Ficções e Recordações - 2015

A Festa da Ria

Quando, em finais de Outubro de 1957, entrei para a Câmara Municipal de Aveiro como Fiscal Informador dos Serviços de Propaganda e Turismo, já se realizava, há alguns anos, o “Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”, que tinha sido criado por iniciativa de Arnaldo Estrela Santos, quando foi Vereador e Presidente da Comissão Municipal de Turismo.

Pretendia-se, com esta iniciativa, não só manter estas decorações tradicionais nos barcos que se fossem construindo – note-se que, nessa altura, ainda apanhavam moliço bastante mais de 500 embarcações –, mas também que, periodicamente, os proprietários as fossem repintando, o que, em linguagem moliceira, se traduz por reformando.

Este certame realizava-se a 25 de Março, dia da abertura da secular Feira de Aveiro, e compareciam, sempre, largas dezenas de embarcações. A maior parte dos moliceiros-homens para vir à Feira e participar na festa, poucos – só os dos barcos novos ou com painéis pintados de propósito – para tentar ganhar um dos três prémios, de que já não me lembro os valores, mas que dariam para pagar ao pintor; só me recordo de que, durante uns anos, o prémio de presença era de 10 escudos (5 cêntimos de euro).

A apreciação dos painéis era feita por um júri, presidido pelo Presidente da Comissão Municipal de Turismo e do qual fazia parte o Capitão do Porto, pois, por inerência do cargo, integrava aquele órgão autárquico, sendo convidados jornalistas e outras pessoas, algumas delas, à última hora, entre os conhecidos que estavam a assistir. Para o efeito, instalava-se uma tribuna junto ao cais do Canal Central, perto da entrada da Feira.

Os moliceiros, amarrados entre a Ponte Praça e a tribuna, desfilavam, um a um, à vara, mostrando, primeiro, os dois painéis de estibordo e, depois, os de bombordo e, simultaneamente, as pinturas do castelo da proa, das mãozinhas e da entremesa.

Os jurados tomavam notas, quando o faziam, trocavam impressões e, por fim, eram distribuídos os prémios. Contudo, na esmagadora maioria dos casos, os classificadores tinham poucos ou nenhuns conhecimentos sobre a matéria que estavam a apreciar, pelo que, em vez de se tentar contribuir para a manutenção das pinturas tradicionais, como tinha sido a primeira e louvável intenção, se estavam, por vezes, a premiar painéis, ou só pela piada das legendas, cujo segundo sentido, frequentemente, era muito salgado, ou dando um peso excessivo à sua beleza estética, sem atender a se tinham sido respeitadas normas ancestrais, não escritas, mas conhecidas e seguidas por gerações de pintores populares: ingenuidade, só cores primárias e meias tintas para os pormenores, utilização da tradicional linguagem simbólica, etc. Até que se chegou ao ponto de, se não me engano em 1969, se ter atribuído o 1º Prémio a um barco, cujo painel de proa de bombordo, representava “S. Jorge e o Dragão” e era da autoria do conceituado artista plástico Zé Penicheiro (de quem mais tarde viria a ser amigo), logo nem deveria ter sido aceite, num concurso dedicado a pintores populares.

Nessa altura, já tinha visto muitas centenas de painéis – praticamente todos os que tinham ornado os barcos, na última dezena de anos –, tinha falado com muita gente que sabia do assunto e tinha lido quase tudo que havia sido escrito sobre barcos moliceiros, pelo que fiquei escandalizado, sem que, no entanto, nada pudesse fazer para corrigir esse erro grosseiro.

Depois de reflectir sobre o assunto, julguei ter encontrado uma maneira de evitar que asneiras como aquela se viessem a repetir. Passado um tempo, disse ao Presidente da Comissão Municipal de Turismo, Carlos Alberto da Cunha Soares Machado, que me propunha elaborar um pequeno manual sobre as pinturas dos moliceiros, para uso de futuros jurados. Obtido o acordo, dactilografei meia dúzia de páginas, a que juntei ilustrações a cores, copiadas do Tomo referente aos Moliceiros, dos “Estudos Etnográficos”, coordenados por D. José de Castro – Domingos e não Dom, como durante muitos anos lhe ouvi chamar –, tarefa essa em que contei com a ajuda do desenhador da Câmara, Mário Martins.

Seja-me permitido abrir um parêntese, para dizer que o predito trabalho, de que não fiquei com nenhum exemplar, constituiu um êxito e acabou por estar na génese do meu primeiro livro, intitulado “Moliceiros” que veio a ser editado pela Comissão Municipal de Turismo, em Novembro de 1971, publicação esta que me valeu um louvor, extensivo ao predito Vereador, por parte da Comissão Municipal de Cultura.

Este Concurso revestia-se de inegável interesse etnográfico, pois desempenhava um importante papel na conservação, em bom estado, dos painéis dos moliceiros, que constituíam um importante cartaz turístico de toda a região da Ria. Mas o evento, em si, nem trazia ninguém a Aveiro – a não ser os familiares e amigos dos participantes, cujo poder de compra era reduzidíssimo –, nem servia para entreter, durante um período de tempo razoável, as pessoas que passavam perto do canal, a maior parte delas dirigindo-se à Feira, porque se tornava monótono, a não ser para meia dúzia de aficionados, ver desfilar barcos – chegaram a atingir o número de 72 –, durante duas horas.

No entanto, eu já considerava, nessa altura, que as embarcações lagunares, e não só os moliceiros, tinham enormes potencialidades não só para chamar muita gente a Aveiro, mas também para se assumirem como personagens principais de espectáculos a que milhares de pessoas assistissem, durante horas, de forma interessada.

Depois de pensar sobre a maneira de poder vir a concretizar-se esta hipótese, cheguei à conclusão de que sendo a competição dinâmica uma das coisas que mais agrada ao público, se se organizassem corridas entre os vários tipos de embarcações que trabalhavam na Ria, poder-se-ia obter um espectáculo que não só trouxesse pessoas a Aveiro, mas também servisse de entretenimento para os que já cá se encontrassem, ou seja, em termos de Turismo, seria um dois em um: atraía e animava. Seguindo este princípio, imaginei e vim a organizar, durante alguns anos, na qualidade de funcionário dos Serviços de Turismo da Câmara, a “FESTA DA RIA”, cujo programa, no seu auge, era o seguinte.

No sábado à tarde, uma “Regata de Moliceiros”, com concentração e partida da Torreira e chegada a Aveiro, a meio da tarde. Esta Regata condicionava a data da Festa – nuns anos, era em Julho e noutros, em Agosto –, porquanto dependia de uma maré que permitisse que, até S. Jacinto, os barcos aproveitassem a vazante, chegando aí, aproximadamente, no virar da maré e vindo com a enchente para Aveiro. Como o “Cruzeiro da Ria”, com partida do Areinho, tinha a mesma condicionante, as duas regatas realizavam-se no mesmo dia, e eu dava a partida aos moliceiros, quando via as primeiras velas do “Cruzeiro” aparecerem, à Ponte da Varela, pelo que, antes de S. Jacinto, os barcos mais rápidos já vinham juntos com os moliceiros, proporcionando um espectáculo inolvidável. A minha ideia, quando propus a realização desta Regata, foi proporcionar, aos fotógrafos e cineastas, amadores e profissionais, 9 milhas náuticas ou 12 quilómetros – dos quais 8, pela estrada que liga a Torreira a S. Jacinto e 4, pela antiga estrada da Gafanha – e duas horas de hipóteses para fazerem excelentes imagens, que constituiriam óptimos elementos publicitários, susceptíveis de despertar a vontade de nos visitar a quem os visse.

No sábado à noite, um “Festival Internacional de Folclore”, num estrado montado sobre uma barcaça, de braço dado com dois moliceiros, varados no Canal Central, defronte do Clube dos Galitos. As ruas, que ladeiam o Canal, eram encerradas ao trânsito automóvel para permitir a instalação do numerosíssimo público que enchia as bancadas montadas para o efeito e se apinhava nos cais, no varandim da Ponte Praça e na esplanada do edifício “Fernando Távora”, havendo, inclusive, pessoas que assistiam em pequenos barcos, junto ao palco. Participaram, neste Festival, grupos nacionais e internacionais de grande valia, sendo de referir, neste último caso, os provenientes de muitos países do Leste, cujos cachets não eram muito dispendiosos, porque se aproveitavam os que vinham ao “Festival Internacional de Gulpilhares”. A qualidade deste evento e a originalidade de se efectuar sobre a água levaram a que a Rádio Televisão Portuguesa o transmitisse, directamente, em 1981.

Neste momento, acho que se justifica a abertura de um parêntese, para relatar algo de interessante que se passou comigo. Essa transmissão obrigou a que uma equipa da RTP Norte estivesse, durante alguns dias, em Aveiro, para preparar o espectáculo; e o realizador Marques Vicente teve a ideia de aproveitar a estadia para fazer um filme para o programa “Setentrião”, que passava no 2º Canal, no qual seriam abordados três temas: os moliceiros, a cerâmica aveirense e a poesia popular. Foi-me pedido um texto de 10 minutos para os barcos, tendo assinado um contrato para executar esse trabalho. Passado um dia, solicitaram-me para aumentar o texto, primeiro, para o dobro e, mais tarde, para o triplo, porque as pessoas contactadas, postas perante a máquina, tinham reagido mal: o poeta não conseguia falar e o especialista em cerâmica, que até tinha sido indicado por mim e era jurista, não só era incapaz de encarar a objectiva, como passava o tempo a coçar, por toda a cara e orelhas, uma imaginária comichão (se não tivesse visto o filme, não me tinha acreditado em tanta falta de à vontade num orador tão experimentado e de reconhecidos méritos). Concluindo: não só fui o autor do texto, como tive também de apresentar o filme “Moliceiros, tempo para morrer”, que passou, mais do que uma vez, na RTP 2 e na RTP Madeira ou Açores. Por razões que não interessa mencionar, o apoio a esta produção – aluguer do barco moliceiro e pagamento aos tripulantes – não foi prestado pela Comissão Municipal de Turismo de Aveiro; a entidade patrocinadora foi a Junta de Turismo do Furadouro. O pagamento, que recebi, foi o inicialmente combinado para um texto de 10 minutos; mas não o renegociei, porque esta tarefa constituiu para mim uma nova experiência, bastante agradável, e que, posteriormente, até me veio a ser útil, noutras participações fílmicas e televisivas. Só discuti, tempos mais tarde, quando encomendei uma cópia do filme em VHS, para Região de Turismo da Rota da Luz, e a RTP pediu mais dinheiro do que me tinha pago.

Fechemos este longo parêntese e voltemos ao programa. No domingo de manhã, o júri do “Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros”, para o qual eram convidadas previamente pessoas conhecedoras – e do qual eu também fiz parte, até ter deixado de organizar a “Festa da Ria”, em 1986 –, visitava as embarcações, atracadas no Canal Central, tomava notas e decisões que, mais tarde, eram comunicadas, por escrito, ao Presidente da Comissão Municipal de Turismo.

À tarde, no Canal das Pirâmides, realizavam-se as seguintes corridas, recebendo todos os concorrentes prémios de participação, para além dos referentes às classificações:

“Caçadeiras” – Pequenas embarcações com 1 remador.

“Bateiras à pá – Mulheres” – 8 remadoras que utilizavam, em vez de remos, pás das marinhas e 1 timoneiro.

“Bateiras à pá – Homens” – O mesmo número de tripulantes.

“Bateiras do chinchorro” – Dois remadores a cada remo.

“Mercantéis à sirga” – 1 homem a puxar à sirga em cima do cais e outro ao leme.

“Mercantéis à vara” – 2 homens, um com cada vara.

“Moliceiros à sirga.

“Moliceiros à vara”.

“Concurso dos Painéis dos Barcos Moliceiros” – Entrega de prémios, aos cinco primeiros classificados.

No final, os barcos moliceiros partiam, desfilando perante os milhares de pessoas que tinham assistido ao espectáculo, durante, aproximadamente, duas horas, em bancadas situadas junto à meta ou nos cais dos dois lados do canal.

14.08.2015