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UM REENCONTRO MÁGICO COM AS «MIL E UMA NOITES»

O Trovador Eduardo Ramos e a Poética
de Al-Mutamid

Manuel Geraldo

Nascido em Beja, em 1040, Al-Mutamid é considerado o mais notável dos poetas hispano-árabes da segunda metade do Século XI e um dos grandes poetas do Islão. Após ter governado Silves, veio a ocupar o trono do reino Taifa de Sevilha, mas vencido pelos Almorávidas acabou por ser feito prisioneiro e desterrado para Agmat, no interior de Marrocos, onde morreu tragicamente no ano de 1095.

Pois é acima de tudo sobre a mensagem deste rei-poeta que Eduardo Ramos, o trovador alentejano, nascido há 53 anos na pequena aldeia do Penedo Gordo, no concelho de Beja, tem vindo a construir a sua ainda curta mas já admirável discografia, iniciada com Al-Mutamid, embora musicando e interpretando outras vozes da escola «andaluzina», recolhidas nas obras referenciais de Adalberto Alves, «O Meu Coração é Árabe» e «Al-Mutamid – O Poeta do Destino».

Eduardo Ramos e o seu alaúde. - Clicar para ampliar.

Eduardo Ramos e o seu alaúde

No seu último trabalho, «Cântico para Al-Mutamid», editado já este ano, Eduardo Ramos e o seu ataúde Eduardo Ramos, autor e intérprete, cuja música tem, em nossa opinião, o sabor do Alentejo, da África berbere, de Angola e dos países mediterrânicos, consegue transmitir uma envolvência que, tal como escreve o escritor e antropólogo de Évora, Luís Filipe Maçarico, em artigo publicado no semanário «Alentejo Popular», «nos transporta até ao requinte e exotismo dos palácios, onde os madrigais trovadorescos derramavam sabedoria e suavidade».

Exemplo maior dessa envolvência é a faixa que inclui o trecho, «A Silves», cantado e declamado, ao som dos acordes do alaúde árabe, dedilhado pelo virtuosismo envolvente de Eduardo Ramos:

Al-Mutamid, o poeta-rei, numa ilustração de H. Mourato. - Clicar para ampliar.

Saúda, por mim, Abú Bala,

Os queridos lugares de Silves

E diz-me se deles a saudade

É tão grande quanto a minha

Saúda o Palácio dos Balcões.

Da parte de quem nunca o esqueceu.

Morada de leões e de gazelas

Salas e sombras onde eu

Doce refúgio encontrava

Al-Mutamid, o poeta-rei, numa ilustração de H. Mourato.

Tendo como suporte instrumental, neste seu «Cântico para AI-Mutamid», para além do já citado alaúde árabe, o recurso melódico do saz, do bendir, da zulaa e da flauta, Eduardo Ramos, em defesa da sua reconhecida originalidade, rejeita comparações com outros músicos que, a exemplo de Janita Salomé e Rão Kyao, já fizeram incursões pelo universo poético de AI-Mutamid, apenas mostrando alguma identificação, embora à distância, com o legado criativo de Pedro Caldeira Cabral, quando este, embora de uma forma mais erudita, interpreta cantigas do Rei Afonso X, um rei-sábio que no seu próprio manto tinha debruadas citações do Corão.

Em destaque neste disco, qual retábulo confessional, o poema-elegia-epitáfio que AI-Mutamid, já moribundo no tétrico cativeiro marroquino, feito tumba, Al-Mutamid, o poeta-rei, numa ilustração de H. Mourato dedica à sua esposa bem-amada «Itimad», também ela morta de dor e saudade:

Invisível a meus olhos

Trago-te sempre no meu coração

Te envio um adeus feito paixão

E lágrimas de pena como insónia

Inventas-te como possuir-me, e eu

O indomável tão submisso vou ficando.

Ao fundo, como nas tragédias sem retorno de todas as diásporas, a voz de veludo, metal, de Eduardo Ramos, e o lânguido, soturno trinado, da tampura e alaúde. Num cântico para a eternidade. Em louvor do poeta-rei, vate sofrido das «Mil e uma Noites», assim lembrado, já no Século XIII, por Ibn AI-Abbar: «Toda a gente ama AI-Mutamid / Toda a gente se apieda dele / E hoje, ainda, o chora».

E, canta, e cantará, por esses séculos fora!...

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