Sou sócio da associação
dos Amigos do Museu de Ílhavo desde os primeiros tempos da sua
fundação.
Foi por convite da Dr.ª
Ana Maria Lopes, na altura directora desse museu, que adquiri essa
qualidade. Mas mesmo que não fora pela mão dessa apaixonada pelas
coisas marinheiras, eu sempre faria parte dessa família, por
fortíssimas razões afectivas: tudo o que tem a ver com o mar, com a
nossa ria, que não é mais do que esse mesmo mar que se deixa abraçar
pelas nossas areias; tudo o que tem a ver com os homens que quase não
sabem o que é viver em terra; tudo o que foi moldando a minha maneira
de estar e de sentir o mundo que ao mar diz respeito. Não fora eu
filho de homem desse mesmo mar, que tanto o enfeitiçou ao longo de
toda a sua vida! Enfeitiçou o meu pai, que nele e dele viveu, e
enfeitiçou-me a mim que dele vivi.
Agora que estou reformado
e profissionalmente fora das coisas marinheiras, principalmente dos
pescadores e dos barcos, parece que esse feitiço, longe de amainar,
recrudesceu, traduzindo-se no que pinto, no que escrevo, nos livros
que leio, nas exposições que procuro, nas visitas que faço a museus,
nos sonhos que tenho, no vento prenhe de maresia que, na região de
Aveiro, me afaga ou, por vezes, me fustiga.
Como corolário disto tudo,
fácil se torna compreender que eu seja visita frequente do Museu
Marítimo de Ílhavo.
Na minha última visita,
logo à entrada, dei comigo frente a uma maravilhosa maqueta de um
navio mercante, com uma escala suficientemente avantajada que me
permitiu analisar em pormenor toda a sua morfologia.
Fiquei pregado ao chão
quando li na placa identificadora dessa maqueta que se tratava de um
barco que sempre mexeu comigo, já que foi o último navio em que o meu
pai Manuel andou embarcado. Era o n/m(1)
“ALCÂNTARA” que fazia viagens entre Portugal e os Estados Unidos e
onde meu Pai serviu de contramestre. Hoje resta essa maqueta para
lembrar o meu saudoso Pai. E para tornar mais viva a sua ausência...
Certo Natal, deveria ter
os meus cinco anos, ao lado dos meus sapatitos, fui encontrar, manhã
cedo, na lareira da casa da minha avó Joaninha, em Aveiro, na rua de
Gustavo Ferreira Pinto Basto, um triciclo duma elegância de desenho
como nunca vira. Eu não esperava mais do que os habituais cigarritos
de chocolate… Mas não! Daquela vez o menino Jesus tinha sido generoso:
um triciclo!
É claro que fiquei
radiante. Era um triciclo diferente de todos os outros que eu tinha
visto até então.
Passados uns dias, a minha
avó explicou-me a sua origem. Que tinha sido o meu pai que o tinha
encontrado no lixo, numa das suas idas a Nova Iorque, e, porque estava
quase novo, o levara para bordo para mo dar quando chegasse a
Portugal. Mas, já que o Natal estava à porta, o triciclo converteu-se
em prenda do menino Jesus.
É mais do que evidente que
o triciclo constituiu, para mim, motivo de grande orgulho. E não
descansei enquanto a minha avó não me autorizou a ir visitar, de
triciclo, a minha tia Lizette que morava no fim da ladeira do Alboi.
Por esses tempos, o trânsito era pouco, os automóveis eram “um lá vem
um”. Só havia que ter cuidado no atravessar da rua de Gustavo Ferreira
Pinto Basto. O resto era passar pela travessa do Recreio Artístico e
descer pela ladeira do Alboi.
Aí, na descida da ladeira,
lembro-me bem que tirava os pés dos pedais e me deixava embalar pelo
declive só parando mesmo em frente à casa da minha tia. Era uma
maravilha!
Já casado, quando um dia
relembrava aos meus filhos pequenos as dificuldades com que se vivia
na minha meninice, falei no triciclo novaiorquino e nas minhas
descidas pela ladeira do Alboi. E não é que a minha saudosa mulher, a
Claudette, se sai com a confissão de que era desses tempos que
começara a gostar de mim. Ela guardou a imagem do miúdo das pernitas
muito brancas esticadas para a frente em cima do triciclo.
Abençoado brinquedo!
Morreu de uso. Mas não desapareceu da minha memória.
Já morava a minha avó na
Rua de Ílhavo, próximo da
Fonte dos Amores,
quando, noutro Natal, aí pelos meus sete anos, outra surpresa tive com
a mesma proveniência. Ao lado dos meus sapatos estava um objecto que
nunca vira. Era de couro castanho, como se fora uma bola de futebol,
mas tinha a forma de um balão deflacionado. A parte mais estreita
terminava num forte gancho metálico. Perguntei para que serviria tal
coisa. Foi-me dito que o meu pai também tinha encontrado no lixo de
Nova Iorque o que chamara de “punchball”, (só mais tarde viria a saber
como escrever tal palavra…) e que era uma bola para treino de “box”.
Enchi com uma bomba de
bicicleta a tal “punchball” e pendurei-a numa trave do teto do sótão
da casa. E isso foi a delícia dos meus amigos de escola, mal souberam
da sua existência. Muitos murros deram eles no balão. E muito suaram.
Eu não, que nunca fui dado a essas coisas.
Olhando para trás,
relembrando tudo isto, muito da forma como vivi sinto que se volta a
verificar agora nestes tempos de crise. Para mal dos nossos pecados,
como diria a minha avó Joaninha…
Gaspar Albino
Aveiro, 4 de Janeiro de 2013
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(1)
- n/m - designação náutica de «navio motor». |