No
dia 12 de Dezembro de 1996, recebi a notícia de que um
amigo de infância, de tempos livres e de amena
cavaqueira ao longo de vários anos, tivera um acidente
grave e estava hospitalizado. Na primeira oportunidade,
tratei de o visitar. E durante todo o tempo de
hospitalização, aproveitei as horas diárias de visita
para estar na sua companhia, ajudando-o a vencer a
monotonia do tempo passado num quarto de hospital. Qual relógio suíço de alta
precisão, dia após dia, à hora da entrada, era dos
primeiros a percorrer os enormes corredores do hospital e
a entrar naquele quarto, cujas paredes se me tornaram
familiares. Sendo de facto um espaço restrito e
fechado, durante o período de uma hora as paredes
tornaram-se como que etéreas, como que uma espécie de
barreira do tempo. Regularmente, desvaneciam-se para nós
os dois. Permitiam-nos viajar para universos distantes,
perdidos algures no espaço e no tempo. Permitiam-nos
percorrer a longa fita cronológica dos acontecimentos e
situarmo-nos onde muito bem nos apetecia e mais nos
agradava. A incerteza dos dias futuros e a
necessidade de vencer a monotonia das horas sinistras, em
que a morte parece rondar-nos por perto, levou-nos
algumas vezes para tempos de uma infância feliz. Mas, na
sua grande maioria, como se o meu interlocutor estivesse
profundamente marcado, para um período restrito de
apenas dois anos, tendo como espaço geográfico o vasto
território de um país africano: Angola. Não raras vezes, o diálogo
transformou-se num longo monólogo, que eu ouvia com toda
a atenção, reconstituindo pela imaginação personagens
e paisagens, que me ficavam retidas e bailavam na
memória, como se eu próprio tivesse tomado parte nos
acontecimentos narrados. Eram cenas outrora vividas sob
céus mais quentes que os nossos, em que as nuvens se
destacam de um fundo de azul fortíssimo. Eram
peripécias forçadas por uma situação imposta, mas que
eram agora revividas com um enorme prazer, misturado com
o amargo de uma profunda saudade. Foram seguramente dois anos de vida
intensa, que transformaram dois anos de guerra alheia e
forçada numa situação de descoberta e comunhão
fraterna com outros povos, com outras gentes, com quem o
meu amigo acabou por se sentir irmanado e dos quais
guardou um vasto repertório de palavras escritas e
partilhadas com familiares e amigos, a que se juntaram
outros registos diversos. Tudo meticulosamente rotulado e
arquivado, na ânsia de melhor ancorar à memória
retalhos de vidas e de costumes! Na incerteza de sobreviver à
situação inesperada, como inesperados são todos os
acidentes que, sem aviso prévio, nos atiram, na melhor
das hipóteses, apenas para as paredes de um hospital, o
meu companheiro de amena conversa confiou-me o seu
espólio: um classificador com cerca de novecentos
aerogramas, escritos numa letra miudinha e compacta, por
vezes duplicados a químico; uma enorme colecção de
diapositivos, constituindo um repositório de cerca de
duas mil imagens; diversas fotografias, algumas já
desbotadas pelo tempo e com as cores alteradas para um
tom esverdeado; cópias de recenseamentos de povoações
indígenas, talvez já desaparecidas e que não verei
jamais; processos judiciais duplicados a químico; alguns
registos magnéticos, em cassetes, com programas de
rádio e conversas para casa; e uma colecção de
agendas, com anotações diárias de acontecimentos que
mereceram o seu registo. É com base em todo o legado que estão
redigidas as páginas das Cartas de um miliciano,
procurando-se nelas reproduzir, de maneira metódica e o
mais ordenadamente possível, alguns dos momentos mais
significativos ou interessantes, como se, também nós,
tivéssemos estado na companhia deste amigo, durante dois
anos de desterro. |