1º
Centenário da morte de José Estêvão
DISCURSO DA EX.ª SENHORA D. JOANA INÊS DE LEMOS COELHO DE MAGALHÃES
«Sinto-me aqui numa situação muito difícil. Já por duas vezes me coube a grata incumbência de agradecer, em
nome da nossa família, homenagens muito honrosas e
comovedoras, prestadas, em Lisboa e na minha terra da Maia,
à memória do nosso Pai, por ocasião do centenário do seu
nascimento.
Nessa altura eu era simplesmente uma filha, a exprimir, por mim e
pelos meus, a gratidão natural que sentimos ao ver
enaltecer e fazer justiça a um Pai, cuja existência
partilhámos, cujos talentos de perto apreciámos, cujas
virtudes, nobreza de carácter, delicadeza de sentimentos e
afectos, criaram, com a cooperação da nossa Mãe, o
ambiente de alegre e feliz união familiar em que nascemos,
nos formámos, e que hoje recordamos com grande saudade e
enternecido orgulho. – Era simples e natural.
Mas agora eu venho substituir alguém,
– venho substituir esse
mesmo querido e saudoso Pai, que, neste mesmo local, em
homenagens idênticas, abriu a sua alma e o seu coração em
expansões comovidas a que o seu talento de orador de raça,
a sensibilidade do seu insaciado amor filial, ajudados pelo
fogo da mocidade e a força da maturação dos anos, davam
acentos de eloquência e beleza que nunca foram esquecidos.
Amor filial insaciado, sim.
– Tinha apenas três anos, quando a
orfandade o feriu; e em toda a sua vida essa ferida se fez
sentir. Compensou pelo estudo constante da sua personalidade
e por um amor imenso, a presença desse idolatrado Pai, de
quem apenas conservava uma tenuíssima recordação.
– No
primeiro aniversário da sua morte, minha Avó escrevia a um
amigo:
– «O Luís acordou hoje a chorar com saudades do
Pai, com exclamações de dor e de recordações que parece
incrível numa criança tão pequena».
Essa dor infantil, essa saudade perduraram no culto da memória
paterna, que dominou toda a sua existência.
Aos 19 anos, ainda estudante de Direito, escreve: «… Ninguém
tem mais a peito o não deixar deslustrar o nome imaculado e
impoluto que ele me deixou».
E nos diversos passos da sua carreira política esse culto é
sempre reafirmado e reivindicado o direito de definir quais
as suas imposições morais e políticas. Ele assim o disse:
«Eu tenho em mim mesmo, numa tradição que reputo sagrada, o meu
partido, o meu credo político (…). Não preciso
que ninguém me defina quais os meus deveres, nem me
interprete o sentido e o exemplo de uma vida pública que,
mais do que ninguém, eu tenho estudado, meditado,
reflectido».
Não só na vida pública, mas também no seu labor literário, com
frequência transparece esse grande amor filial. Dedica ao
Pai, em palavras simples, mas repassadas de tocante veneração,
o livro que considera a obra principal da sua carreira de
escritor e de poeta.
– O poema D. Sebastião.
Na «Frota de Sonhos», compêndio de sonetos em que se
espelham tantas facetas do seu delicado espírito, não
falta,
– não podia faltar,
– a grande figura de José Estêvão.
E lá a vemos aparecer no soneto A Voz do Espectro, quando
os reveses da política o lançam na cadeia por mais de dois
longos anos.
É uma «figura varonil» que surge, de repente, «na escuridão do
cárcere» e lhe diz «com a sua voz gloriosa»:
Fizeste bem, meu filho, era o dever!».
Noutro soneto, «Evocação», é na paz e beleza luminosa da Costa Nova,
entre a calma risonha da Ria e a grandeza revolta do mar,
que o «ressuscita em si» ao «remorder acerbo da saudade».
E os laços profundos e sensíveis, formados por essa evocação
constante, exprime-os neste verso:
Por isso o coração aqui me prende assim!»
Temos ainda esse bonito e valioso estudo,
– «Meu Pai»,
– que
principiou para prefaciar a edição dos Discursos,
do centenário de 1909,
– e que agora a Comissão das
celebrações centenárias incluiu, mesmo inacabado (apenas
completado com as notas que lhe estavam juntas), na
interessantíssima Colectânea que acaba de publicar.
Era tenção de meu Pai refundir esse trabalho noutro mais largo e
desenvolvido, em que escreveu:
– «Sinto inteiramente
livres, em face da sua nobre e querida figura, a minha
admiração de homem e o meu piedoso amor de filho».
Infelizmente, não chegou a cumprir esse intento… Nessas páginas,
quantas vezes, ao retratar o Pai, o filho que se retrata a
si próprio.
– Deviam ser muito semelhantes as suas almas,
como, pelos retratos, podemos verificar que muito se
pareciam fisicamente.
Sempre, em tudo, na vida pública, literária, privada, Luís de
Magalhães foi o «Filho de José Estêvão» – Assim o
apelidavam nas críticas dos primeiros livros que publicou,
assim o saudavam no seu aparecimento em diversas situações
políticas, assim o consideravam os velhos amigos de família,
assim lhe chamavam nas ruas de Aveiro, na Costa Nova: «Aquele,
é o filho de José Estêvão…» – assim lhe chamaram na
hora da morte: «morreu o filho de José Estêvão» – escreveram os jornais.
Foi esse filho que, com o coração a transbordar de amor filial e
de comovidíssimo, profundíssimo reconhecimento, aqui,
entre estas paredes, exprimiu esses nobres sentimentos em
termos elevados eloquentes.
E é ele que eu
– com a minha fraca voz de mulher, e de mulher sem
predicados de oradora e de já bem avançada idade, venho
substituir…
Mas tem sido a nossa preocupação – nossa, da família que ele
criou, – mantê-lo sempre vivo entre nós, não deixar vazio
o seu lugar, esforçando-nos, nas nossas atitudes, em toda e
qualquer circunstância, por fazer o que ele faria ou
quereria que se fizesse.
E, por isso, e devia relembrá-lo nesta hora em que venho, em nome
de todos nós, agradecer, a esta linda e muito querida terra
de Aveiro, mais uma prova da sua gratidão à memória
daquele que foi,
– ainda hoje se diz,
– o maior dos seus
filhos, o que melhor e mais devotadamente amou e serviu.
Mas seja-me permitido evocar, também, a figura desse Avô, tão
distante no tempo, mas que, pelo ambiente de família, as
tradições de amizade, a gratidão popular, foi sempre uma
presença moral no meio de nós.
Em casa, era a saudade da minha Avó, transparecendo nas frequentes
conversas em que nos falava dele;
– a veneração terníssima
votada por meu pai à sua memória;
– os móveis e objectos
que foram de seu uso;
– o pequeno museu, em que meu
pai reuniu, mais tarde, as suas recordações mais íntimas,
(que, em grande parte, figuram na exposição hoje
inaugurada).
E, também, a Costa Nova, o
Palheiro – que a gente da terra baptizou com o nome de
– José Estêvão,
– a Ria, o mar, o areal, onde, em tudo que vemos e ouvimos a
sua imagem nos aparece viva…
Poderíamos julgar que o conhecemos, tão familiar nos é a sua
nobre e insinuante figura, representada em tantos e variados
retratos. Tanto ouvimos falar na rectidão do seu carácter,
no brilho da sua palavra, no poder dominador do seu talento,
na bondade do seu coração, no encanto do seu convívio, na
vivacidade espontânea e espirituosa da sua conversa…
E o culto que, em Aveiro, pelo decorrer dos anos, sentimos em
constantes manifestações simpatia, às vezes
enternecedoras!
Guardamos da nossa primeira infância,
– quando meu pai era
Governador Civil deste distrito,
– a recordação da velha
vendedeira de fruta,
–
a Água a Ferver,
– com o seu pronunciado bigode e a
barbicha grisalha, sentada junto das Pontes, ao abrigo do
grande guarda-sol azul, que nos chamava, com voz rouca, para
nos encher as mãos de frutos perfumados. Éramos as Jé
Estevinhas e não conseguíamos iludir a sua vigilância.
E aquela mulher da Gafanha da Encarnação que acudiu em defesa do
ranchinho de crianças que formávamos, todas queimadas,
–
bronzeadas como hoje se diz
– pelo sol forte e o ar iodado
da Costa Nova, quando um transeunte nos chamou «feias
cachopas»,
– «Ó homem, cale-se! Olhe que são as netas do Snr. José Estêvão!».
E outra mulher, já de muita idade, também da Gafanha da Encarnação,
que, ao sair da missa, tendo-se certificado de que éramos
«as netas do Snr. José Estêvão» e de que era seu filho
«o senhor de barbas» que tinha visto na capela da Costa
Nova, me diz, em tom de enternecida gratidão e saudade: «Ó
minha senhora, eu conheci o seu Avô! Ele passava por aqui a
cavalo e salvava sempre; não esperava que o salvassem
primeiro. Eu era pequenina, tive as bexigas, e ele vinha
ver-me ao meu leito de doente e trazia-me geleia!».
Ficaram-me gravadas na memória estas palavras e o tom em que foram
proferidas. Repeti-as ao meu Pai, e vi lágrimas de comoção
correrem-lhe pelas faces.
E ainda outra mulher,
– esta da Gafanha da Nazaré,
– a quem o
marido explicava e uma minha irmã, com quem falava, era
neta «do Snr. José Estêvão». A mulher fita-a por um
instante silenciosa, e depois diz-lhe: «A gente foi
habituada a ouvir falar desse senhor como uma pessoa a quem
todos devemos muito. Mas tinha morrido há muito tempo,
estava já muito longe. Mas agora, ver de repente diante de
si uma pessoa da família, dá choque»…
Amizades aveirenses, profundas, dedicadas, acompanharam-nos pela
vida fora, e são hoje saudades que vivem nos nossos corações.
E quando a morte nos tem batido à porta, e vimos trazer os
queridos membros da família que Deus vai chamando a si, e
se vêm juntar àqueles que aqui nos esperam,
– nunca nos
achamos sós na sua dor e no nosso luto, nunca nos faltaram
simpatias; sempre nos rodearam presenças significativas de
todas as classes; e sempre, entre elas, vimos a cidade de
Aveiro,
– representada pela sua Câmara Municipal, na pessoa
do seu Presidente
– É que o prestígio de José Estêvão não
se apagou com o tempo.
É porque a família se mostra fiel à sua grande memória,
ainda se vê envolvida no reflexo do brilho do seu nome.
E tudo isto nos liga com laços tão sensíveis, que bem podemos
afirmar que também somos aveirenses.
E há também esse jazigo, que de modo essencialíssimo nos prende a esta
terra, pelas tradições e saudades que nele se encerram.
Ainda ontem vimos lá desfilar, respeitosa e piedosamente, muitas
centenas de aveirenses, depois de termos ouvido, junto
à estátua,
o discurso vibrante em que o sr. Dr. FRANCISCO DO VALE
GUIMARÃES nos mostrou, sempre vivo, actual na sua concepção
prática, e muitas vezes profética, das coisas públicas, o
grande patrono cívico de Aveiro!
Ao ler agora, em numerosos jornais da época, os relatos sentidos
das circunstâncias dramáticas em que se deu a morte de meu
Avô, a imponência do seu funeral, as manifestações de
intenso sentimento de todas as classes sociais, desde os
Reis à gente do povo, noto repetidas referências à viúva. – «A infeliz senhora»
– por cuja dor se sente simpatia e
cujo estado de saúde inspira «sérios cuidados». E vê-se
a impressão que causou o facto de minha Avó ter querido
guardar o coração do marido para «o conservar junto de si
e o levar consigo para a sepultura».
Na verdade, durante a sua longa viuvez, conservou minha Avó esse
coração no oratório, que, para o guardar, arranjara na
sua casa da rua de Cedofeita. E não pouco contribuiu para
criar viva, em nós, a ideia do nosso Avô, esse Coração
morto, tão religiosamente venerado na sua urna de mármore
preto, colocada no altar que o crucifixo encimava, e sobre o
qual ardia sempre a lâmpada de vidros de cor, que alumiava
com certo mistério o pequeno aposento, silencioso e
recolhido…
Passados perto de 42 anos, minha Avó entra por sua vez no jazigo,
que acabara de construir depois de viúva, trazendo consigo
o coração do marido, que só então fica inteiramente
sepultado em Aveiro. Recolhida no gavetão que reservara
para si, ali repousou por mais de 50 anos.
Hoje, porém, realizando uma velha ideia de nosso Pai, pudemos
finalmente, nós, as suas netas, reunir no mesmo túmulo,
posto em evidência no centro da Capela, os dois esposos que
a morte, há cem anos, subitamente separou. – Ali dormem o
sono eterno, agora lado a lado, José Estêvão e Dona Rita
Miranda. E ela guarda-lhe o coração, com o qual quis
descer à sepultura.
Receio que tenha sido muito longa esta enumeração de sentimentos
e recordações. Mas,
ao evocar o passado, quando tantas sombras queridas
ressurgem no meu pensamento, pediu-me o coração que não
falasse apenas em nome dos que vivemos, mas que juntasse à
expressão muito sincera do nosso reconhecimento, a lembrança
daqueles que, em análogas comemorações, o sentiram também,
e que agora, aqui bem perto, repousam para sempre.
É a V. Ex.ª, Senhor Presidente, que em primeiro lugar devemos
agradecer, pela iniciativa que tomou de promover a celebração
deste centenário, e à Ex.ma Câmara Municipal, que
unanimemente a aprovou.
Porque se tratava de Alguém que de tão perto nos toca, foi grande
o nosso contentamento quando vimos anunciada essa resolução,
e logo o manifestámos a V. Ex.ª, oferecendo-lhe a nossa
modesta colaboração. Receba hoje V. Ex.ª e a Ex.ª Câmara
o protesto da nossa muito sincera gratidão.
Queremos também manifestar o nosso reconhecimento à ilustre
Comissão do Centenário, que vemos aqui representada pelo
seu presidente, Ex.mo Sr. Dr. Orlando de Oliveira. Com
grande competência soube desempenhar-se do encargo, cheio
de responsabilidades, que lhe foi cometido, como demonstram
as cerimónias a que temos assistido, e que são constantes
do programa por ela elaborado.
Romagem de saudade ao cemitério, Missa de sufrágio, exposição
em que talentos, feitos, glórias,
– toda a vida
– e a dor
da inesperada morte, estão representados; lápide
comemorativa, publicações, e esta solene sessão; e, a
relembrar tudo isto, a iluminação contínua da estátua, – todo este conjunto fez reviver aquele que, nos cem anos
decorridos sobre a sua morte, não foi esquecido, e nunca
deixou de ser o ídolo desta terra, em que nasceu.
Quero ainda referir-me a Monsenhor Aníbal Ramos, que tem mantido
aceso, nas suas mãos, o facho da amizade aveirense para com
a nossa família. Muitas atenções lhe devemos, e grande
consolação nos tem dado vê-lo em Moreira, intimamente
associado às nossas festas de família, abençoando os
casamentos das bisnetas de José Estêvão e baptizando as
suas pequenitas trinetas. É-nos, por isso, especialmente
grata a sua presença na comissão do centenário do nosso
Avô.
O Senhor Embaixador Dr. Augusto de Castro, ilustre filho destas
terras, veio aqui falar-nos do homem cuja inesperada morte,
há cem anos, comoveu não só Aveiro, mas toda a Pátria
Portuguesa. Estudou essa grande figura, e ressuscitou-a no
quadro feliz que nos apresentou. Receba V. Ex.ª com as
minhas sinceras felicitações, os grandes agradecimentos
das netas de José Estêvão.
Nesta glorificação centenária, sentimos a nossa família fundida
na grande família aveirense.
Com muita consolação o verificamos. E com um grande e profundo
amor por esta terra, amor herdado das gerações que nos
precederam e já transmitindo às gerações que se seguem,
cheios de reconhecimento,
– a todos
– AGRADECEMOS.»
No final falou o Governador Civil, de cujo discurso reproduzimos
este expressivo passo:
«Passados cem anos sobre a sua morte (de José Estêvão),
é consolador registar que não se apagou na poeira dos anos
e na memória das gentes a lembrança dessa extraordinária
figura, que não é só de Aveiro, porque faz parte do legítimo
património espiritual da Pátria.»
JOSÉ TAVARES
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