Reflectir sobre a minha experiência como professor de
Geometria Descritiva, sobretudo reflectir sobre as
abordagens iniciais dos conteúdos que envolvem a Dupla
Projecção Ortogonal, atira-me, obrigatoriamente, para o
meu tempo de aluno. Há trinta e dois anos atrás, passei
pelas mesmas dificuldades com que a generalidade dos
alunos se confronta — visualizar no espaço os elementos
representados em Dupla Projecção Ortogonal.
O meu professor era um homem muito distante,
permanentemente irritado, a quem não se podia perguntar
nada, que se envolvia em batalhas terríveis para nos
fazer compreender a diferença entre o ponto real e a sua
representação e desenvolver em nós a capacidade de
localizar um ponto no espaço a partir das respectivas
coordenadas, enfim, esse conjunto de malabarismos e
truques de ocultismo, que eu via fazer como se ele fosse
um avô do Luís de Matos — via-o agitar freneticamente os
braços, à medida que se sucediam autênticos milagres que
permitiam que alguns dos meus colegas vissem coisas que
eu não via.
Eu estava preparado para desconfiar de tudo aquilo. Se
calhar os tipos até pertenciam a uma seita que praticava
os seus rituais na Sala 19 do Liceu Nacional de Aveiro…
Restava-me a consolação de ter do meu lado muitos
companheiros que não tinham sido tocados pela fé e que,
consequentemente, tinham quase tantas dificuldades
quantas as que eu tinha.
Havia uma pequena diferença — além de eu pensar que as
minhas dificuldades eram em maior número, tinha a
certeza que eram muito maiores!
Foi a medicina que me salvou de fazer uma peregrinação a
Fátima, numa altura em que já me preparava para dizer ao
meu pai que o melhor era não contar comigo para aquele
projecto que ele tinha de fazer do filho mais velho um
engenheiro electrotécnico de bata branca e olhos azuis!
Afinal eu nem bata branca tinha, quanto mais olhos
azuis!
O Fernando Jacob era, ao tempo, um futuro médico que se
preparava para o último exame e que fazia do Café
Tangará a sua Sala de Estudo. Nessa altura era assim e
não era rara a falência dos cafés que não tinham colados
vários indoors com textos do tipo “Proibido estudar nas
mesas”.
Naquela noite, véspera do primeiro teste de Desenho
(suponho que a disciplina se nomeava assim), eu dava
cambalhotas esforçadas para tentar resolver uns
exercícios que apareciam num livrinho de capa preta e
branca, com umas bolinhas (não havia essa mania das
cores, que os editores usam como se estivessem a
embrulhar brinquedos para uma criança pobre que nunca
recebeu um presente). Eu lá ia tentando fazer os
exercícios, mas, quem fez o livrinho esqueceu-se de mim
e as soluções que acompanhavam cada exercício, não
acertavam com as minhas. Percebi que estava a acontecer
qualquer coisa de muito grave, pois não havia meio de
acertar um exercício que fosse e começava a sentir
suores frios.
O Fernando Jacob percebeu rapidamente que eu estava à
beira de um colapso e eproximou-se de mim com o cachimbo
Peterson entre os dentes:
— Então, Moreirinha, ‘tás à rasca?
— Pois…
— Então o que é que é?
— Oh! Pá! É o teste de Desenho…
— Quando é?
— Amanhã!
— Ah!… Mostra lá isso…
Mostrei-lhe a língua, perdão, o livro de exercícios e as
folhas onde rabiscava linhas e mais linhas e letras e
mais letras com uns apêndices esquisitos que trocava
sistematicamente — onde havia de ser ’punha’’ e onde
havia de ser ’’punha ’.
O Fernando Jacob olhou para mim e disse aquilo que eu já
sabia:
— É grave! É muito grave! Temos que fazer rapidamente um
tratamento de choque…
Pensei que ia ter que apanhar uma injecção, mas não foi
nada disso. Aliás, reparei que o Fernando nem sequer
tinha desinfectado as mãos, nem me tinha auscultado… eu
até pensei que ele não andava nada a estudar para
médico…
Nessa altura, o Fernando sentou-se, não na minha frente,
mas ao meu lado. Cheguei a pensar que ele estava a
pensar na forma de me dizer qualquer coisa do tipo “diz
as tuas orações, pois não passas de hoje”, porque, de
repente, pareceu-me muito nervoso e começou a rasgar
folhas de papel. Depois dobrava-as ao meio e escrevia
sobre elas umas palavras muito curtas que, mesmo assim,
eu nem conseguia ler. Eram coisas do tipo PVP, PHP,
SPVPS, SPVPI, SPHPSA, SPHPSP e por aí fora. Eu julguei
que o Fernando andava a estudar demasiado e estava a
começar a derreter a massa encefálica…
Mas não era verdade! Não durou mais de meia hora este
episódio que me levou a perceber o que era o Método de
Monge e a acertar os meus primeiros exercícios de Dupla
Projecção Ortogonal.
Foi uma experiência excepcional! Tão ou tão pouco
excepcional, que me lembro dela como se fosse hoje.
Seria capaz de indicar a mesa do café onde tudo
aconteceu. Só lamento não ter podido fazer notar ao
Fernando Jacob a importância decisiva que teve, para
mim, aquela meia hora retirada ao trabalho que ele
estava a fazer, pois, pouco depois, ele acabou o Curso e
começou a trabalhar, em Santarém.
Quando comecei a leccionar Geometria Descritiva, não
tinha muitas opções para escolher como modelo. Escolhi,
obviamente, o Médico.
Nas aulas, usava as adaptações convenientes dos modelos
em papel que o Fernando Jacob me construiu: a parede em
frente dos alunos e o chão e os respectivos
prolongamentos; uma bolinha de giz servia de ponto; as
projecções das projectantes eram riscadas no chão e na
parede.
Participavam todos os alunos em situações que eram
criadas por mim e depois por eles, enquanto eu
corrigia erros que eram cada vez menos frequentes.
Cada aluno construía, depois, o seu próprio modelo,
em cartolina e passava a experimentar nele as
situações que eram criadas na aula e, tenho que
concluir, também, durante a realização dos trabalhos
de casa. Ninguém avançava deste ponto sem que eu
pudesse ter a garantia que toda a gente estava a
“ver a coisa”. Dito de outra maneira, o click tinha
que acontecer nesta altura. E eu consegui que tal
acontecesse, sem que, por isso, me considere mais do
que um professor comum. |
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José António Moreira |