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Presépios de Barro. Séculos XVIII e XIX, "AMUSA", Dezembro/97-Janeiro/97, pp. 1 a 6


 
 

Surge a ideia desta exposição no decorrer das investigações em curso desde há dois anos, que visam um conhecimento mais aprofundado do labor dos denominados "barristas aveirenses". Tem esse estudo o objectivo de uma mostra mais abrangente que tencionamos vir a realizar em 1997. O levantamento até agora efectuado permitiu, no entanto, o conhecimento de variadas peças para além das que fazem parte da colecção do museu. Optámos então por seleccionar algumas que pela sua temática se enquadram na época do Natal. Pretende-se assim, não só dinamizar o museu na época festiva que atravessamos, mas também, no cumprimento do papel que lhe cabe de veículo de divulgação de valores culturais, reconhecer o mérito desta produção artística que se destacou ao longo do séc. XVIII e princípios do séc. XIX.

                                 Maria Lobato Guimarães



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A terminologia "barristas aveirenses" é, ainda hoje, assunto não totalmente pacífico e para o qual se levantam mais dúvidas que certezas. A documentação escasseia e o decorrer dos tempos fez escassear também os frágeis exemplares da sua produção. Assim, esta pequena e primeira mostra constituída por figuras de presépio que análises comparativas deixam atribuir a feitura aveirense (raríssimas são as peças assinadas), tem também a sua importância pelo facto de possibilitar que através dos seus visitantes se alargue o levantamento já começado conduzindo ao eventual conhecimento de outras peças congéneres.

 

 

 


Citando António Christo, grande coleccionador de "barros" de Aveiro, no seu artigo "Os escultores barristas aveirenses e o Natal", publicado no jornal "Litoral" de 22-XII-1956, ... a partir do século XVI, pelo menos, multiplicaram-se em Aveiro as olarias – que nos séculos XVII e XVIII atingiram notável desenvolvimento e haveriam de se tornar famosas. Nelas se revelou... a vocação instintiva do povo para modelar o barro que por aqui existe em abundância e de excelente qualidade. Floresceram então em Aveiro escultores barristas de grandes méritos – entre eles José Dias dos Santos, Bartolomeu Gaspar, Joaquim Marques dos Santos e seu filho Manuel Marques de Figueiredo, Manuel António (o Tigelinha), um de apelido Lemos e, mais recentemente, Pedro António Marques (o Pedro Serrano).
 


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Segundo o artigo de Sérgio Guimarães Andrade, no "Dicionário de Arte Barroca em Portugal", na sua origem latina o termo Presépio significava estábulo, estrebaria, manjedoura, sentido em que o utilizou S. Lucas, o único evangelista a referir as circunstâncias do nascimento de Jesus. A iconografia medieval enriqueceu aquela descrição inicial com a inclusão dos anjos anunciando, tocando e cantando, do boi e da mula, dos pastores com os seus instrumentos musicais, dos Reis Magos ostentando os seus ricos trajos e cortejos de camelos. Já no séc. XVII as Adorações dos Pastores aumentam o número de figurantes (pastor velho e calvo ajoelhado com um cordeiro de patas atadas, tocador de gaita de foles, pastor com cesto de ovos) e juntam-lhe as camponesas com as cestas à cabeça... No último quartel do séc. XVl1 e princípio do séc. XVIII o gosto barroco confere ao presépio teatralidade, espectáculo e festa.

Por toda a Europa cristã se executaram presépios. Os italianos foram os que mais influência exerceram. O presépio de concepção barroca aparece em Portugal no tempo de D. João V e denota essa tendência italianizante da época. Tal como refere Artur de Gusmão: A idade de ouro desta arte situa-se no séc. XVIII, onde foram numerosos os presépios destinados a Conventos, Catedrais ou modestas igrejas, casas senhoriais ou simples habitações. É necessário sublinhar que ao lado da Natividade, propriamente dita, estas composições incorporam personagens e cenas de inspiração muito diversa: umas eruditas, as outras mais populares; aquelas ligando-se mais à tradição histórica e religiosa, estas alargando-se mais a representações mais livres e mais complexas, revelando sempre um grande poder criador. O primeiro grande centro foi Lisboa (António Ferreira, Machado de Castro, Barros Laborão, etc.) imitados em oficinas secundárias, regionais ou locais e nos trabalhos freiráticos.

Como afirma José Queirós na sua obra "Cerâmica Portuguesa": Em parte, o que dá nome à escultura do século XVIII é o carácter popular que lhe imprimiram os nossos primeiros escultores, que assinaram os encantadores presépios, e figuras isoladas, que eles vendiam por preços compatíveis com todas as bolsas. Além das escolas de Aveiro, dos frades de Alcobaça, de Mafra,
/ 4 / cujos primeiros mestres foram Alexandre Giusti e, depois, Joaquim Machado de Castro, do Porto e das Caldas da Rainha, é manifesto que outras houve, em Lisboa, no Alentejo e em diversos outros pontos do pais, como se deduz do carácter local denunciado pelas paisagens dos presépios, que raras vezes representam as campinas da Judeia, pelos trajos que compõem os homens e as mulheres que povoam esses recintos, e, por vezes, pelos trechos de arquitectura.

O presépio assim concebido é uma composição de figuras e grupos modelados em barro cozido e policromado, dispostas numa estrutura de cortiça assente sobre um esqueleto de pranchas de madeira. O conjunto encerra-se num camarim, maquineta ou armário. A maior ou menor imaginação levará à maior ou menor diversificação de materiais: algodão, vidro, conchas, flores, papel, etc.

O séc. XIX, com as guerras e lutas civis da sua primeira metade, não era propício a armar presépios. Com a extinção dos conventos, dispersaram-se e perderam-se alguns dos existentes. O mesmo sucedeu aos de algumas casas nobres. Ficaram, em oratórios particulares, as simples "lapinhas" só com a Virgem, o Menino, S. José e os animais do estábulo de Belém, mas sem mais figuração. Essas modestas grutas de barro, decoradas com búzios e conchinhas minúsculas, eram o encanto das crianças, mas pouco tinham da arte dos barristas que parece ter desaparecido com o séc. XIX, ou degenerado nos bonecos de feira que ainda hoje são feitos em série e estão disseminados por todo o País.

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Nestas intencionalmente curtas palavras de apresentação da exposição, achamos, no entanto, dever aqui também dar lugar a um brevíssimo historial desta manifestação de alma e sentimentos, expressa na arte dos presépios, com que gerações após gerações festejam o Nascimento de Jesus.

Servindo-nos de um texto publicado na "Ilustração Moderna", nº 38 de 1929:

O uso dos presépios do Natal nasceu da alma de um grande Poeta, que foi um grande Santo.

Era em Dezembro de 1223, nos outeiros suaves e bucólicos da Úmbria. João Bernardone, já então conhecido apenas pelo nome, que havia de ser imortal, de Francisco de Assis, obtivera do Pontífice Romano permissão para celebrar a festa do Natal duma forma cheia de originalidade.

Tomás Celano, biógrafo do Santo, descreve assim, aquela festa de poesia, devoção e ternura. (T. de Celano, "Vita prima", p. I, c. XXX).

Na noite de 24 de Dezembro, cerca da meia noite, começaram os cômoros a fosforear-se de lumes, que pareciam bocadinhos de ouro incandescente, espalhados no negrume da noite fria e plácida. Ao mesmo tempo um rumor longínquo e harmonioso encheu os ares de melodia. Eram os irmãos da nascente ordem franciscana e os habitantes dos povoados da serra, que desciam para Grécio, a fim de assistirem ao espectáculo que Francisco preparara. Como a noite estivesse escura e os caminhos fossem ásperos e precipitosos, todos traziam círios ou archotes. E entretanto, arroubados de devoção, entoavam salmos e cânticos piedosos, cujas harmonias, descendo da montanha para o vale, pareciam vir misteriosamente do céu.

Em Grécio fora levantado um altar, ao ar livre, sob o céu picado de estrelas. Ao lado do altar via-se uma rústica manjedoura e nela, deitado em palhas louras, a imagem do Menino Jesus. Os animais, que, segundo a tradição, se encontravam na arribana de Belém, o boi e o jumento, fitavam o Divino Infante com os seus grandes olhos, tranquilos e doces.

Diante do presépio, os irmãos e o povo cantavam enlevados. Francisco / 6 / chorava de alegria e ternura. No altar celebrou-se a missa, em que o Santo-Poeta ministrou de diácono. Com uma voz vibrante cantou o Evangelho. Em seguida pregou.

Assim se construiu o primeiro presépio e se celebrou a primeira Missa do Galo.
 

 
 

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