Índice do Almanaque.
 

TIO ANTÓNIO DA PASSAGEM

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J. Simão Miranda; Maria E. Rosa; J. Francisco Pereira

Das minhas vindas aos Açores, mais propriamente a esta ilha do Faial, entre as várias  histórias que tenho na minha memória recente, saliento veementemente os encontros de convívio espontâneo onde havia lugar para o cante e o reviver de alguns retalhos da vida.

António da Passagem foi sem dúvida dos contactos que mais me terão marcado pelo insólito das situações partilhadas. Este homem de carácter expansivo, que irradiava energia positiva, conseguia transmitir boa disposição a todos os que passavam no seu caminho.

Certo dia, estando com ele na sua adega na Fajã da Praia do Norte, em convívio fraterno entre açorianos e alentejanos, cantavam-se modas alentejanas e açorianas, onde não faltou o bom pão e o bom vinho por ele feito, alimentando-se assim o corpo e o espírito. A propósito do bom pão, contou o ti António que, no século XIX, partiram para uma ilha no Pacífico, no Havai, alentejanos e açorianos; e aí deixaram marcas culturais que ainda hoje perduram como sendo o fabrico do pão à moda do Alentejo e os fornos de cal branca. Estes alentejanos descobriram mais tarde uma terra: a Califórnia. Para aí foram, que se assemelhava ao seu Alentejo pela extensão da planície e da cor amarela do trigo. No seu alforge transportaram os sabores e os saberes da sua cultura. Como o ti António passou alguns anos da sua vida na Califórnia, aí conviveu com essa comunidade e bebeu dessa cultura.

À medida que o cante se elevava, mais a sensibilidade deste homem se manifestava através do olhar enternecido; e, em dado momento, lembrou a história do vulcão de Cabeço Fogo (1672) em que a lava circundou o lugar onde pastoreava o touro da Fajã, que ficou ileso para ser abatido para o bodo do Espírito Santo.

Na sequência da conversa lembrou o ti António uma história recente de um outro touro pertencente ao seu filho Eduardo, que  baptizou de Mestre Marradas. Este touro tinha uma forte ligação ao seu dono, sendo o guardião das vacas no mato. Eduardo sofria de doença crónica, conhecida já há alguns anos, o que motivava alguma apreensão e inquietação no seu ambiente familiar. Eis que um dia o sol já ia alto e Eduardo, que tinha ido para as vacas, não havia meio de aparecer. O ti António manifestou preocupação e meteu-se a caminho. Quando chegou perto do local onde estavam os animais, viu o Mestre Marradas imobilizado junto do corpo de Eduardo que já sem vida jazia na terra. Mestre Marradas estava junto de seu dono, gemendo. Diz o ti António: «não sei que sentia, mas sei que sofria, até me parecia que estava chorando...»

Esta história verdadeira deixou-me emocionado, sobretudo porque acompanhei de perto o Eduardo na sua doença.

O Cante continuou em toda a sua plenitude e com maior intensidade dedicado à eterna reflexão sobre a vida e a morte e em consonância cantou-se:

Quem inventou a partida

Não sabia o que era amar;

Quem parte, parte sem vida,

Quem fica... fica a chorar...

O tio António, comovido, comentou: «que doçura! Que doçura!»

Agora que o Tio António também partiu, deixou-nos com emoção e saudade e reconhecidos por nos ter ensinado uma tão extraordinária forma de ser e de estar na vida.

Bem haja pela dádiva que deixa perpetuada na humanidade.

 

O Pão da Alma

O equinócio da Primavera, às 00:07, com a ajuda da morfina, anunciava-lhe algum sossego. Aproximava-se a passagem do tio António da Passagem. Até então, o sofrimento era atroz, o corpo a inchar com o soro que lhe injectavam sem que ele pudesse eliminar o que não precisava, e sem que ao menos pudesse dizer: «Parem com isso! Deixem-me fazer a viagem para o além em paz!» Que momentos cruéis esses em que já não podemos ter o controlo de nós!

A pouco e pouco foi-se aproximando o fim.

Foi um dia bonito para morrer, o primeiro da Primavera. As azedas pintam a paisagem de amarelo. Há raminhos novos de verde tenro nos arbustos e o chão está cheio de minúsculas flores que humildemente nos servem de tapete.

Muitas lembranças me vêm à cabeça nesta altura em que o meu ser ainda está anestesiado com esta perda. Mas todas elas são de folia. O tio António fez da vida uma autêntica folia. Não sei a mola interior que o movia, mas a verdade é que ele fazia rir toda a gente, contando histórias divertidas, tocando a sua viola da terra, cantando e dançando ao mesmo tempo.

Uma tarde na Fajã…

Era de pasmo essa tarde outonal, com vestido de verdes e ocres a raiar o rubro xaile de suaves pinceladas. A calma fundia todos os elementos numa sedução hipnótica.

 

Olha o carro do tio António! Eles estão na vinha!

 

À medida que o carro abrandava, viam-se a tia Maria e o tio António a levantar os braços no meio dos baraços de videiras, num terreno acidentado de recantos basálticos. Esperava-nos um balde repleto de araçás vermelhos e amarelos e outro cheio de uva.

 

Ó Francisco, vai lá ao fundo apanhar uva – pediu o tio António. – Temos que ir depressa, senão fica de noite e a adega não tem luz, só a da vela!

 

Desta vez vai haver cantoria! Olhe que veio a viola! – informou o Francisco, afastando-se.

 

Eu já não toco nada. Mesmo nunca toquei mais do que a chamarrita – respondeu o tio António.

 

Vamos a ela! Vamos a ela! – ouvia-se enquanto todos se metiam nos carros para rumar à adega.

 

Na rua de S. Martinho, nome bem sugestivo, ficava a adega. De construção de pedra, feita pelo tio António, porta e janela muito pequenas, tinha uma enfiada de pipas gorduchas do lado esquerdo e, no meio, uma mesa ladeada de bancos corridos de madeira. Um cantinho do céu, seguramente, debaixo de uma rocha em parte alcantilada, em parte arborizada, onde o cair da tarde ia a pouco e pouco avermelhando até tingir de sombra.

 

A comida foi sendo posta em cima da mesa. O tio António interrompeu, num gesto de admiração:

 

Com todos os diabos! O que eles p’ra aqui trazem!

 

Não era preciso ter trazido pratos de papel! Há de tudo aqui! – conjecturou a tia Maria.

 

Vamos provar o vinho novo! – E o tio António botava o vinho novo no canjirão, enquanto havia vozes a pedir: Eu quero na tigela!

 

A tia Maria entretanto brunia sabiamente as tigelas de barro de S. Miguel.

 

É bom, mas ainda está um bocadinho áspero. Vamos ao velho para não fazer mal – explicava o Zé, na sua missão de médico. – Pode fazer diarreia.

 

Já com a barriga cheia, os corações em brasa, começaram as modas alentejanas a saltar das gargantas. Brotavam à ventura como um barco de vela à solta. O tempo foi passando, no fluir harmonioso das melodias.

 

Os olhos da tia Maria sorriam docemente:

 

Eu ficava aqui a noite toda a ouvir... Quando dá música alentejana no talavejo, eu ponho logo mais alto.

 

O tio António comentava com êxtases de embevecimento as vozes, notando-se-lhe uma grande sensibilidade ao alto.

 

A noite caiu sem se dar por ela. E as modas caíam da cascata memorial em caudal denso e intenso com o brilho e a limpidez do cristal. A torrente só foi interrompida para se cantar algumas canções açorianas como a Lira, Rema e Olhos Negros.

Nesta altura, já a tia Maria tinha acendido uma vela, cujo castiçal era o gargalo de uma garrafa verde vazia de briol. Nem a brisa toava à beira-mar, apesar do mar cadenciar ondas de alvura na praia. De vez em quando, apenas uns dedos apiloavam amendoins.

Do silêncio da noite, o tio António recordava o Eduardo, o filho de quarenta e seis anos ceifado à vida dois meses antes. Entre lágrimas gordas de comoção – Desculpem, mas ele era meu filho! – contava:

Ele tinha o dom de falar com os animais e eles obedeciam-lhe...

 

Pela minha memória passavam cenas com o Eduardo: as brincadeiras de infância à volta da adega, a viola da terra que tão bem tocava, a epidemia dos coelhos…

 

A porta da adega entreaberta deixava ver os malmequeres muito brancos no meio do lusco-fusco do crescente lunar. Pareciam pirilampos a desafiar a noite. Ao fundo, avistava-se a brancura do orgasmo marinho.

 

Chegou a hora da partida…

 

E agora, que sabemos nunca mais ter o pão da alma que o tio António nos dava?!...

 

Um dia, quem sabe, talvez voltemos a tanger a viola e a bailar a chamarrita numa qualquer galáxia. Talvez! Quem sabe?!...Até lá, continue folião, folgazão, em permanente animação.

 

António da Passagem – Homem folião

António da Passagem, nosso querido irmão! Lembramos agora com saudade os bons momentos que nos foram proporcionados naquela adega da Fajã, onde convivemos com a alma de quem quer estar na harmonia do usufruir. Foi cúmplice. Não havia diferenças, todos eram irmãos no sentir, no estar por gosto, no partilhar dos afectos, nas canções (das muitas que cantámos), no vinho, esse vinho feito com tanto sabor de amor que nós bebíamos como se fosse, e era, de dádiva, os petiscos que a tia Maria sempre tinha para nos compensar com a sua fraterna complacência. Bem hajam, queridos amigos, por aqui os podermos recordar com o sentir da/o Passagem.

António da Passagem, homem folião, dos que deixam nome por ter animado com marcada presença, que agora se recorda, as Festas ao Divino Espírito Santo, na sua Irmandade da Praia do Norte. Ainda tivemos a felicidade de o ouvir nas últimas Sopas do Espírito Santo que partilhámos no Império da irmandade do Espírito Santo da Praia do Norte, da responsabilidade da filha Maria Eduarda, genro Elias e netos Estêvão, Ricardo e Cristina. Como nos sentimos envolvidos e fascinados pela dinâmica que o tio António da Passagem, homem folião, dava à folia e nos movimentava até ao êxtase! Bem hajam, queridos amigos, por nos terem ofertado essa última oportunidade!

António da Passagem, homem de bem dispor, tinha sempre uma escapada palavra de boa disposição para os que o rodeavam, até mesmo nas suas horas de grande desgaste, provocadas pela doença que agora lhe impôs a passagem para outro estádio. Bem haja, querido amigo e tio, por nos ter mostrado o sabor da sua providencial companhia.

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