Seminário
de Diamante


Altino Moreira Cardoso, Seminário de Diamante 1930-2005, 1ª ed., Amadora Sintra, 2005, 240 pp.


PREFÁCIO

do Bispo de Vila Real

  

Os Grandes Olhos da Gratidão

O Seminário de Vila Real está a celebrar as Bodas de Diamante da sua abertura oficial em 23 de Outubro de 1930, que não a conclusão do prédio, pois essa ainda teve de esperar muitos anos.

À sessão comemorativa daquela data jubilar, que decorreu no mesmo espaço de há 75 anos, agora transformado em auditório, acorreram vários alunos de hoje e de ontem, como o Dr. Altino Cardoso, que nessa tarde ouvi falar apaixonadamente do Seminário e me pede agora umas palavras para colocar no pórtico deste seu livro de memórias.

Neste livro o Dr. Altino faz uma antologia do coração e fala de um período do Seminário, do passado e do presente de vários condiscípulos, nomeadamente de alguns que se ordenaram, como quem descobre relações de causa e efeito entre as duas etapas das suas vidas ou ao menos descreve o dinamismo das sementes em talentos pressentidos e plenamente florescidos em anos posteriores.

Os elementos dispersos e aqui forrageados poderão um dia ajudar a fazer a história sistemática do Seminário e, mesmo, da evolução social desta região. Na verdade, dos jovens que frequentaram o Seminário de Vila Real, não chega a dez por cento o número daqueles que se ordenaram.

Nestas evocações festivas e documentais, os mais saudosos são sempre os alunos mais antigos, aqueles que viveram os tempos difíceis e os que mais aproveitaram.

Os psicólogos explicam a razão desse comportamento: as primeiras imagens, carregadas de afecto, são as mais duradouras na vida da pessoa, e, à medida que a idade vai apagando as imagens dos últimos anos, avivam­-se as da infância e adolescência, razão também por que os idosos falam sobretudo do passado.

Nesse olhar retrospectivo evocam os recreios, os nomes dos padres e professores, os cantos do refeitório, os triunfos do orfeão, as celebrações na Sé e as ordenações, as peripécias e irreverências, o anedotário, aquilo que mais agrediu as regras estabelecidas e que revelou o seu heroísmo e criatividade.

O entusiasmo mnésico dos antigos alunos e patente neste livro não é só um mecanismo do coração em festa, é também fruto da reflexão adulta.

O salmista bíblico temia pelo justo que, ao ver demolidos os fundamentos da existência, tremia todo como quem sente a areia desaparecer debaixo dos pés e não sabe que fazer.

Estes homens assistiram no mundo à destruição de muitos valores fundamentais da vida e da cultura — o trabalho persistente, a disciplina da gramática e do comportamento, o espírito de sacrifício e de austeridade, os horizontes largos da metafísica e da religião — e, perante o descalabro da sociedade, recorrem instintivamente à escola onde captaram a solidez desses valores, como o ferreiro que vem à forja soprar nas brasas para temperar o metal da espada com que se vencem as guerras.

Com a adultez do pensamento vem o sentimento da admiração que a idade aguça nestes homens.

O teatro da vida ensinou-lhes que ela é, por vezes, uma comédia, se não mesmo uma farsa na balança desequilibrada do trabalho e recompensa e, olhando para trás, verificam que no Seminário se trabalhava por amor à causa, se vivia modestamente, que os professores (alguns deles licenciados em Roma e com nome feito) ganhavam pouco, que havia um ideal.

Perante o espectáculo do mundo, reconhecem que nem sempre o dinheiro anda ajustado ao trabalho e regressam ao Seminário com o coração aos saltos, pedindo que lhes sirvam a "farinha de pau", o arroz a cheirar a carne, a açorda de pão e outros pitéus daquele tempo, como quem deseja comer agora o amor e a generosidade com que foram preparadas essas refeições durante a Guerra Civil de Espanha e a II Guerra Mundial.

Sentem a necessidade de cantar as melodias que encheram os anos da adolescência e da juventude à maneira de um elixir do coração e da alma. 

Esse sentimento de gratidão é o brasão da melhor juventude académica.

A propósito da Queima das Fitas em Coimbra e noutras cidades, ouve-se falar de homens que vão aos cafés e às “repúblicas” fazer despesa com alguma generosidade para encher buracos financeiros que ali fizeram noutros tempos, que vão às livrarias comprar livros científicos e perguntar por outros livros antigos, como quem deseja reparar uma distracção no estudo e certificar-se de que o livreiro ainda tem nas estantes raízes para alimentar a floresta das gerações que lhes sucederam.

Estes gestos são daqueles que valem tanto como os títulos académicos ou o título de imperador de Napoleão, de quem se conta, nos tempos gloriosos da sua vida militar, haver ido a uma cidade procurar a vendedeira de maçãs, para lhe agradecer a facilidade com que o deixara abastecer-se em horas de penúria.

Como se tudo isto fosse pouco, na alma destes homens agradecidos fica sempre um pedaço de sonho, diríamos um pedaço de D. Quixote, cujo nome é evocado no mesmo ano das Bodas de Diamante do Seminário, coincidente com os quatrocentos anos da publicação da primeira parte do livro de Cervantes.

Essa capacidade de sonho fá-los ver maravilhas onde houve brio com deficiências, beleza consumada onde somente se fez iniciação artística e científica, exércitos gigantescos de heróis onde se moviam moinhos de trabalho normal.

Mas é bom que essa capacidade de enamoramento se mantenha no seu espírito: ela ajudá-Ios-á a serem felizes, a vencer a neblina dos anos e a transmitir aos outros o que o mundo não vê.

Desejo que seja esse o destino deste livro.

† Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real


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