É interessante recuar no tempo e vermos como Gil Vicente, com mão de artista, fez deslizar, perante os olhares dos contemporâneos e vindouros, o espectáculo da vida, apontando os erros de uma sociedade em que a regra geral era cada qual viver «a seu prazer», egoisticamente, explorando, de uma maneira ou outra, o próximo.
Assim, ouvimos o Lavrador, no «Auto da Barca do Purgatório», a queixar-se:
«Nós somos vida das gentes
e morte das nossas vidas.
(...)
o lavrador
não tem tempo nem lugar
nem somente d' alimpar
as gotas do seu suor
(...)
Cada um pela o vilão
Por seu jeito.»
Nada «escapa» à perspicácia do olhar vicentino - a vaidade e futilidade da menina da época:
Ir amiúde ao espelho
e poer do branco e do vermelho,
e outras coisas que eu sei;
pentear, cuidar de mi
e poer a ceja em dereito;
e morder por meu proveito
estes beicinhos, assi.»
in «Quem Tem Farelos?»;
a subordinação de todos os valores morais ao poder do dinheiro:
Toda a glória de viver
das gentes é ter dinheiro,
e quem muito quiser ter
cumpre-lhe de ser primeiro
o mais roim que puder.
in «Auto da Feira»;
o desconcerto do mundo:
Todo o mundo está mortal
posto em tão escuro porto
de uma cegueira geral
que nem fogo, nem sinal,
nem vontade: tudo é morto.
in «Auto de Mofina Mendes»
Muitas mais citações poderiam ser apresentadas. Em todas, a mesma irreverência, a mesma mordacidade, a mesma justeza crítica e abrangente...
À distância de quatro séculos, as críticas vicentinas continuam plenas de actualidade nas quadras de Aleixo, imbuídas, umas e outras, de um realismo acutilante, na busca de uma sociedade mais humanizada.