TV, perna sueca e regresso a Quimbele |
Embora seja verdade, não vou aqui repetir a expressão «aqui estou outra vez na vossa companhia», tal como fiz no começo desta colecção. Começa a ser um estribilho demasiado puído, que me faz lembrar a televisão portuguesa, em que certos apresentadores abriam e fechavam os programas sempre com as mesmas palavras. Estou até a lembrar-me de alguns, como aquele em que um senhor, de idade um pouco avançada, comentava os filmes antigos. Se a memória não me atraiçoa, creio que se chamava o «Museu do Cinema». Não tenho a certeza do título. Mas lembro-me que foi graças a ele que pude conhecer alguns filmes do tempo do cinema mudo. Estou também a lembrar-me daquele programa sobre agricultura, apresentado por um engenheiro agrónomo, creio que aos domingos. Era a «TV Rural», não era? Ou será que tinha outro nome? Não me recordo bem, mas lembro-me que se despedia sempre com as mesmas palavras. Por incrível que pareça, até de alguns programas antigos da nossa televisão estou com saudades! Deixemos isto agora, que a saudades não são coisa boa e muito menos coisa que agora nos interesse, até porque daqui por uns dois meses vou ter o prazer de rever alguns programas da nossa televisão. E nossa com todo o direito, tanto mais que pagamos anualmente para a termos. Correctamente, deveria estar agora a iniciar uma nova colecção de aerogramas e ter encerrado, em Cabula Calonge, esta colecção. E sabem porquê? Porque estou agora no meu quarto em Quimbele. Estava a escrever as palavras «até já» e a arrumar a tralha para ir ver o que se passava quando parou, junto da minha cubata, uma viatura com pessoal de Quimbele. Estava a assomar à entrada, quando dei de caras com o furriel Lemos, que nem me deu tempo de falar: — Senhor alferes, é preparar toda a tralha para ir para Quimbele. Tenho de levar tudo. — Tudo como? — Todas as suas coisas, alferes. Arrume tudo o que é seu, porque viemos cá de propósito buscá-lo. — Não deve ser para coisa boa! — disse eu meio assarapantado com o imprevisto da situação. — Vai ter de aguardar uns minutos. Tenho de arrumar a tralha toda e devolver o mobiliário, a cama e a mesa, aos nativos que mo emprestaram. E tenho de dar instruções ao furriel que vai ficar a substituir-me. De certeza que o capitão não me mandou buscar por causa da minha perna sueca. — Da sua perna sueca, alferes? — Não está a perceber e tem razão para isso! Já vai perceber por que falei da minha perna sueca. Há tempos, quando andava a passear em Quimbele, de calções curtos, na companhia do médico, o Dr. Graça Marques, o capitão meteu-se connosco. Disse que eu lhe andava a fazer concorrência com a minha perna sueca. E o médico, por brincadeira, tirou-me uma fotografia junto à messe, comigo a puxar para cima a extremidade dos calções e a exibir parte da coxa. E andámos o dia inteiro na brincadeira, a lembrar o gozado da situação. Já está a entender o porquê da minha afirmação? — Sinceramente, não, alferes! Porquê a sua perna sueca? — Não é difícil de ver, Lemos. Como acha que eu sou? Moreno? Ruivo? — Não! O alferes é aloirado. — Ora aí está! Loiro e de olhos azuis, quem é que faço lembrar? Pareço mais um tipo nórdico que latino. E como acha que é o capitão? — O capitão é totalmente diferente, alferes. — Claro que é! Ora como ele também costuma andar vestido como eu, de camisa de mangas curtas e calções, quem será que sobressai no grupo, quando ando com o capitão, o médico e os outros alferes? — O meu alferes? — Sim. Eu e o capitão somos mais ou menos da mesma estatura.Estatura não pequena! Na companhia do médico, que é baixote, e dos outros alferes, somos os dois que sobressaímos. — Não será bem assim, alferes. Olhe que o alferes Valério deve ter a mesma estatura que o alferes, se não for mais alto. — Talvez tenha razão. Mas agora dê-me aqui uma ajuda, para ver se nos despachamos mais depressa. À saída da povoação, já de abalada para Quimbele, disse-me o furriel que íamos ter uma operação de seis dias na mata. Fui todo o caminho a magicar até Quimbele. A magicar não só pela informação do furriel, mas sobretudo por ele estar a par da situação. Se com tanta antecedência o pessoal sabe aquilo que vamos fazer, mesmo antes de alguns oficiais, não será difícil avaliar o elevado rigor na segurança militar! Ainda a acção está a ser planificada e já toda a gente sabe o que vai suceder nos próximos dias. É uma situação inadmissível! Ficamos sujeitos a depararmos com alguma situação pouco agradável. A primeira coisa que fiz, quando cheguei a Quimbele, foi colocar a tralha na messe e tomar um duche e beber uma Coca Cola bem fresca com uma tampa de uísque. Estava já a sentir a falta deste pequeno luxo. E antes de tudo isto, tive ainda a surpresa de encontrar na caixa inferior de plástico do frigorífico uma fruta que já não via há muitos meses: tangerinas! Quando abri a porta e vi aquelas esferas alaranjadas, de pele brilhante e a piscarem-me os olhos, não resisti à tentação. Só depois de me ter regalado com esta fruta é que saboreei a bebida, fiz a barba, refresquei o corpo debaixo da água do chuveiro, mudei de roupa e fui falar com o capitão, para saber da boca dele quais as razões de me ter mandado buscar. — Quis que viesses passar o fim de semana a Quimbele. Quase ainda não passaste cá nenhuns. Também tens direito à civilização! É necessário que descanses. Não haja dúvida que lata não lhe falta! Fiquei altissimamente sensibilizado com estes súbitos cuidados do capitão com a minha pessoa. Tivesse eu aqui um lenço nos bolsos e as lágrimas ter-me-iam jorrado como de um cano furado! Como se eu não soubesse já pelo furriel da passeata turística de seis dias! — E acerca da operação, capitão? Quando é que arrancamos para a mata? — Isso é se se fizer. E se se fizer é só a partir de terça. Mas como chegou a informação de que o IN abandonou o nosso território, há todas as probabilidades que essa operação não venha a ser necessária. Vou deixar o resto do diálogo, porque já não tenho muito tempo. Tenho ainda de rabiscar algumas linhas num aerograma para os tios. E quero ainda tomar uma bica antes do cinema. Segundo ouvi durante o jantar, vai passar o filme «Falsa Testemunha». Amanhã de manhã, se me deixarem, retomo a conversa e encerro esta colecção de aerogramas. E se não for de manhã, será de tarde ou à noite, quando tiver tempo. Dir-vos-ei o que fizer, bem como o que vou dizer aos tios, se me ocorrerem coisas que mereçam aqui ficar registadas. |