“Os
Lusíadas”, embora já tivessem surgido quando o império
português vivia metido "no gosto da cobiça
e na rudeza / ... de uma apagada e vil tristeza” (X;
145), cantam a glória deste povo que, destemidamente, foi capaz
de superar a sua fraqueza de “bicho da terra tão
pequeno” e igualar-se aos deuses.
Se,
ao longo dos primeiros cantos que formam Os Lusíadas, Camões
enalteceu toda a História de Portugal e seus protagonistas, é
no canto IX, mais propriamente no episódio da Ilha dos Amores,
que o seu entusiasmo é mais vibrante, maior a sua capacidade
de nos fazer participantes das recompensas que os nossos
navegantes tão justamente mereceram.
Mas
recordemos um pouco a saga dos descobrimentos: a dor da
despedida na praia das lágrimas, tão difícil de suportar para
os que ficam como para os que partem (c. IV, est. 89 e ss.); os
vários perigos que espreitam os portugueses, quando se
aventuram num elemento que não é o seu (água): ciladas (canto
II, est. 28 e 29) doenças - escorbuto
- (canto V, est. 81 e ss.) e tempestades
(canto VI, est. 70 e ss.)
Como
homem do Renascimento, Camões relata-nos, minuciosamente, novos
fenómenos naturais, até então desconhecidos dos Europeus: o
fogo-de-Santelmo
(c. V, est. 18) e a
tromba marítima
( c. V, est. 19 e ss.). A descrição destes fenómenos, o
visualismo com que nos são apresentados, vai servir ao nosso épico
para sobrevalorizar “o saber de experiências feito“,
numa atitude de desafio ao saber puramente teórico que antecede
o Renascimento.
E
as naus vão avançando, o sonho vai ganhando contornos cada vez
mais definidos...
Contra
tudo e contra todos, porque “navegar
é preciso, viver não
é preciso”, eis que os Portugueses têm Calecut à
vista... (canto, VI, est. 92 e 93).
Atingido
o objectivo proposto, Camões apresenta-nos, no canto IX, o
momento em que a história surge mesclada de ficção, em que
navegadores e deuses se encontram, se unem, se igualam, como
forma de encarecimento e exaltação da valentia lusíada.
Preparada
por Vénus, com a ajuda do seu filho Cupido, a Ilha dos Amores
,”semeada” de apetitosas, sensuais e belas ninfas, é um prémio
à tenacidade dos homens que, “por mares nunca dantes
navegados”, “mais do que prometia a força humana”, tinham
sabido seguir “o caminho da virtude, alto e fragoso,
/ mas, no fim, doce, alegre e deleitoso”.
Vamos,
então, ver o que há de “doce, alegre e deleitoso” na Ilha
dos Amores. Entremos numa das naus, tentemos descrever a Ilha,
à medida que dela nos vamos aproximando...
Tudo
na paisagem está cheio de sensualidade, favorece o apetite, é
um apelo a todos os sentidos: vista, gosto, paladar, tacto. (c.
IX, est. 54, 55, 56, 58, 59).
Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e
deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se diriva
A sonorosa linfa fugitiva.
Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde hua mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando
propriamente.
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.
Os dões que dá Pomona ali Natura
Produze, diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
(...)
As cereijas, purpúreas na pintura,
As amoras, que o nome tem de amores,
O pomo que da pátria Pérsia veio,
(...)
Abre a romã, mostrando a rubicunda
Cor, com que tu, rubi, teu preço
perdes;
Entre os braços do ulmeiro está a
jocunda
Vide, cos cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Peras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.
Desembarcados
os navegadores, a atmosfera de sensualidade adensa-se, o
erotismo é despertado: belas deusas, seminuas e astutas,
aguardam os navegadores, umas tocando “doces cítaras”,
“algumas harpas e sonoras flautas” (c. IX, est. 64), num
jogo de sedução a que os navegadores não conseguem ficar
indiferentes (c. IX, est. 71 e 72).
A
est. 83 é um hino à sensualidade: “famintos beijos”,
“mimoso choro”, “afagos tão suaves”, “ ira
honesta“, “risinhos alegres” “acompanham” as relações
amorosas entre os navegadores e as ninfas. O Amor é, por
conseguinte, o maior prémio a que o homem pode aspirar.
Qual
a mensagem que Camões
pretende transmitir? Através
da união entre navegadores e ninfas, o humano e o divino
equivalem-se: os deuses não existem, o que existe são homens
que, pelo seu valor, se tornam superiores.
A
Ilha dos Amores está ao alcance de cada um de nós...
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