(No original as páginas do apêndice estão em numeração
romana. Aqui, optámos pela numeração árabe).
Quando, embora já tarde, achámos conveniente incluir no
nosso trabalho (como apêndice) a tradução de este ensaio de Th. MANN,
foi porque nos pareceu indispensável o conhecimento da interpretação
manniana de Nietzsche, cuja filosofia, como atrás dizemos, perpassa toda
a sua criação. Pelo que se infere de um passo do texto, a redacção de
esta obra data de depois de 1945: de uma altura em que ocupava o Autor o
tema do "Dr. Faustus".
//
Quando no início do ano de 1889 se propagou a notícia do
colapso mental de Nietzsche, vinda de Turim e Basileia, muitos dos que,
espalhados pela Europa, já tinham conhecimento da fatal grandeza do
homem, terão repetido para consigo o lamento de Ofélia:
«Oh! Como é triste ver um espírito tão nobre assim
perturbado!»
E também muito do conteúdo dos versos seguintes, que
lastima a horrível desgraça de uma razão tão alta, desconcertada por
louco entusiasmo, "blasted by ecstasy", agora qual som dissonante
de sinos desafinados, se aplica com exactidão a Nietzsche, e não menos a
expressão em que a dolorosa donzela resume o seu elogio:
"The observ’d of all observers", que Schlegel traduz: "Das
Merkziel der Betrachter" ("O alvo dos observadores")
(1). Nós empregaríamos
para tal o termo "fascinante" e, com efeito, em vão se procurará em toda
a literatura universal e na história do Espírito uma figura mais
fascinante do que a do eremita de Sila Maria. É porém uma fascinação
intimamente aparentada com aquela, a que se desprende duradoiramente da
criação de Shakespeare, o melancólico príncipe da Dinamarca.
Nietzsche, o pensador e o escritor, a encarnação
exemplar",
/ 6 /
como lhe chamaria Ofélia, era uma figura de enorme amplitude e
complexidade cultural, que resumia toda a problemática europeia, que
tinha recolhido em si muito do passado, que a recordava em imitação e
sucessão mais ou menos consciente, repetia, actualizava de maneira
mítica, e não duvido que o grande amante da máscara das feições
hamletianas passasse desapercebido no trágico espectáculo de vida que
ele nos ofereceu – gostaria quase de dizer: que ele organizou para nós.
Pelo que me diz respeito a mim, leitor comovido e apaixonado e
"observador" da geração seguinte, já cedo experimentara este parentesco
e esta mistura de sentimentos que precisamente para a alma juvenil tem
algo de novo, que resolve as ideias e as aprofunda: a mistura de
veneração e de piedade. Tal. nunca se me tornou estranho. É a trágica
compaixão para com uma alma sobrecarregada de tarefas que, chamada só
para o saber, não tinha nascido propriamente para isso e, que, como
Hamlet, soçobrou ao fazê-lo; para com uma alma terna, sensível, bondosa,
sedenta de amor, apoiada na amizade nobre e que de maneira nenhuma fora
feita para a solidão, a quem tinha cabido em sorte a solidão mais
profunda e mais gélida, a solidão do criminoso; para com uma
espiritualidade a princípio profundamente piedosa, totalmente dada à
veneração, ligada a tradições devotas, que foi pelo destino arrastada
como que pelos cabelos para um profetizar de força barbaricamente
pujante, do endurecimento da consciência, do Mal, furioso contra a
própria
/ 7 /
natureza, selvático, ébrio e renunciando a toda a piedade. Tem de se
lançar uma vista de olhos às origens deste espírito, perseguir as
influências que actuaram na formação da sua personalidade, sem que a sua
natureza as tenha sentido de maneira nenhuma a despropósito, – para se
tomar intimidade com o inverosímil destino aventuroso da sua vida, a sua
completa imprevisibilidade. Nascido no ambiente campesino da Alemanha
central em 1844, quatro anos antes da tentativa de uma revolução
burguesa na Alemanha, é Nietzsche, tanto do lado paterno, como do lado
materno, originário de conceituadas famílias de Pastores evangélicos.
Parece que ironicamente, há um escrito do seu avô sobre “A eterna
duração do Cristianismo, para sossego de quem observa a fermentação dos
nossos tempos".
Seu pai era uma espécie de cortesão, educador das
princesas prussianas e devia o seu lugar como pároco a uma graça de
Frederico Guilherme IV. Sentido das formas aristocráticas, austeridade
moral; sentimento de honra, penoso amor pela ordem pertenciam ao
espírito da casa de seus pais. Depois da morte precoce do pai, o rapaz
vive na cidade de funcionários que Naumburgo era, devota e fiel ao rei.
Ele é descrito como "imensamente bem educado", como notório menino
exemplar de austeridade e bom comportamento, o que lhe faz valer o nome
de "o pequeno Pastor”. É do conhecimento geral aquela característica
anedota em que ele, durante uma chuvada, vai da escola para casa num
passo
/ 8 /
medido e digno, – porque as normas escolares exigem que as crianças
tenham cá fora uma conduta composta. A sua educação secundária é
brilhantemente completada no célebre colégio conventual de Schulpforta.
Tinha inclinação para a Teologia e também para a Música, mas decide-se
pela Filologia Clássica e estuda-a em Lipsia com um severo metodólogo
chamado Ritschl. Os seus sucessos são tais que ele, mal se viu livre do
serviço militar como artilheiro, quase ainda um adolescente, foi chamado
para a cátedra académica, para mais da grave, devota e patriarcal cidade
de Basileia.
Tem-se a imagem de uma normalidade nobre altamente
dotada, que uma vida de correcção a um nível distinto parece garantir.
Em vez disto, desta base, que impulsos em direcção ao Ignoto! Que
perder-se (“sich-versteigen"), trepando até altura mortíferas! A palavra
"versteigen”, empregada aqui no sentido moral e psicológico, vem da
linguagem dos alpinistas e designa a situação em que, numa montanha, nem
se pode andar para a frente nem para trás e o alpinista está perdido.
Aplicar esta palavra ao homem que não só é indubitavelmente o maior
filósofo do séc. XIX que estava a terminar, mas também um dos mais
intrépidos de todos os heróis do reino do pensamento, parece coisa
própria de "burguês".
Mas Jakob Burckhardt, para quem Nietzsche olhava como
para um pai, não era “burguês" nenhum e já cedo tinha notado, para
aflição
/ 9 /
sua, o rumo do espírito do amigo mais novo e avisadamente se tinha
afastado dele, o votava a uma certa indiferença, que não era mais do que
"auto-defesa à Goethe"... O que era que empurrava Nietzsche para o
Ignoto, o impelia lá para cima entre sofrimentos e o fazia morrer como
mártir na cruz do pensamento? O seu destino – e o seu destino era o seu
génio. Mas este génio tem ainda outro nome. Chama-se "doença" – não no
sentido vago e geral, que tão facilmente se liga ao conceito de génio,
mas num juízo de tal modo específico e clínico, que a gente se tem
sempre de acautelar contra a suspeita das "más línguas" e a censura de
que se quer com isso desvalorizar a criação de um génio que, como
artista da palavra, pensador, psicólogo, transformou toda a atmosfera da
sua época. Tal seria ver mal as coisas. Muitas vezes se disse e eu
torno-o a dizer: a doença é algo de formal: o importante é saber com
quem ela se liga, em quem ela se cumpre. Interessa saber quem está
doente: se um homem comum, em que a doença renuncia certamente ao
aspecto espiritual e cultural, se um Nietzsche, um Dostoievski. O médico
– patológico é um lado da verdade, o seu lado naturalístico, por assim
dizer, e quem ama a verdade como todo e não pode deixar de lhe prestar
honras, não negará, por prejuízos espirituais, qualquer ponto de vista
sob o qual ela possa ser observada.
Criticou-se muito o médico Möbius por ele ter escrito um
livro em que, do ponto de vista do especialista, descrevia a história
/ 10 /
da evolução de Nietzsche como uma paralisia progressiva. Nunca pude
participar dessa indignação. O homem diz, à sua maneira, a verdade
incontestável.
No ano de 1865, Nietzsche, com vinte e um anos de idade,
conta uma história estranha ao seu colega Paul Deussen, que mais tarde
se tornou célebre sanscritista e estudioso de filosofia vedanta. O jovem
tinha ido passear sozinho a Colónia e contratado lá um moço de fretes,
para lhe mostrar o que havia a ver na cidade. Assim se passa a tarde e,
já à noitinha, Nietzsche pede-lhe que lhe indique um restaurante
recomendável. Mas o fulano, que para mim tomou a figura
de um sinistro mensageiro, leva-o para um lupanar. O
jovem, puro como uma donzela, todo espírito, todo erudição, todo timidez
devota, vê-se de repente, assim o diz, rodeado de meia dezena de figuras
vestidas de tule com lantejoulas, que o miram expectantes. Por entre
elas vai o jovem músico, filólogo e admirador de Schopenhauer, que se
dirige instintivamente a um piano que vê ao fundo do diabólico salão e
onde ele (tais são as suas próprias palavras) divisa "o único ser dotado
de alma naquela sociedade", e toca alguns acordes. Isto liberta-o da sua
condenação, do seu estado de inconsciência e ele sai cá para fora e
consegue fugir.
No dia seguinte contou com certeza entre risos esta
experiência ao companheiro. Não tinha ainda a consciência da impressão
que
/ 11 /
isto lhe causara. Não era, porém, nem mais nem menos do que aquilo a que
os psicólogos chamam um "trauma", uma comoção que nunca mais abandona a
fantasia e testemunha da sensibilidade do santo em relação ao pecado. Na
quarta parte do "Zaratustra", elaborada vinte anos depois, encontra-se
no capítulo "Entre filhas do deserto", um poema à moda oriental, cuja
horrível graça trai com uma dolorosa falta de gosto uma sensualidade
mortificada e os seus estertores, ao lado de inibições já afrouxadas.
Neste poema das "formosíssimas amigas e gatas-raparigas Dudu e Zuleica",
uma visão erótica de humorismo penoso, estão presentes,
continuam presentes, aqueles "vestidos de lantejoulas" das mulheres
públicas de Colónia (2).
As "figuras dos vestidos de tule com lantejoulas" de outrora tornam-se
aqui visivelmente modelo das voluptuosas filhas do deserto, e depois
disto pouco mais há, são só mais quatro anos até à clínica de Basileia,
onde o doente revela, no registo da história da doença que, em anos
anteriores, tinha sido infectado especificamente por duas vezes. A
história da doença de Iena indica, para o primeiro destes infortúnios, o
ano de 1866. Portanto um ano depois de ter fugido daquela casa de
Colónia, volta, desta vez sem diabólico guia – alguns dizem
intencionalmente como auto-punição – contrai aquilo que lhe desorganiza
a vida, mas que também a eleva imensamente, – de onde saem os estímulos,
parcialmente felizes, parcialmente fatais, para toda uma época.
/ 12 /
O que o leva a desejar sair, após poucos anos, do seu
ofício académico em Basileia, é uma mistura de estado enfermiço e de
ímpeto de liberdade, o que, no fundo, é o mesmo. Já cedo o jovem
admirador de Wagner e de Schopenhauer tinha proclamado a Arte e a
Filosofia como os verdadeiros condutores da Vida – contra a História, da
qual a disciplina da sua especialidade, a Filologia, é um ramo.
Afasta-se dela, pede a reforma por motivos de doença e continua a viver
sem qualquer ligação, como humilde hóspede de quartos alugados: em
lugares cosmopolitas da Itália, da França meridional, das montanhas
suíças, onde escreve os seus livros, estilisticamente deslumbrantes,
cintilantes de ousados insultos ao seu tempo, sob o ponto de vista
psicológico cada vez mais radicais, irradiantes de um fulgor cada vez
mais brilhante.
Numa carta, chama-se a si mesmo "um homem que nada mais deseja do que
perder todos os dias um pouco de crença calmante, que procura e encontra
a sua felicidade nesta libertação do espírito, cada dia maior. Talvez
que eu até queira ser mais um espírito livre do que o possa ser!" Isto é
uma confissão que data de muito cedo, já de 1876; é a antecipação do seu
destino, do seu colapso; o pressentimento de um ser que será levado a
reconhecer ao conhecimento coisas mais cruéis do que aquilo que o seu
ânimo pode suportar, e que oferecerá ao mundo o espectáculo de uma
comovente auto-crucifixão.
/ 13 /
Ele poderia ter posto sob a sua obra, como aquele pintor,
a seguinte legenda: "In doloribus pinxi". Em mais de um sentido,
o psíquico e o físico, teria dito a verdade. Em 1880 confessa ele ao
médico Dr. Eiser: "A minha existência é uma terrível carga: tê-la-ia
alijado há muito, se não fizesse as experiências mais instrutivas sobre
regiões psíquico-morais precisamente neste estado de dor e de quase
absoluta renúncia... Dores constantes, durante muitas horas do dia uma
sensação intimamente aparentada com o enjoo, uma paralisia parcial,
durante o que me custa falar, para variar ataques furiosos (o último
fez-me esperar três noites e três dias para vomitar, ansiava pela
morte)... – Poderia descrever-lhe esta coisa permanente, que me
provoca dores e um peso constantes na cabeça, nos olhos, e aquela
sensação que me tolhe o corpo da cabeça à ponta dos pés." É difícil de
compreender o seu aparentemente completo desconhecimento – e ainda por
cima o dos seus médicos! – quanto à natureza e origem destas dores.
Pouco a pouco se vai convencendo de que elas vêm do cérebro e nisto
considera-se hereditariamente sobrecarregado: é que o pai, segundo ele
nos diz, soçobrou a uma "fraqueza do cérebro" – o que, com toda a
certeza, não é verdade; o Pastor Nietzsche morreu pura e simplesmente de
uma “fractura do crânio" causada por uma queda.
Um desconhecimento tão completo, ou uma dissimulação do
conhecimento quanto à origem da sua doença, só se pode explicar pelo
facto
/ 14 /
de que ela estava cruzada e ligada com o seu génio, que este se
desenvolveu com aquela, – e que a um psicólogo genial tudo se pode
tornar objecto de um conhecimento revelador, excepto o próprio génio.
Trata-se muito mais de uma espantosa admiração por si
mesmo, de um egotismo desmesurado, de crassa hybris.
Com toda a ingenuidade, Nietzsche glorifica o sublime
reverso da sua dor, estas indemnizações e super compensações eufóricas
que também fazem parte do quadro. Fá-lo da maneira mais grandiosa no "Ecce
Homo", obra da última fase (sem quase nenhuma inibição), no passo em
que glorifica o estado anímico e físico, elevado de
uma maneira inaudita, em que ele compôs o Zaratustra, num espaço
de tempo incrivelmente curto.
(3) A página é uma obra
prima estilística linguisticamente um verdadeiro tour de force,
que se pode comparar talvez apenas com a maravilhosa
análise da abertura dos "Mestres-Cantores" em "Além do Bem e
do Mal" (4) e com a
representação dionisíaca do Cosmos no final de "Vontade
do Domínio" (5).
"Alguém sabe", pergunta ele no "Ecce homo", “nos fins do séc. XIX
o que poetas de idades fortes chamavam inspiração? Por outro
lado, quero-vo-lo descrever." E depois começa uma descrição de
revelações, encantos, subidas, insinuações, sentimentos de força e de
poder divinos, que ele não pode deixar de sentir como qualquer coisa de
atávico, de herança demoníaca, algo que pertence a outros "mais fortes"
estados da humanidade mais próximos da divindade e que sai fora das
possibilidades físicas
/ 15 /
da nossa época, de intelectualidade débil. E com isto descreve ele "em
verdade" – mas o que é a verdade: a experiência vital ou a medicina? –
um pernicioso estado de excitação que precede escarnecedoramente o
colapso paralítico.
Todos concordarão de que se trata de excessos hécticos de
egotismo, de testemunhos de uma razão transtornada, quando Nietzsche
chama ao "Zaratustra” um produto, perante o qual todo o resto da
criação divina parece pobre e limitado, quando afirma que um Goethe, um
Shakespeare, um Dante não chegariam às alturas deste livro e que o
espírito e a boa vontade de todas as grandes almas reunidas não estariam
em estado de produzir nem um só dos discursos de Zaratustra. É
claro que deve ser um grande prazer escrever coisas assim, mas acho que
tal não se deve fazer. De resto, pode ser que esteja apenas a referir as
minhas próprias possibilidades, confessar que a relação de Nietzsche
para com o "Zaratustra" me parece a de um cego exagero. Graças à
sua atitude bíblica, tornou-se “o mais: popular” dos seus livros, mas
não é, nem de longe, o seu melhor livro. Nietzsche era, acima de tudo,
um grande crítico e filósofo da cultura, um prosador e ensaísta europeu
de primeiro plano saído da escola de Schopenhauer, cujo génio alcançou o
cume no tempo de "Além do Bem e do Mal" e da “Genealogia da
Moral". Um poeta pode ser menos do que um tal crítico, mas não
chegou para este menos ou então só nalguns momentos líricos, não
para um
/ 16 /
extenso trabalho de originalidade criadora. Este Zaratustra sem rosto e
sem forma, malévolo e anti-social com a coroa de rosas do riso na fronte
amorfa, com o seu "torna-te duro!" e as suas pernas de dançarino, não é
uma criação, é retórica, agitado trocadilho, voz atormentada e duvidosa
profecia, um espectro de desamparada grandiosidade, muitas vezes
comovedor e quase sempre penoso – um fantasma oscilante que toca as
raias do ridículo.
Enquanto assim vou falando, lembro-me da crueldade
duvidosa com que Nietzsche falou de muitas coisas, propriamente de
tudo que lhe merecia veneração: da Música em geral, da Moral, do
Cristianismo – teria quase dito: da Alemanidade, – e como ele,
manifestamente nessas furiosíssimas surtidas críticas contra os valores
e forças venerados com devoção no mais íntimo do seu ser, não tinha
realmente a intenção de os atacar, mas, como parece, tomava as ofensas
mais terríveis atiradas contra eles, como uma forma de homenagem. Disse
tais coisas sobre Wagner que a gente desconfia do que lê, quando no
Ecce homo se fala repentinamente da hora santa, em que Wagner
morreu em Veneza. Mas então, pergunta-se, porque há lágrimas nos olhos,
porque é esta hora para sempre santa, se Wagner era o mau histrião, o
corrupto corruptor, como Nietzsche o descreveu milhentas vezes? Junto do
seu amigo, o músico Peter Gast, desculpa-se dos seus eternos conflitos
com o Cristianismo: que se tratava precisamente do melhor pedaço
/ 17 /
de vida ideal que realmente conhecera. Que no fim de contas, ele era o
produto de muitas gerações de eclesiásticos e que cria "nunca no seu
coração ter procedido mal para com o Cristianismo". Pois não, mas
chamou-lhe com voz alterosa "uma mancha imorredoira da humanidade" – não
sem que se divertisse ao mesmo tempo com a afirmação de que o Germano
era de certo modo predisposto e predestinado para o Cristianismo: o
mandrião belicoso e rapace, amante da caça e bebedor de cerveja de
sentimentos frios, que não passou de uma simples religião de
pele-vermelhas e que ainda há dez séculos esfolou vítimas em aras
sacrificiais – que era ele comparado com a subtileza moral aguçada pelo
entendimento rabínico, com a fineza oriental do Cristianismo! – a
repartição de valores é clara e consoladora. O "Anticristo" dá à sua
autobiografia o cristianíssimo título de "Ecce homo". E no último
bilhete da sua loucura põe a assinatura de "O crucificado".
Pode dizer-se que a relação de Nietzsche para com os
objectos preferidos da sua crítica é pura e simplesmente a da paixão,
uma paixão no fundo sem augúrios definidos, pois que o negativo se
tornava constantemente positivo. Ainda pouco antes do fim da sua vida
psíquica, escreve ele sobre o "Tristão e Isolda" uma página
vibrante de entusiasmo. Por outro lado, no tempo em que era discípulo
incondicional de Wagner, antes de redigir para o público o escrito
comemorativo “Ricardo Wagner em Bayrenth", exprimiu-se com tal
profundeza de visão
/ 18 / contra amigos íntimos
de Basileia, com o que antecipou, a um decénio e meio de distância, o
"Caso Wagner".
Nas relações de Nietzsche para Wagner não há ruptura,
diga-se o que se disser. O mundo quer sempre ver uma ruptura na vida e
na obra dos grandes homens. Encontrou-a em Tolstoi onde tudo é
consequência de ferro, onde o futuro é prefigurado psicologicamente já
cedo. Encontrou-a no próprio Wagner, em cuja evolução domina a mesma
inquebrantável continuidade e lógica. Com Nietzsche não se passa coisa
diferente. Por mais que a sua obra, em boa parte aforística, se revele
em facetas multicores, por mais que se lhe apontem contradições de
superfície – ele é sempre o mesmo desde o princípio, e nos escritos do
jovem professor, nas "Observações intemporais", na "Origem da
tragédia", no tratado "O filósofo" de 1873, não estão só os
germes da sua posterior mensagem pedagógica, mas também uma alegre
mensagem da sua interpretação está já neles de uma maneira completa e
acabada. O que muda é só a acentuação, cada vez mais frenética, o tom de
voz, cada vez mais estridente, os gestos, cada vez mais grotescos e
terríveis. O que se modifica é o estilo que, desde sempre altamente
musical, saído da digna disciplina e estreiteza de tradição humanística
alemã, de matiz um pouco “bota-de-elástico" e erudito, degenera pouco a
pouco num super-estilo de folhetim pavorosamente mundano e héctico, que
acaba com a carapuça de cascáveis do trocista do mundo, com que se
adorna. Mas não basta acentuar a completa unidade
/ 19 /
e coesão da obra de Nietzsche. Na peugada de Schopenhauer, de quem ele
continuou discípulo, embora há muito tempo tivesse negado o mestre,
durante toda a sua vida só glosou propriamente um único pensamento, por
toda a parte presente, ampliado, gravado que, surgindo a princípio em
completa saúde e com iniludível autorização da crítica do tempo, no
decorrer dos anos se entrega a um furor menédico e selvático, de tal
modo que se pode chamar à história de Nietzsche a história da decadência
deste pensamento.
Qual é ele? – Precisamos de o decompor nos seus
ingredientes, nas partes em conflito que nele há, para o compreendermos.
Citados ao calhar, esses ingredientes são a Vida, a Cultura, a
Consciência ou o Conhecimento, a Arte, a Nobreza, a Moral, o Instinto.
Neste complexo de ideias, domina o conceito de Cultura. É quase
equiparado à própria Vida: a Cultura é a nobreza da Vida e ligadas a
ela, como fontes e condições, estão a Arte e o Instinto, ao passo que
como inimigos mortais e destruidores da Cultura e da Vida figuram a
Consciência e o Conhecimento, a ciência e, por fim, a moral – a moral
que, como mantenedora da Verdade, atenta contra a vida da própria Vida,
visto que esta assenta essencialmente na Aparência, na Arte, no Engano,
na Perspectiva, na Ilusão e é o Erro o pai dos viventes.
Herdou de Schopenhauer a frase de que “a Vida apenas como
representação, meramente contemplada ou repetida pela Arte, é um
espectáculo
/ 20 /
significativo", a frase, portanto, de que só como fenómeno estético se
pode justificar a Vida. A Vida não é mais do que Arte e aparência e por
isso está mais alta do que a Verdade (que diz respeito apenas à Moral),
do que a Sabedoria (como coisa da Cultura e da Vida) – uma sabedoria
trágico-irónica que, por amor da Cultura, impõe limites à Ciência por
instinto artístico e defende duplamente a Vida: contra o pessimismo dos
caluniadores da Vida e porta-vozes do Além ou do Nirvana – e contra o
optimismo dos racionalistas e reformadores do mundo que disparatam sobre
a felicidade de todos nesta terra e sobre a justiça e preparam o caminho
para a insurreição socialista dos escravos. Nietzsche baptizou esta
trágica verdade que abençoa a Vida, apesar de toda a sua falsidade,
dureza e crueldade, com o nome de Diónisos.
O nome do deus ébrio aparece na obra estético-mística do
"Nascimento da Tragédia do Espírito da Música", onde o dionisíaco, como
estado artístico-anímico se opõe ao princípio artístico da distância e
da objectividade apolínea, de maneira muito semelhante a como Schiller,
no seu célebre ensaio, opõe "o ingénuo" (“Das Naive") ao
"sentimental" (“dem Sentimentalischen"). Aparece aqui pela
primeira vez a expressão de "homem teórico" e começa a luta contra
Sócrates, tipo exemplar deste homem teórico, desprezador do Instinto,
glorificador da Consciência, que ensinava que só podia ser bom o que era
consciente,
/ 21 /
inimigo de Diónisos e assassino da tragédia. Tem nele a sua origem,
segundo Nietzsche, aquela cultura alexandrina da Ciência, pálida,
erudita, estranha ao Mito e à Vida, uma cultura onde venceram o
optimismo e a crença na razão, o utilitarismo prático e teórico que,
como a Democracia, é um sintoma de força decadente e de cansaço
fisiológico. O homem desta cultura socrática, anti-trágica, o homem
teórico, já não quer ter tudo, com toda a natural crueldade das coisas,
mimado como está pela observação optimista. Mas, tal é a convicção do
jovem Nietzsche, a idade do homem socrático passou. Uma nova geração,
heróica, temerária e desdenhosa de todas as doutrinas de fraqueza pisa o
palco, um dealbar progressivo do espírito dionisíaco observa-se no nosso
mundo contemporâneo, o mundo de 1870, das profundezas dionisíacas do
espírito alemão, da música alemã, da filosofia alemã consuma-se o
renascimento da Tragédia. Mais tarde troçou da sua crença de então no
espírito alemão – e de tudo o que tinha posto nele, inclusivamente a si
próprio. Na verdade, ele próprio está inteiramente neste prelúdio da sua
filosofia de matiz nem moderadamente humano, nem apaixonadamente
romântico, e também as perspectivas cósmicas, as vistas sobre a
totalidade da cultura ocidental estão já lá, embora ele se ocupe mais da
cultura alemã em cuja alta missão ele crê, mas que vê arruinar-se no
maior dos perigos, devido à fundação do estado totalitário de Bismarck,
à política, à intervenção democrática e à presunçosa
/ 22 /
saciedade de vitória. A sua brilhante diatribe contra o decrépito e
divertido livro do teólogo David Strauss "A velha e a nova crença"
é o mais imediato exemplo desta crítica de um burguesismo da saturação,
que ameaça roubar ao espírito alemão toda a sua profundidade. E há algo
de comovedor no facto de que já aqui o jovem pensador prevê
profeticamente o próprio destino que, como um trágico plano de vida,
parece estender-se perante ele. Refiro-me ao passo em que ele escarnece
da cobardia ética do mau iluminista Strauss, que bem se guarda de
derivar Prescrições morais para a vida, do seu Darwinismo, do
bellum omnium contra omnes e do privilégio do mais forte, mas que só
se compraz nas suas investidas contra os eclesiásticos e contra os
milagres, no que se tem o burguês do nosso lado. Ele mesmo, isso sabe-o
ele na sua profundidade, fará os impossíveis e não receará até a
loucura, só para ter o burguês contra si.
É na segunda das "Observações intemporais",
intitulada "Da utilidade e desvantagens da história para a vida" que
aquele pensamento fundamental da sua vida, de que falei, está
representado da maneira mais completa, embora ainda
numa vestidura crítica especial. O admirável estudo é no fundo só uma
grande variante da expressão hamletiana da "cor inata da resolução
tornada enferma pela palidez do pensamento"
(6).
O título é inexacto na medida em que mal se trata da
utilidade
/ 23 /
da História – e muito mais das suas desvantagens para a vida; essa coisa
adorada, santa e justificada esteticamente. Chamou-se ao séc. XIX a
Idade da História e, na verdade, foi ele que produziu e desenvolveu pela
primeira vez o sentido histórico, que as primitivas culturas,
precisamente como culturas, como sistemas de vida artisticamente
fechados em si mesmos, pouco ou mesmo nada sabiam.
Nietzsche fala pura e simplesmente da "doença histórica"
que conduz ao torpor a vida e a sua espontaneidade. Porque formação é
hoje em dia formação histórica. Mas que os gregos não tinham formação
histórica e ninguém lhes iria chamar incultos. História por amor do
conhecimento puro, não impelida pelo objectivo vital e sem o contrapeso
do "talento plástico", da desenvoltura criadora, é assassina, é a morte.
Um fenómeno histórico na sua reconhecibilidade – está morto.
Quando tal acontece, por exemplo a uma religião cientificamente
reconhecida – ela morre. O tratamento histórico do Cristianismo, diz
Nietzsche com conservativa cautela, resume-se a um mero conhecimento
acerca do Cristianismo. "Na revisão histórica da Religião", diz ele,
"revelam-se coisas que necessariamente destroem o estado piedoso de
ilusão, em que tudo o que quer viver, não pode deixar de viver. Só no
amor, ensombrado pela ilusão do amor, o homem pode criar. A História
deveria ser tratada como obra de arte, para ser culturalmente criadora,
– mas isto contradiria a corrente analítica e não artística do
/ 24 /
tempo. A História expulsa os instintos. Formado ou deformado por ela, o
homem nada mais pode fazer do que "deixar pender as rédeas" e agir
ingenuamente, confiando no "animal divino". A História menospreza sempre
o devir e paralisa a acção, que não pode deixar de lesar piedades. O que
ela ensina e cria é a justiça. Mas a Vida não precisa de justiça,
precisa de injustiça, é essencialmente injusta. “É preciso muitíssima
força", diz Nietzsche (e a gente fica a duvidar se ele se atribui tal
força) "para poder viver e esquecer, sendo a Vida e a Injustiça uma e a
mesma coisa". Tudo depende, porém, do poder esquecer. Ele quer o
não-histórico: poder esquecer a arte e a força e confinar-se a um
horizonte limitado, – uma exigência mais facilmente levantada do que
cumprida, gostar-se-ia de acrescentar. Pois nasce-se com um horizonte
limitado, para nos confinarmos nele artificialmente – uma mumice
estética e uma negação do destino, de onde dificilmente pode sair algo
de verdadeiro e de justo. Mas Nietzsche, de uma maneira bela e nobre,
quer o super-histórico, que faz desviar a vista do devir para aquilo que
dá à existência o carácter do eterno e do estável, para a arte e para a
religião. O inimigo é a Ciência, pois ela só vê e conhece a história e o
devir, ignora o estável e o eterno; ela odeia o esquecimento como morte
do saber e procura levantar todas as limitações de horizonte. Tudo o que
vive, porém, precisa de uma atmosfera protectora, de um misterioso
círculo de fumo e de
/ 25 /
uma ilusão envolvente. Uma Vida dominada pela Ciência é muito menos Vida
do que aquela que não é dominada pelo saber, mas é-o pelos instintos e
poderosas alucinações...
Ao lermos "poderosas alucinações", pensamos hoje em dia
em Sorel e no Seu livro "Sur la violence", onde o sindicalismo
proletário e o fascismo ainda são a mesma coisa e o mito das massas,
seja verdade ou mentira, é explicado com imprescindível motor da
História. Perguntamo-nos também se não seria melhor manter nas massas o
respeito à razão e à verdade e com isso prestar homenagem aos seus
anseios de justiça, – do que implantar o mito das massas e soltar sobre
a humanidade hordas dominadas por "poderosas alucinações".
Quem o faz hoje e com que objectivo? Com objectivo
cultural, certamente que não. Mas Nietzsche nada sabe a respeito das
massas e nada delas quer saber. "O diabo as leve", diz ele, "e à
estatística!" Ele quer e anuncia uma época em que, de maneira
não-histórica, super-histórica, nos abstemos prudentemente de todas as
construções do desenvolvimento do mundo, ou também da história da
humanidade, já não tomamos em consideração as massas mas os Grandes, os
eternamente Grandes, que dialogam em espírito por cima de todos os
movimentos históricos.
A meta da humanidade, diz ele, não está no fim, mas nos
seus mais altos exemplos. Consiste nisto o seu individualismo: um culto
/ 26 /
estético de génios e heróis, que ele recebeu de Schopenhauer, ao lado da
ideia de que a felicidade é impossível e de que a única coisa possível e
humanamente digna é uma vida heróica. Da transmutação de Nietzsche, em
ligação com a sua adoração da Vida forte e bela, sai aquele esteticismo
heróico, para cujo patrono ele proclama Diónisos, o deus da tragédia. É
precisamente este esteticismo dionisíaco que faz do Nietzsche dos
últimos tempos o maior crítico e psicólogo da Moral que a história do
Espírito conhece.
Ele nasceu para psicólogo, a Psicologia é a sua grande
paixão: Conhecimento e Psicologia são no fundo uma e a mesma paixão e é
símbolo de todas as íntimas contradições deste espírito grande e
sofredor o facto de que ele, para quem a Vida vale de longe muito mais
que o Conhecimento, tenha sido vencido pela Psicologia de maneira tão
completa e radical. Psicólogo é ele já só em virtude da ideia
schopenhauriana de que não é o intelecto que gera a vontade, mas, ao
contrário, de que o intelecto não é o primário nem o dominador, mas a
vontade, em relação à qual o intelecto está em posição meramente servil.
O Intelecto na qualidade de ferramenta subserviente da Vontade: é este o
manancial de toda a Psicologia, uma psicologia da suspeição e do
desmascaramento, e Nietzsche, como advogado da Vida, atira-se aos braços
da Psicologia da Moral, suspeita de todos os “bons” impulsos de origem
saídos dos maus e proclama os moralmente “maus” como nobres e
/ 27 /
vitalizantes. É esta a "transmutação de todos os valores".
O que outrora se chamava socratismo, "o homem teórico",
consciência, enfermidade histórica, chama-se agora pura e simplesmente
"Moral", especialmente "Moral cristã", que se revela algo de
inteiramente venenoso, rancoroso, anti-vital – e também não se deve
esquecer que a crítica moral de Nietzsche é algo de impessoal, comum a
toda a sua época. É a época da viragem do século, a época do primeiro
ataque da inteligência europeia à hipócrita Moral da época vitoriana e
burguesa: é aqui que se quadra a luta furiosa de Nietzsche contra a
Moral até um certo grau, e muitas vezes com Surpreendentes semelhanças
de família. É surpreendente observar o íntimo parentesco de muitas
ideias de Nietzsche com os ataques à Moral, de modo algum apenas vãos,
com os de Óscar Wilde, mais ou menos seu contemporâneo, o esteta inglês
que chocava e fazia rir o seu público.
Quando Wilde esclarece: "For, try as we may, we cannot
get behind the appearance of things to reality. And the terrible reason
may be that there is no reality in things apart from their appearances":
quando ele fala da "verdade das máscaras", e da "Decadência da mentira",
quando exclama: "To me beauty is the wonder o, wonders. It is only
shallow people who do not judge by appearances. The true mystery of the
world is the visible, not the invisible", quando ele chama à verdade
algo de tão pessoal que nunca se pode encontrar uma e a mesma verdade em
dois espíritos, quando ele
/ 28
/ diz “Every impulse that we strive to strangle broods in the mind,
and poisons us… The only way to get rid of a temptation is to yield to
it”, e “Don’t be led astray into the paths of virtue!” – tudo
isto poderia estar em Nietzsche.
E quando por outro lado neste se lê: «A gravidade, esse
inequívoco sinal da digestão mais difícil», – «A mentira santifica-se e
a vontade de enganar tem a boa consciência do seu lado.» – Somos
fundamentalmente inclinados a afirmar que os juízos mais falsos são para
nós os mais indispensáveis.» – «Já não é preconceito moral defender que
a Verdade vale mais do que a ilusão.» – nestas frases não há nenhuma que
não pudesse aparecer nas comédias de Wilde and get a laugh no
St. James’s Theatre. Se se quiser tecer muitos elogios às suas
peças, comparem-se com «The School for Scandal», de Sheridan.
Muito de Nietzsche parece ser originário desta escola.
É claro que a associação de Nietzsche com Wilde tem quase
qualquer coisa de sacrílego, pois este era um dandy, o filósofo
alemão, porém, um como que Santo do Imoralismo. E contudo o dandysmo
de Wilde ganha em hálito de santidade, – através do martírio mais ou
menos desejado do fim da sua vida, a penitência de Reading – que teria
despertado toda a simpatia de Nietzsche. O que o reconciliou com
Sócrates foi a taça de cicuta, o fim, o sacrifício, que ele considerava
de inestimável influência na juventude grega em Platão. E deixou que o
seu ódio ao Cristianismo Histórico não tocasse a figura de Jesus
/ 29 /
de Nazaré, de novo por causa do fim, da cruz, que ele amava do fundo
do coração e para que ele próprio conscientemente se
dirigiu.
A sua vida foi embriaguez e dor – uma situação altamente
artística, em termos mitológicos a União de Diónisos com o Crucificado.
Agitando o tirso, adorou em êxtase a Vida forte e bela, triunfante na
sua amoralidade, defendendo-a de todos os achaques infligidos pelo
Espírito –, e, como nenhum, prestou, ao mesmo tempo, homenagem à Dor. "O
nível de cada um", diz ele, "é definido pela capacidade de sofrimento".
Isto não são palavras de um anti-moralista. Nada há também de
anti-moralismo, quando ele escreve: "Pelo que diz respeito ao
sofrimento e à renúncia, deve medir-se a vida dos meus últimos anos com
a de um asceta de qualquer idade". Porque ele escreve isto não para
despertar piedade, mas com orgulho: "eu quero", diz ele, "sofrer
como ninguém". Procurou sofrimentos até à santidade, porque, no fundo, o
santo de Schopenhauer, ficou sempre para ele o tipo mais excelso e a
"vida heróica" é que é a vida do santo. O que é que define o santo? Que
ele não faz nada do que gostaria de fazer, mas faz o que não gostaria de
fazer. Assim viveu Nietzsche: "Renunciando a tudo o que venerava,
renunciando à própria veneração... Tornar-te-ás senhor sobre ti mesmo,
senhor sobre as tuas próprias virtudes". É o “número de
saltar por cima de si mesmo", de que Novalis fala uma vez e que ele acha
ser o mais alto de todos. Ora este número (uma expressão de
comediantes e
/ 30 /
acrobatas, nada tem em Nietzsche de perfeição travessa e de destreza de
bailarino. Tudo o que há de destreza de bailarino na sua atitude é
veleidade e torna-se desagradável ao máximo.
Mas é, pelo contrário, um corte sangrento na própria
carne, mortificação, moralismo. O seu mesmo conceito de verdade é
ascético: pois para ele é verdade o que causa dor e ele desconfiaria de
toda a verdade que lhe trouxesse algum bem. "Entre as forças" diz
ele, "que a Moral criou, estava a Verdade; esta acaba por voltar-se
contra a Moral, descobre a sua teleologia, o seu ponto de vista
interessado...". O seu "imoralismo" é portanto a auto-supressão da
Moral por impulso da Verdade. Mas ele dá a entender que isto é uma
espécie de excesso e de luxo da Moral, quando fala de uma riqueza
herdada de moralidade, que pode esbanjar e deitar pela janela fora muita
coisa, sem empobrecer muito com isso.
Tudo isto está por trás das atrocidades e ébrias
mensagens de poder, domínio, crueldade e logro político em que vai
degenerar com fulgor nos últimos escritos a sua ideia da Vida como obra
de arte e cultura irreflectida, dominada pelo instinto. Quando um
crítico uma vez escrevia que Nietzsche advogava a expressão de todos os
sentimentos decentes, enganava-se redondamente. "Muito agradecido!”
disse aquele ironicamente. Pois tinha dito isto tudo com uma intenção
muito generosa e filantrópica, no sentido de uma humanidade
/ 31 /
mais alta, mais profunda, mais orgulhosa e, por assim dizer, nem tal
coisa lhe tinha passado pela cabeça – pelo menos de mau embora bastante
de violento e malicioso. Porque tudo o que tem profundidade é violento e
malicioso; a própria Vida é profundamente maliciosa, não é inventada
pela Moral, ela nada sabe de "verdade", assenta pelo contrário na ilusão
e na mentira artística, escarnece da virtude; pois é essencialmente
perversidade e exploração – e, diz Nietzsche, há um pessimismo da força,
uma inclinação intelectual para o duro, o horrível, o malicioso, o
problemático da existência originados no bem-estar, na plenitude da
existência. Este "bem-estar", esta "plenitude da existência" atribui-os
a si mesmo o enfermo eufórico e faz coisa sua os aspectos da Vida até
então negados, negados pelo Cristianismo, e proclama-os como os seus
valores mais afirmativos. A Vida acima de tudo! Porquê? Isso nunca o
disse ele. Nunca indicou uma razão por que a Vida é algo de altamente
digno de se venerar e manter, mas só explicou que a Vida é superior ao
Conhecimento, pois que com a vida o próprio Conhecimento se aniquila.
Que ele ponha a Vida em primeiro lugar e esteja portanto interessado na
sua auto-conservação! Parece portanto que a Vida tem de existir, para
que haja objecto do Conhecimento. A nós, porém, parece-nos que esta
lógica não chega para explicar a sua entusiástica defesa da Vida. Se ele
vê nela a criação de um deus, não poderemos deixar de honrar a sua
devoção, ainda que pessoalmente se
/ 32 /
ache pouca ocasião para nos prostrarmos perante o universo explosivo da
física moderna. Ele vê nisso, porém, um maciço e absurdo produto da
vontade do domínio, perante cuja falta de lógica e colossal imoralidade
não podemos deixar de nos maravilhar.
O seu viva não é "Hossana!" mas “Evoe!" e o grito tem um
som extraordinariamente quebrado e atormentado. Ele negará que no homem
há qualquer coisa de ultra-biológico que não fica absorvido no interesse
pela Vida, a possibilidade de um apartamento deste interesse, uma
independência crítica, que é talvez a isto que Nietzsche chama Moral, e
que à adorada Vida não causará nada de verdadeiramente mau – para isso é
ela por de mais incorrigível –, mas pode actuar como leve correctivo e
"aguçador" de consciência, como o Cristianismo sempre o fez. "Não há
ponto fixo fora da Vida", diz Nietzsche, "a partir do qual se possa
reflectir sobre a existência, nenhuma instância perante a qual a Vida se
possa envergonhar". A sério que não? Tem-se a impressão de que sempre há
uma, e se ela não é a Moral, é pura e simplesmente o Espírito do homem,
a própria humanidade como crítica, ironia e liberdade, ligada à palavra
julgadora. "Então a Vida não tem sobre si nenhuma espécie de juiz?" Mas
no homem interpenetram-se de certa maneira a Natureza e a Vida, perdem
nele a sua inocência, recebem Espírito – e o Espírito é a
auto-critica da Vida. Esta coisa humana dentro de nós tem um dúbio olhar
de compaixão por uma «doutrina
/ 33 /
de saúde» da vida, que, ainda em dias mais sóbrios, se dirigia apenas
contra a doença histórica, mas que depois degenerou em fúria menédica
contra a verdade, a Moral, a religião, a humanidade, contra tudo o que
pode servir de sofrível domesticação do furor vital.
Segundo a minha opinião, são dois os erros que perturbam
o pensamento de Nietzsche e se lhe tornam fatais. O primeiro é um
completo e (tem de se aceitar) propositado desconhecimento da relação de
poder entre o instinto e o intelecto na terra, como se fosse este o
perigoso dominador e fosse absoluta necessidade salvar o instinto das
suas mãos. Quando nos lembramos de que, na grande maioria dos homens é a
vontade, o instinto e o interesse que dominam e oprimem o intelecto, a
razão e o sentimento de justiça, torna-se de certo modo absurda a ideia
de que se tem de vencer o intelecto por meio do instinto. Só
historicamente, de uma momentânea situação filosófica, como correctivo
de saturação racionalista, se pode esclarecer esta opinião e ela precisa
logo de contra-correctivo. Como se fosse preciso defender a Vida contra
o Espírito! Como se houvesse o menor perigo de que isto cá na terra se
tornasse demasiadamente dado a coisas do espírito!
A mais simples das generosidades bastaria para vigiar e
proteger a fraca chamazinha da razão, do Espírito, da Justiça, em vez de
se colocar ao lado do poder e da vida instintiva e de se comprazer
/ 34 /
numa sobre-estimação coribântica dos seus aspectos "negados", do crime,
– cuja imbecilidade nós, os de hoje, tivemos ocasião de viver. Nietzsche
parte do princípio – com o que causou muitas desgraças – de que
é a consciência moral que, como Mefistófeles, opõe à
vida o gelado punho de diabo
(7). Por minha parte,
não vejo nada de especialmente diabólico no pensamento (um velho
pensamento de místico), de que a Vida poderia ser suprimida pelo
espírito humano, – para o que se tem ainda tempo infindo. O perigo de
que a vida se aniquile a si mesma neste planeta, devido ao
aperfeiçoamento da bomba atómica – é coisa muito mais urgente. Mas
também isto é pouco provável. A Vida é uma gata mansarrona e também a
humanidade o é.
O segundo dos erros de Nietzsche é a relação
absolutamente falsa em que ele põe a Vida e a Moral, tratando-as como
contraditórias. A verdade, porém, é que estão intimamente ligadas. A
Ética é protecção da Vida, e o ser moral é um verdadeiro cidadão da
Vida, – talvez um pouco aborrecido, mas muito útil. Verdadeiramente
contraditórios são a Ética e a Estética. Não é a Moral, a Beleza é que
está condenada à morte, como muitos poetas disseram e cantaram, – e
Nietzsche havia de ignorar isto? "Quando Sócrates e Platão começaram a
falar de Verdade e de Justiça", diz ele uma vez, "já não eram gregos mas
judeus – ou não sei o quê". Ora os judeus, graças à sua moralidade,
provaram ser bons e perseverantes filhos da Vida. Com a
/ 35 /
sua religião, a sua crença num deus justo, sobreviveram aos séculos, ao
passo que o desleixado povinho de estetas e artistas que os gregos eram,
desapareceu muito cedo do palco da história.
Mas Nietzsche, longe de todo e qualquer anti-semitismo
racial, vê de facto no Judaísmo o berço do Cristianismo, com razão,
embora com horror, o germe da Democracia, da Revolução Francesa e das
odiadas "ideias modernas", que o seu vocabulário retumbante estigmatiza
de moral de rebanho. "Merceeiros, cristãos, vacas, marafonas,
ingleses e outros democratas", diz ele; porque ele vê na Inglaterra (os
franceses, segundo ele, foram apenas os seus soldados) a origem das
"ideias modernas" e o que ele despreza e amaldiçoa nestas ideias é o seu
utilitarismo e eudemonismo, a sua elevação da paz e felicidade terrena
aos mais altos anseios, – enquanto o homem nobre, trágico e heróico não
pode deixar de dar pontapés em valores tão infames e fracos. Este é
necessariamente um lutador, duro para si mesmo e para os outros, pronto
a sacrificar-se por si e pelos outros. A principal censura que ele faz
ao Cristianismo é de que este concedeu ao indivíduo uma tal importância,
que já se não podiam fazer sacrifícios. Mas, diz ele, a espécie
só é capaz de subsistir através do sacrifício humano e o Cristianismo é
o princípio contrário à selecção. Tal princípio, com efeito, tem
arruinado e enfraquecido a força, a responsabilidade, o alto dever de
imolar seres humanos e durante séculos até
/ 36 /
Nietzsche, impedido a génese daquela energia da grandeza que "por meio
de educação e também por meio da aniquilação de milhões de agitadores,
forma o homem futuro e não se aniquila com a dor sem precedentes que ele
gera."
Quem é que há pouco possuiu a força suficiente para essa
responsabilidade, a ousadia de se atribuir essa grandeza e o alto dever
de imolar seres humanos em hecatombes, sem quaisquer hesitações? Uma
corja de pequenos burgueses megalómanos, que só de a ver Nietzsche teria
sofrido imediatamente um fortíssimo ataque de migrena, acompanhado de
todos os sintomas concomitantes. Mas ele não passou por isto. Depois da
guerra à moda antiga de 1870, de chassepot e de espingarda de
acendedor, ele não voltou a passar por outra guerra e pode portanto, por
puro ódio à filantropia cristã-democrática, regalar-se com a
glorificação da guerra – que hoje nos parece palavrório de um garoto
exaltado. Parece-lhe demasiado moral que a guerra santifique a boa
causa: é a boa guerra que santifica toda a causa. "A valorização, com a
que são hoje julgadas as diferentes formas da sociedade", escreve ele,
"concorda precisamente com aquela que adscreve à paz um valor mais alto
do que à guerra: mas tal juízo é anti-biológico, é ele próprio um
produto da decadência da Vida... A Vida é uma consequência da guerra, a
própria sociedade um meio para a Vida.". Não se pensa porém que talvez
não fosse mau tentar fazer da sociedade algo diferente
/ 37 /
de um meio para a guerra.
Ela é um produto da natureza que, como a própria Vida,
assenta em pressupostos morais, atentar contra os quais equivaleria a
um pérfido ataque à Vida. "Renunciou-se à grande Vida", exclama ele,
"quando se renunciou à guerra". À Vida e à Cultura; porque esta, para
ser refrescada, precisa de recaídas profundas na barbárie, e é vã
cegueira esperar da humanidade ainda alguma coisa em relação à cultura e
à grandeza, quando ela desaprendeu a fazer a guerra. Ele despreza toda a
tacanhez nacionalista. Mas este desprezo é manifestamente privilégio
esotérico de apenas alguns, porque ele descreve erupções de êxtase
nacionalista de poder e de sacrifício com um entusiasmo que não deixa
dúvidas de que ele deseja que os povos, as massas, conservem a "poderosa
quimera" do nacionalismo. Aqui, é preciso intercalar uma coisa. Diz-nos
a própria experiência que tal se pode tratar de absoluto pacifismo,
talvez de uma coisa mais que problemática, enganosa e infame. Durante
anos, não foi ele na Europa e no mundo mais do que a máscara de
simpatias fascistas e foram verdadeiros pacifistas os que sentiram a paz
de Munique, que em 1938 as democracias fizeram com o fascismo,
aparentemente para poupar a humanidade à guerra, e a consideraram o
ponto mais alto da história europeia. A guerra contra Hitler, ou antes o
estado de prevenção para ela, que teria bastado, foi desejado por estes
pacifistas. Se se puserem diante dos olhos – e a
/ 38 /
coisa está mesmo à vista! – os enormes estragos, em todo o sentido da
palavra, que produz uma guerra levada em prol da humanidade, a enorme
desmoralização, o enorme desencadeamento de instintos cobiçosamente
egoístas e anti-sociais; quando, instruídos pelo que já se passou,
fazemos uma imagem aproximada do que a terra será – seria – depois da
terceira guerra mundial, nessa altura as bazófias de Nietzsche sobre a
função mantenedora de cultura e selectiva da guerra, parecem fantasias
de um inexperiente, filho de uma longa época de paz e de segurança com
"fundos tutelares" que a si próprio se começa a aborrecer.
Como ele de resto prevê, com espantoso pressentimento
profético, uma sequência de guerras e explosões monstruosas, a
verdadeira idade clássica das guerras, "para que os vindouros olharão
com inveja e veneração", não para que a degeneração e adulteração sejam
ainda tão perigosas e não se percebe o motivo por que ela tem ainda de
ser encorajada filosoficamente a uma carnificina selectiva. Quer esta
filosofia eliminar os escrúpulos morais que porventura atravanquem o
caminho para os futuros horrores? Quer ela preparar a humanidade para o
esplendoroso futuro que a espera? Mas ela fá-lo de maneira voluptuosa
que – talvez contra a primitiva intenção, desperta o nosso protesto
moral, e pelo contrário nos causa dor e temor pelo nobre espírito que
aqui se enfurece contra si mesmo. Ultrapassa-se dolorosamente a mera
educação para a virilidade, quando formas medievais de
/ 39 /
tortura se enumeram, descrevem e aconselham com um aprazimento que
deixou vestígios na contemporânea literatura alemã. Tocam-se as raias do
infame quando, "para consolação dos efeminados", é dada para considerar
a diminuta capacidade das raças inferiores, por exemplo a dos negros. E
quando depois se ergue o cântico da "besta loura", "o monstro
exultante", o tipo de ser que "regressa com orgulho da terrível série de
assassínios, fogos, violações, torturas, como se acabasse de fazer uma
partida de estudantes", então está completa a imagem do sadismo
infantil, e a nossa alma contorce-se de dor.
É o romântico Novalis, portanto, um espírito da família
de Nietzsche, que deu desta atitude de espírito a crítica mais
concludente. "O ideal da moralidade", diz ele, "não tem rival
mais perigoso do que o ideal da força mais aIta, da vida mais
poderosa, a que também se chamou ideal da grandeza estética. (O que
no fundo é muito certo, mas tem uma intencionalidade muito errada).
Ele é o máximo do bárbaro e nestes tempos de cultura selvática ganhou
infelizmente muitíssimos adeptos entre os mais efeminados. Por meio de
este ideal, o ser humano torna-se espírito animalesco, uma mescla da
graça brutal tem precisamente uma brutal força de atracção sobre os
efeminados."
Não se trata de exageros. Conheceu Nietzsche este passo?
Tal não se pode pôr em dúvida. Mas não se deixou perturbar por ele nas
suas provocações do "ideal da moralidade", que são ébrias,
conscientemente
/ 40 /
ébrias e que, portanto, não foram feitas intencionalmente a sério, no
fundo. Aquilo a que Novalis chama o ideal da grandeza estética, o máximo
do bárbaro, o homem como espírito animalesco é o Super-homem de
Nietzsche e ele descreve-o como “a segregação de um excesso de luxo da
humanidade, em que se revela uma espécie mais forte, um tipo mais alto,
que tem condições de génese e de recepção diferentes das do homem médio.
"São os futuros senhores da terra, o esplendoroso tipo de tirano que a
Democracia criou a tempo e que também acaba por a usar como seu
instrumento, a sua nova moral ligada de uma maneira maquiavélica à
vigente lei moral, sob cujas palavras se tem de implantar. Pois que esta
horrível utopia de grandeza, força e beleza é mentira que agrada mais do
que a verdade o diz – para ela exige-se mais espírito e vontade.
O Super-homem é o homem "em que as específicas qualidades
da Vida – a injustiça, a mentira, a exploração, existem em maior grau".
Seria o cúmulo da falta de humanidade ir ao encontro
destas provocações agudas e atormentadas com troças e berros – e
rematada estupidez recebê-las com indignação moral. Temos perante nós um
destino de Hamlet, um destino trágico de um conhecimento que passa pela
força, que inspira veneração e piedade. "Creio", diz Nietzsche uma vez,
"que decifrei algo da alma do homem superior – talvez pereçam todos
/ 41 /
os que o decifram".
Por isso ele pereceu e muitíssimas são as atrocidades do
seu ensinamento de dor lírica infinitamente comovedora, perpassadas de
profundos olhares de amor, de sons de melancólica saudade do rocio do
amor para a ressequida e árida terra da sua solidão, mais do que o
escárnio e a aversão perante tal imagem de Ecce-homo deveriam ousar. Mas
a nossa veneração vê-se certamente um pouco embaraçada, quando o
"socialismo da casta subjugada”, por Nietzsche milhentas de vezes
escarnecido e denunciado como ódio venenoso à vida mais alta, nos aponta
que o seu Super-homem não é mais do que a idealização do Führer fascista
e que ele mesmo, com todo o seu filosofar é um pioneiro, co-criador e
inspirador de ideias do fascismo europeu e mundial. Cá para mim, sou
inclinado a inverter aqui a causa e o efeito e a não crer que foi
Nietzsche que fez o fascismo, mas o fascismo a ele, – isto é: no fundo
longe de políticas e espiritualmente inocente, pressentiu ele, como
vibrante agulha de instrumento de expressão e de registo ,com o seu
filosofema de poder, o Imperialismo crescente e a época fascista do
Ocidente em que vivemos e que, apesar da vitória militar sobre o
fascismo, ainda durante muito tempo continuaremos a viver.
Como pensador saído da burguesia desde o princípio com
todo o seu ser, parece que ele afirmou os componentes fascistas da época
pós-burguesa e negou os socialistas, porque esta era a época moral e
/ 42 /
porque ele confundia Moral com moral burguesa.
Mas a sua sensibilidade não se pôde furtar à influência
do elemento socialista no futuro e é isto que desconhecem os
socialistas, que lhe chamam enganadamente fascista pur sang. Não
é assim tão fácil esta simplificação, traga-se o que se trouxer em sua
defesa. O que é verdade é que o seu heróico desprezo pela felicidade,
que era uma coisa de uso muito pessoal e politicamente de mau uso, o
induziu a ver em todo o desejo de se acabar com os inconvenientes
sociais e económicos mais desonrosos da dor evitável na terra, a
desprezível ânsia pelas "verdes pastagens de felicidade dos animais
de rebanho". Não foi em vão que se traduziu para italiano a sua
expressão da "vida perigosa" e se a introduziu no linguajar do fascismo.
Tudo o que ele, em grande estado de excitação, disse contra a Moral, a
humanidade, a compaixão, o Cristianismo e em favor da bela perversidade,
a guerra, o Mal, foi infelizmente apropriado para ter o seu lugar no
lixo ideológico do fascismo e aberrações do género da sua "moral para
médicos", com a prescrição da morte dos doentes e da castração dos
inferiores, a sua ideia da necessidade da escravatura, além de muitas
das suas prescrições de higiene racial com respeito à selecção, educação
e casamento passaram de facto, talvez sem relação consciente com
Nietzsche, para a teoria e prática do nacional-socialismo.
Se é verdade que "pelos seus frutos os conhecereis", a
coisa
/ 43 /
está mal para Nietzsche. Em Spengler, o seu esperto macaco de imitação,
o senhor dos seus sonhos tornou-se o moderno "homem de acção de grande
estilo", o homem rapace e ávido que caminha sobre cadáveres, o magnata
de dinheiro, industrial de armamento, director geral alemão, que
financia o fascismo – em suma: nele, Nietzsche converte-se, em tacanha
evidência, em patrono filosófico do Imperialismo, – de que ele em
verdade não percebeu nada.
(8) Como teria ele de resto podido mostrar a cada passo o seu
desprezo pelo espírito de comerciante e de merceeiro, que ele tem por
pacifista, e lhe teria podido opor elogiosamente o espírito do
militarismo? A aliança de industrialismo e militarismo, a sua unidade
política, de que é feito o Imperialismo e de que é o espírito do lucro
que faz a guerra – isto é que o seu "radicalismo aristocrático" não viu.
Não nos devemos afinal deixar enganar: o fascismo como ópio para as
massas, como coisa extrema do populacho e como mais miserável
desinteresse pela cultura que jamais existiu é profundamente estranho ao
espírito daquele, para quem tudo se movia em torno da pergunta "o que é
nobre?"; o fascismo é completamente alheio à sua concepção e foi o mais
grosseiro dos erros, que a burguesia alemã tenha confundido o surto nazi
com sonhos nietzschianos de barbárie renovadora da cultura. Não falo já
da sua ignorância propositada e desdenhosa de todo o anti-semitismo e de
todas as patranhas rácicas. Mas repito que a parte socialista na sua
visão da vida
/ 44 /
pós-burguesa é tão forte como aquela a que se pode chamar fascista. De
que se trata então, quando Zaratustra exclama?: "Conjuro-vos, meus
irmãos, permanecei fiéis à terra! Não meteis mais a cabeça na areia das
coisas celestes, mas trazei-a em liberdade, uma cabeça de terra, que dê
sentido à terra!... Devolvei-me imediatamente a evaporada virtude da
terra – sim, devolvei-a ao amor e à vida: para que ela lhe dê um
sentido, um sentido humano!"? Trata-se do desejo de perpassar o material
com o humano, do materialismo do espírito, trata-se do socialismo.
O seu conceito de Cultura tem aqui e ali uma tonalidade
fortemente socialista, em todo o caso já não burguesa. Vira-se contra a
separação existente entre cultos e incultos e o seu Wagnerismo da
juventude quer dizer sobretudo isto: o fim da cultura da Renascença,
essa idade áurea da burguesia, uma arte para grandes e pequenos,
nenhumas grandes bem-aventuranças que não fossem comuns ao coração de
todos.
Tal não dá testemunho de uma inimizade ao trabalhador, dá
testemunho do contrário, quando ele diz: "os trabalhadores hão-de
aprender a sentir-se soldados: um honorário, um ordenado, mas nada de
remunerações. Hão-de viver um dia como agora os cidadãos; mas por
cima deles, assinalando-se pela sua simplicidade, a casta mais
alta, portanto mais pobre e mais simples, mas na posse do poder." E
ele deu
/ 45 /
singulares provas de tornar a posse mais moral: "Que se mantenham todos
os ramos de trabalho abertos às pequenas propriedades" diz ele, "mas que
se impeça o enriquecimento fácil e repentino, que se tirem todos os
ramos do transporte e do comércio, propícios à acumulação de grandes
riquezas, portanto o comércio de dinheiro, das mãos dos particulares e
das sociedades particulares – e que se considerem tanto o que tem de
mais, como o que nada possui, como seres perigosos ao bem comum." O que
nada possui, na qualidade de besta ameaçadora aos olhos dos pequenos
capitalistas filosóficos: isto tem a sua origem em Schopenhauer. O
perigo do grande proprietário, aprendeu-o Nietzsche depois.
Por volta de 1875, há mais de setenta anos, profetizou
ele, não propriamente com entusiasmo, mas simplesmente como consequência
da Democracia vitoriosa, uma união europeia de povos, "em que
cada um dos povos, separados segundo conveniências geográficas,
constituía um cantão e gozava dos respectivos direitos especiais". Na
altura, a perspectiva é ainda meramente europeia. No decurso do decénio
seguinte estende-se até ao global e ao universal. Ele fala de dominação
total da economia da terra, inevitavelmente iminente. Apela para o maior
número possível de poderes internacionais – “a fim de estudarem a
perspectiva mundial”. Vacila a sua crença na Europa. "Os europeus, no
fundo, imaginam que representam presentemente o ser humano mais elevado
/ 46 /
sobre a terra. Os asiáticos são mil vezes superiores aos europeus." Por
outro lado acha possível que, no mundo do futuro, a influência
espiritual poderia estar nas mãos do europeu típico, uma síntese do
passado europeu no mais alto tipo espiritual. "O domínio da terra –
anglo-saxónico. O elemento alemão um bom fermento que desconhece a arte
de dominar".
Depois vê a interpenetração das raças alemã e eslava e a
Alemanha como uma estação pan-eslávica, que prepara o caminho a uma
Europa pan-eslávica. O surgimento da Rússia como poder mundial é-lhe
completamente claro: "O poder partilhado por eslavos e anglo-saxónicos,
e a Europa como a Grécia sob a dominação de Roma."
Para uma excursão na política mundial, empreendida por um
espírito que, no fundo, só está empenhado na tarefa da Cultura, produzir
o filósofo, o artista e o santo – tal são resultados surpreendentes.
Sobre aproximadamente um século, ele vê mais ou menos o que nós hoje
vemos. Porque o mundo, uma nova imagem do mundo que a si mesma se forma
é uma unidade, e para que lado tão enorme excitabilidade se volta e
inclina, sente-a o Novo, o Futuro e anuncia-o. De uma maneira
completamente intuitiva, Nietzsche antecipa conclusões da física moderna
com o seu combate contra a interpretação mecanicista do mundo, a sua
negação de um mundo determinado por causas, da clássica "lei natural",
do retorno de casos idênticos. "Não existe segunda vez”. Nada
/ 47 /
permite calcular que, a uma determinada causa, se tenha de seguir um
determinado efeito". É errada a interpretação de um acontecimento por
causa e efeito.
Trata-se de uma luta entre dois elementos diferentes, um
novo arranjo de forças, em que o novo estado é algo de fundamentalmente
diferente do antigo, de modo algum o seu efeito. Dinâmica em vez de
Lógica ou de Mecânica, portanto. “Os pressentimentos
científico-naturais” de Nietzsche, para empregar uma frase de Helmholtz
sobre Goethe, são espiritualmente tendenciosos, querem qualquer coisa,
dependem do seu filosofema de domínio, do seu anti-racionalismo e servem
a sua elevação da Vida sobre a lei, – porque a lei como tal, tem já
qualquer coisa de “moral". Mas seja qual for a opinião actual acerca
desta tendência – perante a ciência, para que a "lei" no entretanto
enfraqueceu até à mera verosimilhança e se tornou muito incerta quanto
ao conceito de causalidade – ele continuou a ficar com razão.
Como todos os pensamentos que teve, entra ele, com as
suas concepções sobre Física, oriundas do mundo burguês de racionalidade
clássica, num mundo novo em que ele próprio é o mais estranho, devido à
sua origem. Um socialismo que não quer ver isto nele, levanta a
suposição de que ele pertence muito mais à burguesia, do que ele próprio
sabe. Deve-se renunciar à interpretação de Nietzsche como aforista
/ 48 /
sem núcleo: a sua filosofia é, como a de Schopenhauer, um sistema
organizado, desenvolve-se de um único pensamento fundamental que tudo
prepara. Mas este pensamento fundamental de partida é realmente de
radical espécie estética, – pelo que só a sua visão e pensamento tem de
entrar em irreconciliável oposição em relação ao socialismo, Em última
análise, só há duas maneiras de ver as coisas, duas atitudes íntimas: a
estética e a moralística e o socialismo é mundividência rigorosamente
moral. Nietzsche, pelo contrário, é o esteta mais completo e acabado que
a História do Espírito conhece e os mais perfeitos os pressupostos que o
seu pessimismo dionisíaco em si contém: aplica-se com exactidão a ele, à
sua vida, à sua obra filosófica e literária o facto de que a Vida só se
pode justificar como fenómeno estético, – só como fenómeno estético se
pode justificar, compreender, venerar, consciente até à
auto-mitologicação do último momento e até à loucura, é esta vida uma
representação artística, não só segundo a maravilhosa expressão, mas
segundo o seu mais íntimo ser, – um espectáculo lírico-trágico da mais
alta fascinação.
É bastante estranho, embora se compreenda bem, que a
primeira forma em que o espírito europeu se rebelou contra toda a moral
da idade burguesa fosse o Esteticismo. Não foi em vão que nomeei ao
mesmo tempo Nietzsche e Wilde – como revoltados e mais como revoltados
em nome da razão, ficam bem juntos, embora a revolta do iconoclasta
/ 49 /
alemão tenha sido muito mais profunda e tenha custado muito mais dor,
renúncia e auto-domínio. Bem tenho lido que em críticos socialistas,
nomeadamente nos russos, as ideias e os juízos estéticos de Nietzsche
são muitas vezes de admirável fineza, mas que em coisas moral-políticas
ele é um bárbaro. Esta distinção é ingénua, pois que a glorificação
nietzschiana do barbárico não é mais do que um excesso da sua ebriedade
estética e na verdade trai uma vizinhança, sobre a qual temos todas as
razões para meditar: precisamente a vizinhança do Esteticismo e da
Barbárie. Esta sinistra proximidade ainda não foi vista, sentida e
temida pelos fins do séc. XIX, – caso contrário Georg Brandes, judeu e
escritor liberal, teria descoberto o "radicalismo aristocrático" do
filósofo alemão como nova tonalidade e teria podido dar lições de
propaganda sobre isso: Um sinal do sentimento de segurança que então
ainda reinava, o desassossego da época burguesa que estava a terminar, –
mas também um sinal de que o esperto crítico dinamarquês não levava a
sério, nem sequer aceitava, o barbarismo de Nietzsche, o compreendia
cum grano salis, – no que tinha toda a razão.
Do Esteticismo de Nietzsche, que é uma furiosa negação do
Espírito em favor da Vida bela, forte e perversa, a auto-negação,
portanto, de um homem que tem uma vida de profundo sofrimento, vem
qualquer coisa de impróprio, de irresponsável, de inseguro, de
brincadeira
/ 50 /
apaixonada, para as suas efusões filosóficas, um elemento de profunda
ironia, onde a compreensão do leitor mais simples tem de naufragar. O
que ele oferece não é só arte – e também é necessário arte para o ler e
não são permitidas faltas de agudeza interpretativa e interpretações
rígidas, mas exigem-se manha, ironia e reserva para o ler. Quem leva
Nietzsche "a sério", literalmente, quem acredita nele, está perdido.
Com ele passa-se, na verdade, o que se passa com Séneca,
a quem Nietzsche chama um verdadeiro homem, – a quem se deve dar sempre
o ouvido, mas que nunca se deve crer "de alma e coração". Serão precisos
exemplos? Talvez o leitor do "Caso Wagner" não confia lá muito nos seus
olhos quando lê de repente, numa carta ao músico Carl Fuchs, do ano de
1888: "Não deve levar a sério o que digo sobre Bizet; tal como sou,
Bizet não me interessa de maneira nenhuma. Mas como antítese irónica em
relação a Wagner, actua de maneira muito forte...". Fica como conversa
"entre nós" o arrebatado louvor à "Carmen" no caso Wagner. Isto é
assombroso, mas ainda não é tudo. Numa outra carta ao mesmo
destinatário, dá-lhe ele conselhos sobre a melhor maneira de escrever
sobre si mesmo como psicólogo, escritor, imoralista: tal consiste em não
decidir com não e sim, mas em caracterizar em neutralidade
espiritual. «Não é de modo algum necessário, nem sequer desejado, tomar
partido por mim: pelo contrário, uma dose de curiosidade
/ 51 /
como perante uma planta exótica, com uma resistência irónica,
parecer-me-ia uma atitude incomparavelmente mais inteligente. Perdão!
Afinal estou a escrever uma série de ingenuidades – uma receita para se
extrair com felicidade alguma coisa de um todo impossível…»
Já alguma vez algum autor pôs os seus leitores de
sobreaviso contra si mesmo, de maneira tão estranha?
"Anti-liberal" até à maldade, chama-se ele a si mesmo.
Anti-liberal por maldade, por ímpeto de
provocação, estaria mais certo. Quando em 1888 morre o imperador dos cem
dias, Frederico llI, o liberal casado com uma inglesa, fica Nietzsche
movido e deprimido, como todo o liberalismo alemão. «Por fim era ele uma
luzinha cintilante de pensamento livre, a última esperança da Alemanha.
Agora começa o regime – Stöcker: – tiro as consequências e já sei que,
doravante, a minha «Vontade do Domínio» será confiscada, em primeiro
lugar, na Alemanha...».
Ora nada é confiscado. O espírito da época liberal é
ainda muito forte, tudo se pode dizer na Alemanha. No luto de Nietzsche
por Frederico, porém, aparece espontaneamente algo de muito simples e
não paradoxal – pode dizer-se então quase manifesta a verdade: o amor
natural do intelectual, do escritor pela liberdade, que é o seu
ar vital, – e de repente toda a fábrica de fantasia sobre escravatura,
/ 52 /
guerra, domínio e magnífica crueldade fica muito longe, à luz de um jogo
irresponsável e de uma teoria de cores berrantes.
Durante a sua vida, ele amaldiçoou o "homem teórico", mas
ele mesmo é este homem teórico par excellence e, em termos de
pura cultura, o seu pensamento é absoluta genialidade, de maneira
extrema, não pragmático, sem qualquer responsabilidade pedagógica, sem
qualquer intuito político, em boa verdade nenhuma relação tem com a Vida
amada, defendida e colocada sobre tudo, e nunca se preocupou ao mínimo
com os resultados das suas doutrinas na realidade prática e política.
Tal não pensaram também os milhares de mestres do irracionalismo, que à
sua sombra, por toda a Alemanha, brotaram do chão como cogumelos. Nem
admira. Porque no fumo do ser alemão, nada podia ser mais agradável do
que o seu teoreticismo estético. Também contra os alemães, esses
depravadores da história europeia, arremessou ele as suas acres faíscas
críticas e acabou por não lhes deixar nenhum cabelo. Mas quem era afinal
mais alemão do que ele, quem ensinou tudo mais uma vez aos alemães de
maneira exemplar, com o que eles se tornaram a fatalidade e o terror do
mundo e se condenaram a si mesmos: a paixão romântica, o ímpeto para o
eterno desdobramento do eu até ao ilimitado sem objecto fixo, a vontade,
que é livre, porque não tem alvo e atinge o infinito? Como vícios dos
alemães, indicou ele a bebedeira e a tendência para o suicídio. Que o
perigo que constituem está em tudo o que liga as forças
/ 53 /
da razão e desencadeia os afectos, «porque o afecto alemão dirige-se
contra o proveito próprio e é auto-destruidor como o do beberrão. O
próprio entusiasmo tem menos valor na Alemanha do que em qualquer outra
parte, porque é infrutífero». – Como se chama Zaratustra a si mesmo?
«Auto-conhecedor – Auto-carrasco.»
Em mais de um sentido, Nietzsche tornou-se histórico. Fez
história, uma terrível história, e não exagerava quando se chamava "um
destino". Exagerou esteticamente a sua solidão.
Na verdade, como extrema figura alemã, ele pertence a um
movimento geral do Ocidente, que conta entre os seus nomes como
Kierkegaard, Bergson e muitos outros e que é uma revolta contra a
clássica crença na razão dos sécs. XVIII e XIX. Tal movimento
desempenhou a sua função – ou só não a acabou completamente, na medida
em que a sua necessária continuação é a reconstituição da razão humana
sobre um novo fundamento, a conquista de um conceito de humanismo que
ganhou em profundidade, em relação ao presunçosamente trivial da época
burguesa.
A defesa do instinto contra a razão e a consciência era
uma correcção do tempo. A correcção duradoura, eternamente necessária
continua a ser a da vida pelo espírito – ou a Moral, se se quiser. Como
a romantização nietzschiana do Mal nos parece hoje tão própria do seu
tempo, tão teorética, tão inexperiente!
/ 54 /
Conhecemos isto em toda a sua miserabilidade e já não
somos suficientemente estetas para temer declarar-nos partidários do
Bem, para nos envergonharmos de conceitos e "clichés" tão
triviais como verdade, liberdade, justiça. Finalmente, pertence à época
burguesa o próprio Esteticismo, sob cujo signo os espíritos se voltaram
contra a época burguesa, e ultrapassá-la é sair de uma época estética e
entrar numa época moral e social. Uma mundividência estética é pura e
simplesmente incapaz de acertar os problemas cuja solução nos cabe, –
tanto contribuiu o génio de Nietzsche para criar a nova atmosfera. De
uma vez, exprime ele a suposição de que no mundo futuro da sua visão, as
forças religiosas poderiam tornar-se ainda suficientemente fortes para
constituírem uma religião ateísta à Buda, que anularia as diferenças
entre as confissões – e a Ciência nada teria contra um novo ideal.
«Mas não será amor à humanidade», acrescenta ele
cuidadosamente. – E se viesse a ser precisamente isso? Não era preciso
que se tratasse do amor optimístico – idílico ao "género humano", a que
o século XVIII consagrou centenas de doces lágrimas e a que os costumes
estão devedores de enormes progressos. Mas quando Nietzsche anuncia:
«Deus morreu» – uma conclusão que significava para ele o mais pesado de
todos os sacrifícios – em homenagem a quem, em louvor de quem faz ele
isto, que não seja em homenagem e louvor do homem? Se ele era
/ 55 /
ateu, se o conseguiu ser alguma vez, era-o por amor à humanidade – ainda
que esta expressão tenha um tom bucólico – sentimental. Tem de gostar
que se lhe chame humanista, como tem de tolerar que se conceba a sua
crítica da Moral como uma última forma de Iluminismo. A religiosidade
supra-confessional de que ele fala, não a posso imaginar de outra
maneira a não ser ligada à ideia do homem, um humanismo de fundamentos e
matizes religiosos, que, passado por muitas experiências, pusesse todo o
conhecimento acerca do Mais Profundo e do Demoníaco na sua homenagem ao
mistério humano.
Religião é veneração, – primeiro de tudo veneração
perante o mistério que o homem é. Enquanto se discutir sobre uma nova
ordem, novos compromissos, a adaptação da sociedade humana às exigências
da hora presente, pouco se faz certamente com conclusões de
conferências, medidas técnicas, instituições jurídicas e o World
Government continua a ser uma utopia racional. O que é necessário
primeiro de tudo é a transformação do clima espiritual, um novo
sentimento da dificuldade e da nobreza da existência humana, uma
mentalidade fundamental que domine tudo, a que ninguém se subtraia, que
cada um reconheça dentro de si como juiz. Em favor da sua génese e
consolidação, pode o poeta e artista fazer alguma coisa, abrindo caminho
desde lá de cima ao mais profundo. Mas ela não é ensinada e feita, é
vivida e sofrida.
O saber e exemplo de Nietzsche foi que a Filosofia não é
fria
/ 56 /
abstracção, mas vivência, sofrimento e sacrifício pela humanidade. Por
isto ele tem sido impelido aos gelos do cume do erro grotesco, mas o
futuro é que era a terra do seu amor, e aos vindouros, como a nós, cuja
juventude lhe agradece tantas coisas, ele aparecerá como uma figura de
delicada e venerável tragédia, circundada pelo brilho das faíscas desta
viragem dos tempos.
Traduzido de: "Neue Studien", p. 105-159: "Nietzsches
Philosophie im Lichte unserer Erfahrung". |