juntamente com eles, com as várias zonas de actuação, não só para ficarmos a conhecer as características da região, mas sobretudo para nos inteirarmos devidamente das actividades a desenvolver durante a nossa permanência de um ano na região. Claro está que esta sobreposição se verificou em todos os destacamentos da região pertencente à companhia, pelo que tudo aquilo que conheço, neste momento, é apenas a enorme região envolvente abrangida pelo destacamento onde agora me encontro, e de que sou responsável. Mas sobre isto voltaremos a falar.
Neste momento, encontramo-nos a tomar a bica no café, na companhia dos outros oficiais que viemos render. Jogamos póquer com os dados que trouxe da metrópole e que trago comigo desde o meu primeiro ano da Universidade. Se fosse supersticioso, diria que funcionam como um
amuleto. Como não sou, trago-os sempre comigo, porque me têm sido bastante úteis ao longo destes últimos anos. Já ajudaram a passar bons momentos de convívio, quer enquanto estudante em Coimbra, quer posteriormente, durante o tempo de tropa já decorrido.
Qualquer dia, se a oportunidade se proporcionar, relato-vos alguns dos bons momentos que eles me proporcionaram, na companhia de algumas antigas colegas de curso. Se eles pudessem falar, teriam muitas e gostosas histórias para contar. Por tudo isto,
trago-os sempre comigo. Andam-lhes ligadas boas recordações.
Deixemo-nos de digressões e retomemos o relato dos dias passados. Acabado o jogo e pagas as bicas, regressámos à sede da Companhia. Ao fim de alguns minutos, era chamado ao gabinete do comandante da companhia, o capitão Alberto.
— Ulisses, acabámos de fazer a distribuição do serviço pelos diferentes grupos de combate. Dá ordem aos
furriéis para reunirem o pessoal. Vais com o alferes Manata, dentro de uma hora, para o destacamento do Alto Zaza. É das zonas mais importantes de todo o sector. Vais ter sob a tua alçada outros destacamentos e diversas povoações com GEs. O alferes Manata porá-te a par de todas as actividades durante o período de sobreposição.
— Ele pôr-me-á a par de tudo durante quanto tempo?
— Nos próximos três dias, o alferes Manata vai-te levar a todas as povoações e destacamentos que ficam à tua responsabilidade. Ele explica-te o que tens que fazer. A partir de quinta-feira, estará tudo dependente exclusivamente de ti. Ao fim da tarde, o alferes Manata parte com o pessoal para a nova região de Angola, onde irão passar a segunda parte da comissão. Agora é melhor despachares-te. São quase seis da tarde e começa a aproximar-se a noite.
— E que viaturas é que vou levar? Não vamos nas mesmas camionetas que nos trouxeram de Luanda...
— O transporte será feito com as viaturas em que viemos de Luanda. Serão enquadradas pelo grupo de combate que vais substituir. Vais com o segundo grupo de combate.
Recebidas as instruções, fui ter com os furriéis que pertencem ao grupo de combate que me foi atribuído e dei-lhes ordens para reunirem o pessoal e se prepararem para partir.
Ainda não eram seis e meia e já estávamos a abandonar a estrada alcatroada e a entrar na picada, que nos traria ao destacamento de onde vos estou a escrever.
Como já terão concluído da leitura da carta que transcrevi, a viagem fez-se já noite escura e com grandes trabalhos. Numa zona baixa, o terreno estava enlameado devido às chuvas fortíssimas que desabam quando menos se espera. Os camiões civis ficaram atolados na lama. Foi
precisa a ajuda dos guinchos colocados na frente das viaturas, reforçados pelos das viaturas militares, e bastante trabalho do pessoal, uns com pás, outros a empurrarem, para os tirarmos das situações difíceis que se nos depararam. Numa zona de subida, as rodas patinavam no barro da picada. Tivemos de prender os cabos de aço a enormes árvores ao lado da picada. E com os guinchos e a tracção a funcionarem simultaneamente, lá conseguimos que as viaturas vencessem lentamente as subidas, ainda tornadas mais difíceis devido à carga de água que desabou sobre nós. O espectáculo era verdadeiramente dantesco. Escuridão à nossa volta, apenas cortada pelas luzes dos projectores e dos faróis das viaturas.
Completamente estoirados e encharcados, chegámos ao destacamento do Alto Zaza já tardíssimo, muito próximo, segundo creio, das onze da noite, onde fomos calorosamente recebidos pelo pessoal do destacamento que íamos render e que aguardava ansioso a nossa chegada.
Em breve, com a ajuda da malta que nos acolheu, toda a mercadoria e pessoal estava distribuído pelas casernas, edifícios rectangulares pré-fabricados, e pelas tendas montadas temporariamente.
Vou agora efectuar uma breve pausa no relato dos acontecimentos e procurar dormir um pouco. Começo a estar cansado e o pulso a doer da escrita. O facto de ter de carregar com mais força para tirar uma cópia a químico do aerograma faz com que o pulso comece a ressentir-se. Aproveito para dormir um pouco. Daqui por duas ou três horas já estarei novamente acordado para ir passar uma ronda. E como a noite é muito longa e custosa de passar, retomarei a escrita para vos falar com algum pormenor do destacamento onde estou e das actividades desenvolvidas nos primeiros dias nesta região.
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