Rumo a Angola




África, 7 de Novembro de 1972

Queridos Pais,

Antes de mais, começo por explicar o porquê de ter indicado «África» antes da data. Estou neste momento a escrever-lhes sobre o Atlântico, possivelmente já ao longo da costa africana, a bordo de um avião Boeing 707, com destino a Angola. Como a área geográfica está em permanente mutação, o mais correcto é a referência ao grande continente que os portugueses foram descobrindo ao longo de muitos séculos e que hoje, graças aos modernos meios de transporte, atravessamos no espaço de curtas horas. São as grandes vantagens do actual conhecimento do Homem, para o qual não deixámos de dar valioso contributo em tempos recuados da nossa História.

De acordo com as previsões que nos foram fornecidas, deveremos chegar a Luanda por volta das 8,30 da manhã. E já agora, aproveitando as informações que nos foram dadas há pouco através dos altifalantes do aparelho, passo a falar um pouco acerca das impressões sentidas e dos dados referentes ao voo.

Em primeiro lugar, convirá referir que andar de avião ou estar aí em casa bem instalado em frente de um televisor é quase a mesma coisa, pois, à parte a novidade provocada por esta nova situação, não há nenhuma sensação especial. Dir-se-ia que estamos numa carruagem de um moderníssimo comboio, dotado de todas as comodidades actuais. Mas, mesmo assim, há ainda uma grande diferença. Enquanto no comboio há o barulho característico das rodas que deslizam sobre os longos corrimãos de ferro e um balancear frequente de um lado para o outro, que nos embala e convida frequentemente ao sono, aqui só muito raramente se nota qualquer oscilação. É certo que há um barulho de fundo característico, próprio dos motores a jacto em funcionamento. Ao fim de certo tempo, nem o ruído ouvimos, pois os nossos ouvidos habituam-se a esse som regular e contínuo, mais parecendo que estamos mergulhados num completo silêncio. E, no entanto, segundo as informações fornecidas pela tripulação, voamos a 12 mil metros de altitude e a uma velocidade de cruzeiro de 950 quilómetros por hora. Comparado com os 90 quilómetros a que habitualmente nos deslocamos no carro, é só um pouquito mais! E comparado com a velocidade a que o Homem se deslocará dentro de alguns anos, quando o espaço entre os astros se tornar equivalente ao espaço que actualmente separa os continentes do nosso planeta, será uma velocidade de tartaruga. É tudo relativo. Mesmo assim já nos dá um pouco que pensar. E estou até mesmo a lembrar-me das conversas em que o pai me falava dos primeiros automóveis, no seu tempo de criança. Lembra-se de me ter contado que, nos primeiros anos, quando um carro atingia os 100 quilómetros já era considerado uma velocidade prodigiosa? Não deixa até de ter uma certa graça pensarmos que se considerava que o limite máximo da velocidade suportável pela máquina humana se situava na ordem dos 100 quilómetros... Onde já vai esse limite! E qual será o verdadeiro limite? Haverá mesmo limite para a velocidade suportável pelo Homem? Se actualmente os nossos astronautas conseguem dar uma volta completa à Terra em poucas horas, o que não será dentro de algumas décadas?

Deixemo-nos de velocidades e viagens no tempo e regressemos ao interior do avião. O Alferes Ulisses, isto é, a minha pessoa, teve a sorte ou azar de ficar ao lado do Capitão Alberto. O que significa que, antes de pegar no papel e na caneta para passar o tempo e vos dar notícias, fui por ele desafiado para uma partida de cartas. Com o seu sotaque tripeiro, que não é muito acentuado, mas não deixa de revelar as origens, propôs-me uma biscada.

-- Ulisses, baixa aí o tabuleiro, que está nas costas do assento da frente, e prepara-te para levares uma lição. Nem o teu antepassado troiano te há-de valer!

Baixou o tabuleiro dele, apontou para o meu e puxou de um baralho de cartas novo. Abriu a caixa de plástico transparente, pegou num baralho, rasgou o celofane envolvente, baralhou as cartas, que estavam todas ordenadas e pareciam ainda libertar o cheiro de tinta fresca, partiu e distribuiu. Ocupámos assim quase uma hora, até que o sono começou a chegar-lhe e desistiu. Qual o resultado da partida? Não será muito difícil de adivinhar! Como é que um amador, que raramente pega nas cartas e pouco mais sabe que o jogo do burro, poderia ganhar a um profissional? Se não o é, pelo menos prática não lhe parece faltar. Ou então terá treinado durante as horas livres passadas em Santa Margarida, onde pouco ou nada há para ver e fazer. Mas não fiquei a perder. Com este jogo passou-se cerca de uma hora quase sem que tivéssemos dado por isso. E deu até para uns momentos de brincadeira, graças em parte à minha «aselhice» e à sorte que ele tinha, pois saíam-lhe quase sempre as melhores cartas.



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