O
trabalho de reconversão da tese de André Ala dos Reis teve o condão de me
fazer recuar aos tempos de estudante em Coimbra. Só não nos encontrámos
na mesma faculdade, porque entre nós houve uma diferença de nove anos.
Quando fui obrigado a ir viver para esta cidade, durante um curto
período de cerca de seis anos, já ele estava de regresso a Aveiro. E,
nove anos depois, andava também eu ocupado na pesquisa de dados para a
minha tese. Não fui viajar pela Alemanha, como ele teve de fazer, mas
andei durante cerca de um ano e meio a percorrer toda a metade norte de
Portugal, para recolher os elementos para a Dissertação de Licenciatura
na área da Linguística e Etnografia. Dois anos antes, andara durante o
período de férias grandes (nesta época ainda havia férias grandes, desde
meados de Julho até 7 de Outubro) em Aveiro, a percorrer os «Estados
Unidos das Gafanhas» e a passar diversos dias na companhia do Ti Manel
Melro, um lavrador abastado da Gafanha do Carmo, meu informador
principal. E como, anos antes, pouco mais ou menos por altura do meu
nascimento, um certo padre publicara uma Monografia da Gafanha, o
meu orientador e professor de Linguística, o Professor Doutor Manuel de
Paiva Boléo, interessado pela pequena monografia que tinha elaborado
para a cadeira dele, sugeriu-me para licenciatura o estudo de todas as
Gafanhas. Poderia, deste modo, obter um trabalho mais completo do ponto
de vista linguístico e etnográfico, tendo como termo de comparação um
trabalho publicado umas décadas antes, que ele bem conhecia. Tal só não
aconteceu, porque se abriram outros horizontes, muito mais vastos e
ambiciosos, abrangendo o nosso País, com muitas semelhanças com outros
da bacia mediterrânica.
Dez anos depois, já recolhidos todos os dados e com o espectro da tropa
e da guerra a dizer-me que tinha de me despachar, passei por uma fase
idêntica à do André: redigir e imprimir a tese, para apresentação e
conclusão da licenciatura. É certo que, naquela altura, já não
necessitava de me dar ao trabalho de redigir e defender a tese, porque
as teses de licenciatura tinham sido abolidas em Portugal, bastando
fazer a última cadeira do curso para ficar com ele completo. No fundo,
quem sabe, foi esta medida uma caminhada rumo ao facilitismo, como que
pressagiando os tempos actuais, em que se conseguem licenciaturas sem
frequentar cursos e com cadeiras obtidas por correspondência, até mesmo
aos fins de semana, sem sequer se chegar a conhecer os professores das
respectivas disciplinas. Uma filiação no partido certo, umas ajudas de
amigos bem posicionados da mesma cor política, e conseguem-se as
licenciaturas, não sabemos bem em quê, sem necessidade de passar anos a
queimar as pestanas com a leitura de disciplinas cansativas e que não
nos servem para ganhar dinheiro fácil.
Já com centenas de inquéritos efectuados e a tese praticamente redigida
e frequentemente a ouvir o meu mestre, o Doutor Paiva Boléo, a
lembrar-me que «o óptimo é inimigo do bom» e, sobretudo, que não podia
ocupar muito mais tempo, porque poderia de um momento para o outro ser
chamado para o serviço militar e ficava com tudo perdido, entrei na fase
final: a de imprimir e apresentar os diferentes volumes da tese na
Faculdade de Letras.
Nesta época, em que «computador» era uma palavra praticamente
desconhecida e «fotocopiador» era também outro palavrão ainda não
existente nos dicionários, o nosso meio de impressão de baixo custo, sem
recurso a tipografias, era a utilização do stencil e de uma boa
máquina de escrever.
O amigo André, que só conheci indirectamente passados diversos anos após
o seu desaparecimento da face da Terra, ao contrário de mim, recorreu ao
método mais fácil, mas também mais oneroso, talvez porque não tivesse
máquina de escrever ou não a soubesse utilizar. Quem lhe digitou em
stencil e lhe imprimiu todo o texto foi um dos diferentes
«sebenteiros», que em Coimbra tinham este modo de vida. Tal como se
encontra na última página da tese do André, o seu trabalho sobre THOMAS
MANN foi «Dactilografado por MÁRIO DA SILVA E SOUSA, residente na Fonte
da Cheira, no Calhabé, em Coimbra, e cujo telefone era o 23879.»
Para as gerações actuais, em que os computadores e os telefones
portáteis, com características quase idênticas aos computadores, nos
permitem, inclusive, ver com quem falamos e ocupar alguns momentos de
ócio a ver o correio electrónico ou a fazer uns joguitos (algo quase do
outro mundo, se o André de repente voltasse a este!) em que os jovens,
em vez de darem uns bons chutos na bola e conviverem uns com os outros
em jogos que os adestrariam fisicamente, se sentam muito quietos a olhar
para o pequeno ecrã e a dar aos dedos sobre minúsculas teclas ou
directamente sobre o ecrã táctil, publicar um livro sem computador e sem
fotocopiadores parece uma coisa bastante estranha, algo desconhecido,
algo tão estranho como os utensílios do período da pedra lascada.
As pessoas da minha geração, os que frequentaram os Liceus e também os
mesmos transformados em Escolas Secundárias, ainda se lembram bem dos
testes e das fichas de trabalho que lhes eram apresentados manuscritos
ou dactilografados em stencil. Estas gerações não têm dificuldade
em identificar uma publicação em formato A4, como eram as nossas teses
de licenciatura, que, depois de cortadas na guilhotina e encadernadas,
ficavam com as dimensões de 25 x 20,5 centímetros, com uma mancha
textual com linhas em espaço duplo, ocupando cerca de 19 x 13,5
centímetros. Como nas máquinas tradicionais de escrever não existem as
modernas facilidades de escrita, com letras em negrito, em itálico, ou
com outras formas de destaque, a solução era recorrer ao sublinhado,
pelo que existiam regras precisas. Estou agora a lembrar-me de uma das
fornecidas pelo meu orientador. Nunca esquecer que os títulos das obras,
porque não existe o itálico nas máquinas de escrever, devem ser
registados com sublinhado. E os títulos das revistas e periódicos
deverão ser colocados entre aspas "altas", daquelas que ficam acima da
linha do texto, tal como se mostra na palavra "altas". E nunca
esquecer que as citações devem vir entre aspas alinhadas com o texto e
com este sublinhado, na falta do itálico.
Mas o mais difícil, e isto tive eu que treinar bastante antes de bater a
minha tese em stencil, a margem direita tem de ficar
perfeitamente alinhada, algo que hoje se faz com a maior das
facilidades, bastando escolher a opção de justificação integral.
Pois é, apresentar uma tese de licenciatura era fruto de uma trabalheira
dos diabos. Não nos bastavam os meses ou anos gastos na pesquisa, ainda
tínhamos o trabalho, se nos faltavam os recursos pecuniários, de
arranjar uma máquina de escrever, nem que fosse emprestada, e aprender a
dominar diversas técnicas. E como as fotocopiadoras eram também coisa
rara, se necessitávamos de imagens para ilustrar os trabalhos, tínhamos
de recorrer à nossa habilidade no desenho ou às fotografias, que
colávamos depois nos espaços deixados no meio das manchas textuais. E já
agora, só para recordarmos velhos tempos, outra técnica de multiplicação
de páginas podia ser obtida recorrendo ao papel químico, que penso ainda
existir à venda, embora já não veja nenhum exemplar há umas boas dezenas
de anos.
A última etapa antes da entrega e defesa da tese era mandar todo o
material impresso para a tipografia ou, melhor dizendo, para um
encadernador, a fim de os volumes serem devidamente arranjados para
poderem ser depositados, posteriormente à defesa do trabalho, nas
diferentes Bibliotecas da Universidade.
Antes de concluir estas linhas motivadas pela tese do André, deverei
acrescentar que não me responsabilizo por eventuais gralhas. Encontrei
algumas, causadas provavelmente pelo dactilógrafo, como, por exemplo,
notas sem a devida correspondência no texto. E como a minha área é a da
Filologia Românica e não a Germânica, e nada percebo de Alemão, não me
surpreendo se existirem algumas letras trocadas, apesar das duas semanas
que ocupei a ler e corrigir a tese. Isto porque não há nenhum sistema
informático moderno, por mais evoluído que seja, que consiga reconverter
um texto batido em stencil e com manchas textuais por vezes com
os caracteres quase esbatidos por falta de tinta, para o código ASCII,
sem necessidade de passarmos dias a copiar uma publicação, gastando as
pontas dos dedos no contacto com as teclas. E, mesmo assim, o moderno
sistema de OCR que utilizei conseguiu verdadeiros milagres. Sem ele
nunca a tese do André teria sido ressuscitada para os novos formatos
tecnológicos de informação.
Que tenham uma boa leitura e que este trabalho de várias semanas possa
ser útil a todos quantos se interessam por questões de índole literária.
No que me diz respeito, considero que foi um trabalho interessante, que
me permitiu ficar a conhecer alguma coisa – não muito, diga-se de
passagem – acerca do sétimo prémio Nobel da Literatura atribuído a um
escritor de língua alemã. Mesmo sem termos de procurar os livros de
Mann, temos aqui a oportunidade de poder ler um conto muito
interessante, onde perpassa uma subtil e humorística ironia, traduzido
pelo André Ala dos Reis, no qual se evoca um acidente de comboio.
Aveiro, 18 de Novembro de 2016
Henrique
J. C. de Oliveira |