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Avifauna Alentejana
A ABETARDA

Carlos A. Ferraz da Conceição

 

I – A avifauna alentejana, rica em quantidade e diversidade, justifica plenamente um olhar e atenção especiais. Um olhar que nos permita a fruição de momentos de rara beleza (que, frequentemente, nos passam ao lado), uma atenção que nos desperte para a necessidade de preservação desse bem inestimável, no quadro mais vasto da defesa do nosso património natural.

Particularmente no tocante às espécies em risco (como a abetarda, o sisão, o cortiçol-de-barriga-preta, o peneireiro-das-torres, etc.), impõe-se uma forte tomada de consciência no sentido da referida preservação, a bem do equilíbrio ambiental e das gerações vindouras.

Atentas as suas características, e por se tratar de uma espécie pouco conhecida da generalidade das pessoas (pelo progressivo declínio dos seus efectivos e um habitat muito localizado), tecemos aqui uma breve resenha sobre a abetarda, uma das maiores aves voadoras do mundo e a mais pesada da Europa.

Em complemento, referimos algumas acções relevantes desenvolvidas em defesa desta e de outras aves ameaçadas, bem como do meio em que vivem.


II – Com uma dimensão semelhante à do peru, a abetarda apresenta notórias diferenças de dimensão consoante o sexo – um macho adulto tem aproximadamente 1 m de comprimento e 2,30 m de envergadura (distância entre as pontas das asas) contra, respectivamente, 0,80 m e 1,80 m para a fêmea, a qual é também bastante mais leve (ronda os 3,5 – 4 kg de peso, oscilando os machos entre os 8 e os 16 kg).

A sua plumagem é variada – dorso castanho avermelhado, com listas pretas transversais, pescoço cinzento, peito branco – apresentando a fêmea tonalidades mais pálidas e penas ornamentais menos desenvolvidas. No período reprodutor, o macho desenvolve uns tufos de penas ao lado do bico que lembram bigodes.

/ 46 / É uma ave muito tímida e assustadiça, quase nunca permitindo a aproximação num raio de 300-400 m., impondo-se, pois, o uso de equipamento apropriado (binóculos, câmaras) para observações de maior pormenor.

Vive em bandos de dimensão variável ao longo do ano, alimentando-se principalmente de plantas, sementes e insectos. A longevidade da abetarda não é conhecida com rigor, sabendo-se que, em liberdade, podem atingir os 15 anos, idade já largamente superada quando em cativeiro.

Dado o seu peso, necessita de tomar balanço para levantar voo, que é lento e cadenciado. Talvez por isso, quando ameaçada, prefere andar ou correr rapidamente.

Provinda das estepes (extensas áreas naturais cobertas de vegetação herbácea), a abetarda – tal como outras aves estepárias – adaptou-se posteriormente a um habitat característico, denominado estepe cerealífera ou pseudo-estepe, decorrente da agricultura extensiva grandes planícies abertas, onde alternam as searas, as pastagens, os restolhos, os alqueives.

A crescente pressão humana e a intensificação da agricultura têm vindo a provocar o decréscimo das populações de abetardas (e o seu desaparecimento em muitos países), as quais se distribuem de uma forma muito descontínua.

Regista-se a sua presença um pouco no Norte de África (Marrocos), Península Ibérica, em alguns países do centro e / 47 / leste da Europa, bem como da Ásia.

A Península Ibérica detém cerca de 50% do total mundial destas aves, estimado em trinta e poucos mil indivíduos.


No começo da Primavera (período reprodutor), as abetardas reúnem-se em pontos específicos da planície, iniciando um ritual espectacular – a parada nupcial. Os machos competem entre si pela melhor exibição, com vista a atrair as fêmeas. Fazem inchar os sacos de ar que possuem na base do pescoço, inclinam a cabeça para trás, levantam e sobem a cauda em jeito de leque, bigodes revirados e asas dobradas para cima, mostrando as penas brancas. No auge, sugerem bolas de espuma branca ondulando no solo.

À distância, as fêmeas vão apreciando (e certamente avaliando) as exibições, aproximam-se aos poucos e, eleito o parceiro, dá-se por fim o acasalamento. Posteriormente retiram-se em busca de um local de nidificação, incubando em regra 2 a 3 ovos. Os ninhos são no chão (uma pequena cova à medida do corpo), entre erva alta, a maioria em searas ou pousios. As crias, pouco depois do nascimento, estão aptas a sair do ninho e seguir as mães. Quanto aos machos, o seu papel no processo de reprodução termina logo após o acasalamento.
 


III – As contagens efectuadas em Portugal apontam para uma existência um pouco acima do milhar de abetardas, quase na totalidade repartidas pelos três distritos alentejanos. Esta distribuição é também aqui bastante assimétrica, uma vez que cerca de 80% daquele total nacional ocorre no Baixo Alentejo, na zona denominada de Campo Branco, que está integrada na Rede Natura 2000 (Rede Europeia de Espaços Naturais).

Dadas as suas características e importância para a conservação de aves ameaçadas ou migradoras, esta zona foi classificada como ZPE (Zona de Protecção Especial para aves), no âmbito de uma directiva comunitária – a ZPE de Castro Verde.

Dentre as principais acções tendentes à manutenção da avifauna e do ambiente envolvente, a aprovação do Plano Zonal de Castro Verde foi de extrema importância, promovendo ajuda financeira (com financiamentos comunitários) aos agricultores que adoptem técnicas compatíveis com a conservação da Natureza, de acordo com uma série de normas estabelecidas para o efeito – rotação de culturas (com áreas mínimas de pousio e alqueive), actividade agrícola que tenha em conta o ciclo de vida das aves (fixação de datas de colheitas e de corte de feno, p. ex.), cultivo de leguminosas para reforço da sua alimentação, etc.).

Também a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) desenvolve aqui projectos visando a conservação do habitat e a protecção de espécies em risco, tendo adquirido cinco herdades para esse fim, com apoio comunitário. Lançada inicialmente / 48 / com o objectivo de impedir a florestação, por empresas de celulose, de algumas áreas de extrema importância para as aves estepárias (entre as quais a abetarda), esta acção da LPN, com o apoio do município de Castro Verde, veio a revelar-se exemplar, sendo internacionalmente reconhecida. São promovidos estudos técnicos e científicos no âmbito desta temática, a caça foi ali interdita (no caso da abetarda, a mesma está proibida em Portugal já há cerca de 40 anos), proporcionam-se novos locais de nidificação e estabelecem-se acordos anuais com agricultores em função de planos de gestão centrados na defesa das espécies.

Por outro lado, impõe-se também uma acção de divulgação, sensibilização e pedagogia, na procura da adesão de cada vez mais vastas camadas da população a este tipo de causas, nomeadamente junto da população escolar. Nesta linha foi instalado e desenvolvido, numa das herdades atrás referidas (Herdade do Vale Gonçalinho, hoje reserva biológica), um Centro de Educação Ambiental, onde, para além das acções de preservação e desenvolvimento sustentável, é disponibilizado todo um conjunto de informações, documentação, actividades didácticas e de lazer. São organizados percursos temáticos, com o acompanhamento de monitores, possibilitando a observação da fauna e flora locais.

O Alentejo possui óptimas condições para a prática do ecoturismo, e em particular, do turismo ornitológico, de que é um bom exemplo esta região do Campo Branco.

Todavia, as ameaças proliferam e os apoios a um desenvolvimento rural sustentável escasseiam, levando ao decréscimo gradual do número de agricultores que aderem aos respectivos projectos. A conservação da estepe cerealífera do Alentejo e o combate à perda de biodiversidade justificam e merecem um firme empenhamento a nível governamental, traduzido em correctas medidas agro-ambientais e incentivos adequados, constituindo o próximo Plano de Desenvolvimento Rural (2007-2013) uma excelente oportunidade de tal ser demonstrado.


Leitura Recomendada: Pedro Rocha, A Abetarda e o Campo Branco – Uma longa convivência. (LPN, 2005), fonte de alguns dos dados do presente texto.
 

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