Quem atravessar as belas e férteis terras da Murtosa, que
constituem uma região natural, geomorfológica homogénea,
designada por Marinha — compreendendo povoações e terras de
cultivo que, a partir da idade Média se formaram entre o dédalo
de esteiros, canais e canaletos que caracterizam o acidente
hidrográfico da Ria, entre Fontela e a foz do Rio Velho até ao
rebordo serrano, de areias soltas, que ligava as antigas Vilas de
Antuã e Avanca —percorrendo a pitoresca estrada (E.N. 224-2)
que liga o lugar da igreja ao do Esteiro, na freguesia do Bunheiro
encontrará, sensivelmente a meio dessa estrada e na confluência
com um caminho municipal, uma pequena Ermida conhecida pelo nome
de Capela de São Simão.
A
sua forma cilíndrica coberta por uma cúpula semi-esférica e a
sua implantação destacada, um pouco elvada relativamente à
plataforma da estrada, não pode deixar de chamar a atenção do
visitante que, ao aproximar-se, pode ler na pedra da padieira da
porta a seguinte inscrição:
«ESTA
CAPELA A FEZ O PADRE SIMÃO FERNANDES RUELA NA ERA DE 1600».
Uma
análise mais cuidadosa da construção permitirá identificar, na
parte oposta à única porta que se encontra ladeada por dois
postigos rectangulares protegidos por grades, a existência de um
pequeno corpo de planta rectangular, coberto por um telhado com
duas águas.
Do
lado direito da porta, destaca-se um campanário coroado por uma
pequena cruz, sem sineta, que, segundo parece, foi retirada para a
salvaguarda das brincadeiras do rapazio, estando guardada em mão
particular.
Outrora,
a cúpula foi também rematada por uma cruz há muito destruída
pelos vendavais.
Fachada sudeste da Capela da
São Simão do Bunheiro. |
Da
análise do local, ressaltará também a degradação existente,
quer no espaço envolvente ou adro, que serve actualmente para
estacionamento e lavagem de um camião, coradouro de roupa, pastio
de vacas e até de lixeira, quer da própria Ermida, encerrada há
mais de seis anos e votada ao abandono.
A construção apresenta
duas grandes fissuras verticais resultantes do tremor de terra de
Fevereiro de 1969, que fazem perigar a sua estabilidade, e por
onde se infiltra a água da chuva, apressando a sua ruína total,
se não houver quem actue urgentemente.
|
Os
actuais «herdeiros» são muitos, todos desinteressados da triste
sorte da venerável Ermida, a mais antiga e conservada na sua íntegra
originalidade arquitectónica na zona ribeirinha, herdeiros esses
que se podem reunir no seguinte esquema:
António
Rodrigues Cirne e irmã, do Lugar da Levegada de Sedouros — 4/9;
Lázaro
Pombo, do Chão do Monte, Rebimbas e Lamechas — 2/9 e meio, cada
família.
Mas
apesar do estado de abandono e de degradação a que chegou, a
pequena Ermida impõe a sua presença pela sua forma,
funcionalidade, simplicidade e correcta integração na paisagem.
«Trata-se
de uma construção dos finais do século XVI e constitui uma relíquia
do tempo em que dominava Portugal o rei Filipe III de Espanha e em
que a freguesia do Bunheiro ainda se identificava como pertencendo
ao concelho de Antuã. A origem desta Capela está ligada a uma
relevante instituição do passado jurídico e social do país —
a dos morgados: a Capela de São Simão foi centro ou núcleo dum
acervo de bens vinculados.
Diziam-se
vinculados os bens que alguém sujeitava a uma especial e perpétua
forma de sucessão, sem nunca poderem ser divididos nem alienados.
A
pessoa que os sujeitava a essa forma de transmissão chama-se
instituidor e o encarregado de cumprir a vontade do instituidor, a
pessoa que detinha e fruía os bens em sua vida, era o
administrador.
Se
a instituição se destinava a conservar o lustre e a nobreza da
família, tinha o nome de morgado; se realizava a piedade do
instituidor e tinha por fim sufrágios de alma, titulava-se de
capela.
Nem
sempre a distinção se apresentou claramente vincada. Por via de
regra, o morgado era acompanhado de encargos pios, missas e ofícios
pelas almas do instituidor e dos seus familiares mais próximos, e
às capelas andavam agregados rendimentos e benesses para os
administradores mais vultuosos que os directamente aplicados aos
fins de piedade.
Com
o andar dos tempos, as capelas passaram a confundir-se com os
morgados e a ser também designadas por este nome» (2)
São
Simão é o orago do lugar onde se situa a Capela, o mais central
da freguesia do Bunheiro, e onde, desde remotas eras, se realizava
uma animada festa anual no dia litúrgico do Santo — 28 de
Outubro — da qual se destacava, como acto principal, a missa
solene com sermão de circunstância.
«Integrada
na festa, realizava-se uma feira que se misturava com o arraial e
onde se podia observar e adquirir a mais variada produção
artesanal: carros de vacas, carros de mão, grades, arados de
madeira, masseiras, escudeiras, gigos de vime, salgadeiras, e
outros aprestos da lavoura — manifestação pujante de arte
popular e regional que devia remontar à fundação da Capela.
Ao
longo da estrada estreita, de macadame, que sucedera ao caminho de
terra batida, mulheres, vindas das terras suburbanas, assavam
castanhas em fogareiros de barro, enquanto na loja vizinha se
enchiam e esvaziavam copos de tinto, que alegravam os «romeiros»,
ao ponto da festa acabar, quase sempre, em arraiais de pancadaria
e zaragatas que deixaram fama.
É
curioso salientar que foi tão grande a irradiação do nome do
Santo, a partir da fundação da sua Capela, que subsistem ainda
sentenças populares como, por exemplo:
«Pelo
São Simão, faca na mão» — (refere-se à época da matança
do porco).
«Pelo
São Simão, fava ao chão».
Assim
como a Capela de São Simão é marco destacado no roteiro de
curiosidade do concelho da Murtosa, assim também era marco de
referência na vida rural do povo»(3).
A
Capela de São Simão, conforme consta da já citada inscrição,
foi mandada construir pelo Padre Simão Fernandes Ruela, em 1600,
constituindo uma instituição destinada a sufragar a sua alma.
No
extenso e pormenorizado testamento, lavrado aos quinze dias do mês
de Fevereiro de 1632, no Lugar de Sedouros, que era termo do
Concelho de Antuã, o Padre Simão Fernandes Ruela deixou
minuciosamente descritas as condições e os bens que vinculava à
Capela.
|
|
|
|
Fachada sudoeste da Capela de São Simão do Bunheiro. |
|
É
deste testamento que transcrevemos a seguinte passagem:
«Deixo
que o meu corpo seja enterrado na Capela e Ermida do Apóstolo São
Simão, que para isso acharão encostada a este testamento uma
licença do Senhor Bispo do Porto, aonde me porão uma campa com o
título do meu nome, instituidor da mesma Capela; e sendo caso que
Nosso Senhor seja servido levar-me em alguma parte deste Reino,
quero meu corpo seja trazido à dita Capela à custa da minha
fazenda, ou pelo menos, a ossada, que assim é a minha última
vontade».
Tem
indiscutível interesse a leitura integral deste testamento,
transcrito no volume I das Notas Marinhoas do Dr. José Tavares, não
só para o conhecimento das conturbadas transmissões a que a
Capela tem sido sujeita, mas também para o conhecimento de homens
e factos directamente ligados à Marinha, praticamente durante um
século.
Apesar
dos esforços despendidos, não foi possível averiguar a data do
falecimento do Padre Simão Fernandes Ruela, confirmando-se, no
entanto, que o seu corpo se encontra sepultado na sua Capela.
Ainda
que não se possa considerar esta Ermida um Monumento, nem incluí-la
na chamada arquitectura erudita ou de estilo, nem por isso pode
deixar de merecer a nossa atenção.
Podemos
incluí-Ia na arquitectura popular que, ao resolver problemas de
construção ao nível do quotidiano sem pretensões, traduz o
universo de valores de um povo, expresso em edifícios e implantações
sem interesses ocultos.
É
simples, funcional e quase perfeitamente integrada na paisagem,
atingindo, por vezes, até os mais altos padrões técnicos de
construção da sua época. Quando não alcança porém o impacto
e qual idade estética das realizações monumentais, é
fundamentalmente por essas implicarem importantes excedentes em
materiais e mão de obra especializada, obviamente fora do alcance
do construtor popular» (4).
Tendo
em conta tudo o que se disse nestas despretenciosas notas,
considerando o indiscutível interesse de que se reveste a Capela
de São Simão para o nosso património cultural construído e
considerando que os «herdeiros» se mostram totalmente
desinteressados e incapazes, por si só, de levarem a cabo as
urgentes obras de conservação da mesma, a ADERAV, consciente das
suas responsabilidades, depois de alertada por um murtoseiro sensível
e amante da sua terra (5), organizou e remeteu, em 7 de Julho de
1980, um processo à Secretaria de Estado da Cultura solicitando a
classificação da Capela de São Simão como IMÓVEL DE INTERESSE
PÚBLICO, bem como a realização das obras urgentes que se impõem,
para que se não perca mais um reconhecido valor do nosso património
cultural construído.
Aveiro,
Outubro de 1980.
ROGÉRIO
BARROCA
|
|
|
|
Fachada sudeste da Capela de São Simão do Bunheiro. |
|
NOTAS
(1)
- Em 7 de Julho de 1980, alertada por um murtoseiro, tal como nos
é indicado no presente artigo, a ADERAV, com a colaboração do
senhor Arquitecto Barroca, enviou à Secretaria de Estado da
Cultura um processo para que a Capela de São Simão fosse
considerada como imóvel de interesse público.
Em
14 de Novembro deste mesmo ano, no número 2516, páginas 5 e 6, o
jornal regional da Diocese de Aveiro publica um artigo sobre a
mesma Capela, no qual nos dá, para além duma breve resenha histórica,
a informação de que «o Instituto Português do Património
Cultural, departamento afecto à Secretaria de Estado da Cultura,
informou a Câmara Municipal da Murtosa de que a Capela de São
Simão, sita na freguesia do Bunheiro, foi classificada como de
valor concelhio.
Se,
por um Iado, temos aqui motivo para mostrar a nossa satisfação
pelo facto, a verdade é que, por outro, estranhamos que, até à
presente data, a ADERAV, organismo que procedeu ao estudo e
proposta de classificação deste monumento, não tenha recebido
qualquer informação, que justamente lhe seria devida, sobre a
aceitação ou não da sua proposta pela Entidade competente. —
NOTA DA REDACÇÃO
(2)
- DR. JOSÉ TAVARES AFONSO E CUNHA — Notas Marinhoas — VOL. I
— Livraria Ramos — Murtosa, 1965.
(3)
- JAIME TAVARES VILAR — Presidente da Junta de Freguesia do
Bunheiro, Murtosa.
(4)
- JOSÉ ALVAREZ E ELISABETH VIEIRA — Arquitectura Popular uma
marca cultural na paisagem — Secretaria de Estado do Ordenamento
Físico, Recursos Hídricos e Ambiente, 1978.
(5)
- JAIME TAVARES VILAR.
|