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Sérgio Paulo Silva, Salreu, uma aldeia em papel de arroz, 1ª ed., Estarreja, Outubro 2010, 56 pp.

Salreu, uma aldeia em papel de arroz

Sérgio Paulo Silva, autor deste trabalho - Clicar para ampliar.

Salreu

             freguesia do concelho de Estarreja, distrito de
                Aveiro

Arroz

              do árabe Ar-ruzz «Gr. Óriza s. m., bot., planta
                gramínea; o grão dessa planta

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/ 9 / Os emigrantes da minha infância que buscavam o el dorado no Brasil, na América e sobretudo na Venezuela, partiam em navios demorados e demoravam-se no passar dos anos, não só por o tempo das viagens ser grande e penoso mas também pelo seu custo. A comodidade e rapidez dos aviões demorariam ainda muito. Viúvas de vivos chamou Joaquim Lagoeiro às suas mulheres... Gente desenraizada, vidas marcadas por espaços de muitos vazios... Se eu tivesse tido uma dessas vidas de longas ausências do sítio em que cresci e de súbito voltasse, com certeza que não reconheceria lugares familiares dos primeiros passos, tão grandes foram as mudanças operadas pelo homem e pelo tempo. Durante muitos anos, durante muitos séculos as mudanças (todo o tempo é composto de mudança - escreveu Camões) de hábitos, de horizontes, de tanta e tanta coisa, eram lentas, atravessavam a vida de gerações e agora são galopantes, devastadoras de pessoas, de animais e de plantas, precipitando espécies para a extinção. Este ritmo de vida, mais que desfigurar rostos e paisagens, desfigura almas como se as calamidades acontecessem naturalmente.

Às vezes dou por mim a repor os fragmentos das minhas recordações mais antigas que não consigo ajustar às imagens de hoje, a tentar contornar, de alguma maneira, o inevitável no puzzle que a fortuna me atribuiu.

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Esta será talvez a fotografia mais antiga que se conhece do Largo da Igreja e que nos mostra como era o centro da aldeia e o tipo de construção que foi demolido para dar lugar aos edifícios da imagem seguinte.

Nasci no lugar de Vales, numa rua que agora já tem outro nome, a dois passos do que se chamou outrora Largo das Padeiras, depois baptizado Largo 5 de Outubro e vulgarizado pelo povo pelo que na verdade é, Largo da Igreja, na casa que ainda hoje ocupo.

/ 10 / Rapazinho, como qualquer outro do meu tempo, ia aos pardais por onde calhava, sobretudo para poente do meu ninho, pelas terras que iam até à rua da Barroca e pelo carreiro abaixo, até à linha do comboio. Enquanto as ratoeiras esperavam as suas vítimas, eu ocupava-me a apanhar agriões nas regueiras, um ou outro morango bravo ou a esfregar as mãos engaranhadas de frio, conforme fosse a época. Mais tarde, quando o acaso me pôs nas mãos a primeira arma, ainda que rudimentar, espreitava as narcejas que vinham até aos viveiros de arroz que se faziam mesmo junto ao meu quintal. Hoje, nesse sítio, está uma casa com pátios e garagens, os agriões perderam as suas regueiras ou os seus veios de água e talvez já ninguém saiba o que são morangos bravos.

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Percebe-se nesta foto que mostra o edifício de Arte Nova ainda hoje existente a mesma árvore e o mesmo moinho de vento. Ambas as fotos pertencem hoje à família do Dr. Silvério Tomaz Pinaz, actual proprietário da casa que ocupa o coração da freguesia.

Há poucos anos entrei pelas ruas de Soutelo atalhando caminho para o Pinheiro da Bemposta. Ia com um amigo. Lá mais para diante, nessa estrada que serve quase só quem lá vive e a conhece, pouca gente passa. Encontramos um carro acidentado de fresco, com uma senhora aflita por ter batido na beira e parámos em seu socorro. Os danos eram apenas materiais, avisamos por telemóvel o marido e, enquanto ele não chegava, pus-me a deambular por ali e assim fui achando, ao longo da berma, uma data de morangueiros bravos que eu pensava ser planta já só existente na minha memória. As gotinhas vermelhas, o seu sabor, o seu perfume, fizeram-me bendizer, em silêncio, a infelicidade daquela mulher. Agriões lavados dar-me-iam agora talvez similares momentos de encanto. Não o permite, porém, a qualidade das águas das pequenas regueiras que abundavam e que as mudanças / 11 / sujaram e feriram nos seus cursos. Essas regueiras eram, naquele tempo, os mesmos capilares e as mesmas veias que alimentavam os alfobres do arroz que haveriam de encher toda a marinha. Mas esse foi um saber que apenas fui adquirindo com os vagares dos anos e nas vicissitudes da vida. Rapazinho de bibe e pião, que poderia eu saber disto? Armava aos domingos ratoeiras aos pardais e olhava de longe, sem ver, as infindáveis marinhas por onde o sol se desfazia.

Nasci e cresci num sítio de abundância de água. Uma regueira corria a céu aberto junto ao muro do meu quintal. Mais a norte, a uma centena de metros, outra. A nascente havia fontes. Umas três ou quatro. Portanto os viveiros de arroz faziam-se naturalmente junto ao meu quintal. Mas também em muitos outros lugares da freguesia onde as nascentes de água eram generosas como, por exemplo, em todo o vale que a Senhora do Monte faz com o lugar da Carvalha, no Valdujo com as águas do ribeiro da Enxurreira, qualquer cantinho, enfim, que tivesse água servia para fazer viveiros. Algumas vezes os visitei, não para os apreciar, mas para me encontrar com companheiros de escola que há muito tinham despido o bibe e esquecido o ponteiro de lousa para enxotarem os pardais que os rondavam, batendo em latas com paus, enquanto não entravam noutro viveiro, o da pá e da talocha donde só alguns seriam transplantados para uma qualquer fábrica ou para um país distante, engrossando a diáspora.

Na espera das narcejas e dos patos calcorreei os campos baixos de Salreu. Mais tarde levar-me-ia lá também o vício da pesca, sobretudo / 13 / das enguias. Ia com amigos de meu pai, o Artur do Canto, o Manuel da Laurentina, o Albertinho Vidal, caçadores daquele tempo que aturavam os meus primeiros devaneios cinegéticos. Então, na idade que eu tinha, as praias de arroz para mim eram somente praias de arroz, como os juncais eram só juncais refúgios de caça. Com o passar dos anos às vezes surge um momento em que, de tanto olhar, finalmente se vê. E brotam então as perguntas: que terrenos eram aqueles? Que águas eram aquelas? Que aves? Que plantas? Como? Porquê?..

No inverno de 1974 ou de 75, não posso precisar ao certo, num dia qualquer, chegou-me aos ouvidos que o mar da Torreira descera já pela avenida principal (Hintze Ribeiro) e ameaçava as casas. Fui ver. O mar descamara os alicerces do Café Moliceiro, havia máquinas dos serviços de engenharia do exército a colocar pedras e camiões que se sucediam, num vaivém de formigueiro, carregados de mais pedras para travar a violência das vagas. Na ocasião tirei duas fotografias com uma máquina rudimentar. Uma delas mostra um poço feito de adobes, que não terá resistido vinte e quatro horas às vagas e que estava onde hoje passeamos aos domingos, mais ou menos onde se situa o Mar-e-Bar. Ora o poço era nitidamente de serventia de casa ou palheiro que por ali teria existido e não seria para extrair água salgada... Se o juízo não estiver errado, não será difícil imaginar que o oceano, o mar, estaria muito, mas mesmo bastante, recuado. Pelo menos quanto bastasse para que o poço tivesse água potável. Por volta de 1934, contou-me o Rafael Vidal, existia ao cimo da avenida uma tasca / 14 / com um bocadinho de restaurante, o "Rambóia" e desta casa até à facha plana de areal onde eram armadas as barracas, havia seguramente 180 metros. Depois, e descendo sempre, a uns trinta metros fazia um regueirão e um pouco mais adiante finalmente o mar. Como seria antes daquela data? Questionava-se o Rafael, acreditando que estava mesmo muito mais longe.

Por esses anos apreciava ir até Cacia, ao Rio Novo do Príncipe, para ver regatas. Já por lá tinha andado na juventude levado pelo vício da pesca e por amizades que tinha nessa terra. Foi assim que fui conhecendo esse braço artificial do Vouga, feito para salvar a ria, foi assim que conheci a veia principal do rio, a que se chama hoje Rio Velho, que se orientava para norte, para o Laranja, onde o Antuã morre, e que naveguei por todo o intrincado de canais que a imensidão dos anos, dos ventos e das correntes foram rendilhando.

Em 1394, por carta de D. João I de 30 de Abril fica-se ciente que corriam navios de marear na veia de avaro.

Em 1501 ainda navios, barcas e caravelas ancoravam nos portos de Ovar crendo-se que aí terá existido uma barra... E quem olha agora a ria por esses sítios pensará que está no seu fim quando na realidade está próximo do seu começo.

Entretanto as mãos infatigáveis da nortada, aliadas às correntes iam enchendo de areias o litoral, faziam crescer a costa, até S. Jacinto ou mais para sul, para a Vagueira, onde esteve durante longos anos a barra da ria, enquanto o rio Vouga e o Antuã, com outros pequenos cursos, durante séculos livres de barragens ou açudes, / 15 / iam despejando no seu acabar todos os sedimentos, todos os aluviões riquíssimos que tinham transportado nos seus leitos desde longínquas serranias.

No parecer de Amorim Girão, no passado proto-histórico a ria não existia também, muito embora estivessem já em actividade as causas que contribuíram para a sua formação, que deveria ser contemporânea da construção da estrada romana entre Águeda e o Porto, cognominada a Mourisca, não devendo ir além da era cristã, sendo natural, dado o silêncio dos autores coevos que não existisse na época romana.

Portanto o mar andaria por onde hoje temos a proximidade da linha de caminho de ferro ou alguns troços da estrada EN 109, o que qualquer um reconhece observando os terrenos de areia onde, aprofundando, se encontram conchas, terrenos que (por exemplo) na área industrial de Estarreja e Pardilhó não são mais que dunas que o arvoredo disfarça.

Portanto, por fenómenos de rotação da terra e/ou climáticos, o mar foi recuando ao longo de séculos, deixando campo aberto para que o Vouga e o Antuã, asfixiados, descarregassem, nos espaços que abandonava todas as suas cargas sedimentares, preenchendo vazios, criando terra...

E a terra foi sempre um bem precioso, foi-o sempre ao longo daqueles séculos em que as pessoas viviam da e para a agricultura, tempos em que ainda era desconhecida a existência do milho ou da batata. As terras seriam então ocupadas com o centeio e o trigo, com a floresta e a pastorícia.

/ 17 /
Com o recuo do mar o primeiro bem que a natureza terá servido à povoação seria o sal e na preparação e amanho das salinas terão surgido os primeiros proprietários das marinhas. A pesca terá sido outro bem ainda que diminuto.

Os socalcos do Douro são um hino ao esforço humano. Mas não se podem perder de vista os terrenos adaptados ao cultivo do arroz no Vietname ou na China ou, em muito menor escala, nos nossos campos que igualmente foram feitos a músculo, ferro e por animais num meio que não era estável e num ambiente que favorecia uma infinidade de maleitas.

Com o amanho e preparação das salinas terão talvez surgido as primeiras valas, as primeiras comportas, o domínio dos elementos. O recuo do mar, ao deixar de fornecer a matéria-prima para as salinas, terá originado novos desafios para o aproveitamento dos terrenos que mais não seriam que lodaçais.

A população seria forçosamente constituída por gente rude e analfabeta e não dominariam o cultivo do arroz por lhes ser um cereal estranho. Contudo, o arroz já era conhecido dos chineses há mais de cinco mil anos, e os chineses eram navegadores de reconhecidos méritos. Por eles o arroz terá sido divulgado no Médio Oriente e ter-nos-á chegado pelas mãos dos romanos e pelos povos árabes que ocuparam longamente a península.

A nossa costa era percorrida por comerciantes e aventureiros, provenientes do sul e dos países nórdicos.

Há na nossa região tipos humanos que revelam essas origens nórdicas mas não creio que nos viesse por aí o domínio da cultura / 19 / do arroz mas por aqueles outros que terão visto o meio favorável e terão iniciado o seu cultivo com sucesso.

Um novo cereal era uma nova esperança de vida para a região e uma nova fonte de riqueza e terá incrementado o esforço sobre-humano do domínio das águas e da fixação dos terrenos.

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NOTA Apesar de profusamente ilustrada, apenas se reproduz uma pequena amostragem das gravuras desta obra; no entanto, o texto foi integralmente transcrito, respeitando-se a vontade do autor.
 

 
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