Amaro Neves
Nos últimos anos – e, certamente, por mais evidente,
nos últimos meses – tem-se assistido a algumas
alterações no património construído da cidade: nuns
casos, avança a ruína completa, enquanto se demoliram
casas velhas e, em seu lugar, construíram-se novos e
mais volumosos prédios; noutros, alteraram-se e
revitalizaram-se as fachadas e respectivos
interiores.
Ora, tudo isto, numa cidade que cresce e deve
oferecer melhores condições de vida, parece ser
natural e deve ser visto como saudável, sempre que
se mantenham as marcas identificadoras do bom
desenvolvimento urbano – previamente assinaladas por
quem deve zelar pelo Bem público – esperando-se que,
neste caso, haja um diálogo entre as partes
envolvidas, nomeadamente para esclarecer a razão das
opções e estudar atempadamente formas de não
defraudar, em absoluto, proprietários ou futuros
interessados. E isto porque, acima de tudo, deve
prevalecer e acautelar-se o interesse público. De
resto, também se registam
casos concretos – e por vezes bem desenvolvidos –
desta forma de estar e de gerir as zonas urbanas,
recuperando casas que, mesmo isoladas, são
indispensáveis ao bom entendimento do património
construído.
1. A Rua de S. Sebastião
Trata-se de uma artéria que ainda mantém boas marcas
do traçado feito pelos meados da segunda metade de
Oitocentos, encaminhando o fluxo do trânsito para o
Largo da igreja do Espírito Santo (quando esta já
entrava em ruínas), abrindo depois o caminho para
rápida chegada à Rua Direita (de notar que, no
centro desse largo ou praceta e a assinalar esse
tempo de reajustamento viário e urbano nesta zona,
se ergueu um dos melhores fontanários que a cidade
ainda possui).
Ora acontece que, na verdade, desse traçado,
chegaram até nós, do final de Oitocentos e primeiros
anos de Novecentos, para além de uma vivenda do tipo
"casa rural" de há muito consagrada, pelo
revestimento azulejar(1), o conjunto que se estende,
sobretudo, entre os nos 42-56, praticamente intacto
quanto ao rosto –
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para além de umas poucas vivendas, de tempos
diferentes, também elas, na generalidade, revestidas
a azulejo da época da sua edificação.
No essencial, porém, conjugam-se nesta quadra
construções de diferentes orientações estilísticas,
tanto a sugerirem influência brasileira quanto a
denunciarem tardia assimilação de padrões estéticos
da arte-nova ou mesmo já da arte Deco, mas
casando-se uns com os outros em agradável harmonia,
a ponto de merecerem o geral respeito público. E
assim deverá acontecer na memória aveirense, mesmo
que alguns digam que não foram casas de políticos
influentes, de clérigos eminentes,
de ilustres literatos ou militares, de grandes
ricaços... É que, no fundo, tudo isso é relativo,
devendo manter-se as ditas habitações pelo interesse
do conjunto que é, no caso, o que mais importa.
E, porque se não valoriza o que se não conhece,
tomemos como mero exemplo a "casa de brasileiro"
–
hoje rara, em Aveiro – aqui situada, com o nº 42-44,
sobre a qual se deixa uma breve memória, esperando
que a curiosidade popular encontre outros ecos e, em
conjugação com as restantes, melhor possa justificar
a defesa do conjunto.
2. A "casa", como referência do "torna viagem"
A casa acima referida, na Rua de S. Sebastião, foi
construída no final do século XIX, devendo estar
concluída (ou em vias disso) por 1895. Quem a mandou
construir foi Inácio Marques da Cunha, um aveirense
que emigrou para o Brasil pelos anos 80 desse
século, em consonância com um forte surto
emigratório desta região – e do país – para aquele
estado, onde, em actividades diferentes na bacia do
Amazonas (mais propriamente na cidade de Belém)
reuniu cabedais suficientes que lhe vieram a
permitir tornar-se empresário em Aveiro.
Naturalmente, num
tempo em que, nesta cidade, poucas casas se erguiam,
pois não estava de todo ultrapassada a crise do
tardio liberalismo português, mas davam-se alguns
sinais de mudança económica e social pela política
fontista e pelo incentivo industrial.
Então, foram muitos os que, retornando ao seu país
de origem – os "torna-viagem" – depois de conseguidos meios de fortuna nos
novos reinos da América do Sul (sobretudo no
Brasil), lançaram novas fábricas ou relançaram
velhos empreendimentos industriais (especialmente no
sector cerâmico), muito contribuindo para um surto
de desenvolvimento geral.
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De uma forma geral, como se compreende, o
torna-viagem, no seu regresso, trazia consigo um
projecto de habitação, muito usado no Brasil, que
funcionava como o espaço familiar ideal, procurando
dar-lhe forma quando se oferecia a oportunidade de
construir a sua própria casa. E esta, baseada num
esquema simples de quatro águas – e muitas vezes de
quatro fachadas – nem sempre se adequava ao espaço
disponível ou, por melhor orientação e adaptação ao
terreno, procurava-se uma variante diferente, a
exemplo da que, neste caso, se observa.
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Fig. 1 – Fachada da casa de Inácio Cunha, voltada para
a rua de S. Sebastião |
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A casa apresenta frontaria simples de dois pisos com
porta ao meio e, no andar superior, correspondendo a
esta, janela de varanda, ficando em cada andar, a um
e outro lado, duas janelas amplas. O restante espaço
tem uma porta de serventia e, ao fundo, um portal
gradeado.
Acontece que, depois, alguns ornamentos (poucos) e
árvores específicas reportadas ao sertão brasileiro
– normalmente com uma palmeira em destaque, à falta
de outra árvore desta família – ajudavam a compor o
cenário de uma casa da média burguesia que, com
facilidade, denotavam a proveniência dos meios de
fortuna que possibilitaram a sua construção.
Acrescente-se que, de entre os ornamentos mais
visíveis nas fachadas das casas do torna-viagem se
salientava a aplicação de azulejo na fachada, muito
comum nas cidades do Brasil – mas que era contrário
ao uso e costume nas casas tradicionais feitas em
Portugal, utilizado, então, nos interiores e em
espaços menos luminosos – levando a que, para de
certo modo
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ridicularizar as pessoas enriquecidas e as suas
casas que, no mínimo, se apresentavam com jactância,
denominassem estas casas como "casas de penico".
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Fig. 2 – Alçado lateral sul, evidenciando
ampliação recente |
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Fig. 3 – Tecto em
estuque, pormenor, em sala no interior do
edifício |
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Uma casa com esta estrutura e de assumido bom gosto
para a época, naturalmente, possibilitou momentos de
interesse político, relevando-se, entre eles,
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pelas relações internacionais que alguns elementos
de família mantinham no exterior, o facto de ali
terem sido acolhidos os pilotos da RAF, em 1941.
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Fig. 4 – Inácio Marques da Cunha |
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Ora, neste caso, o edifício, de boa cantaria a
guarnecer todos os vãos, mantém,
no essencial as marcas de sólida construção dessa
última década final de Oitocentos, não é
genuinamente um projecto de torna-viagem, mas tem as
características que denunciam claramente a
afinidade. E, naturalmente, aproveitando as
tradicionais fábricas regionais, mas também o gosto
assimilado, o revestimento azulejar de boa
qualidade. Falta-lhe, hoje, a velha palmeira... mas
tem ainda o espaço envolvente, com boas áreas e
curiosos aproveitamentos. E, na tradição aveirense,
mantém algum estuques de boa execução em composições
variadas que lhe dão uma ambiência requintada,
estuques esses que os sucessivos herdeiros, na
sucessão familiar, têm
sabido preservar.
3. Inácio Marques da Cunha, no contexto aveirense
Quanto ao proprietário da casa e sua família,
adiante-se, sumariamente, que,
emigrado para o Brasil, entre outros projectos
comerciais e industriais, montou em
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Belém do Pará uma conceituada unidade industrial – a
"fábrica palmeira" (2), descrita e elogiada na revista
"Ilustração Portuguesa" – enquanto ia acompanhando a
evolução da economia nacional e da região de Aveiro.
Aqui constituiu família, afirmando-se como influente
empresário ligado à recuperação e valorização de
marinhas de sal e assumindo-se como sócio de algumas
importantes Empresas Aveirenses. De entre estas, em
1927, seria um dos sócios fundadores da empresa
Testa & Cunhas, S.A, essencialmente vocacionada para
a pesca marítima longínqua, sobretudo do bacalhau,
empresa que, volvidos 80 anos de existência, ainda
é, actualmente uma das referências entre as empresas
nacionais de pesca. Para além da vida empresarial,
Inácio Marques da Cunha fez-se presente e activo na
vida social da cidade, na qual
procurou integrar, da melhor forma, os seus filhos –
António, João, Raul, Artur (licenciado), Adília e
Augusto Marques da Cunha (também, licenciado) –
alguns dos quais tiveram acção relevante em Aveiro,
em vários ramos, como também na vida empresarial da
cidade e sua região.
Hoje, a citada casa da Rua de S Sebastião, mantém-se
nos legítimos herdeiros da família de Inácio Cunha,
de forma indivisa e bem recuperada e valorizada,
como propriedade de três dos seus bisnetos.
4. Para a posteridade
Apresentadas estas breves considerações, importa
olhar atentamente para o conjunto urbano referido
quer pela sua arquitectura, embora aparentemente
dissonante, quer pela azulejaria que adoça as
frontarias e releva as linhas mestras dos alçados.
Assim se justifica que, numa perspectiva de
salvaguarda do património
edificado, sejam valorizados os traços marcantes da
evolução urbana aveirense, mesmo quando estes se nos
oferecem diluídos num casaria que, por vezes, parece
incaracterístico e de projecção mediana. É preciso
saber apreciar a diferença e valorizar as marcas do
tempo, não por mero interesse turístico mas, acima
de tudo, por consciência cultural, em defesa dos
valores da região e da cidade.
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Notas
(1) – Consulte-se
Azulejaria antiga em Aveiro, pg.173, obra
editada em Aveiro, em 1985.
(2) – Era dedicada à
panificação, confeccionando sobretudo pão, bolachas
e biscoitos. |