Acesso à hierarquia superior.

N.º 11

Publicação Semestral da Junta Distrital de Aveiro

Junho de 1971 

Duas importantes Aras Romanas de Vila da Feira

Por José d'Encarnação

  Clicar para ampliar.   Clicar para ampliar.  
 

Ara encontrada em 1912, junto da muralha da parte de Leste do Castelo da Feira (gravura cedida pelo «Arquivo do Distrito de Aveiro».

 

Ara encontrada em 1917, no recheio do cubelo do Sudoeste do Castelo da Feira (gravura cedida pelo «Arquivo do Distrito de Aveiro».

 


Existem no castelo de S. Nicolau, de Vila da Feira, à esquerda das portas principais da torre de menagem, duas aras votivas romanas, já por diversas vezes estudadas, mas cuja importância excepcional, no contexto da religião pré-romana peninsular, nos parece não ter sido ainda suficientemente acentuada.

Normalmente consideradas como ex-votos a duas divindades diferentes, elas são, quanto a nós, dedicadas a um só númem e contribuem para esclarecer alguns pontos até agora obscuros.

 

A PRIMEIRA ARA

Da primeira inscrição foi enviado um decalque pelo Dr. Aguiar Cardoso, de Vila da Feira, a Leite de Vasconcelos, que a publicou pela primeira vez (in «Religiões da Lusitânia», vol. III, Lisboa, 1913, pp. 612-613).

As letras, em bom estado, permitem fácil leitura:

Interpretação: DEO / TVERAEO / VOLENTI / ARClVS / EPEICI (filius) B/RACARVS / S(acrum) F(ecit).

Tradução: «Ao benévolo deus Tueraeus consagrou este monumento Arcio, filho de Epeico, Brácaro de nação».

Todos os autores que se debruçaram, posteriormente, sobre esta epígrafe, limitaram-se, na prática, a repetir Leite de Vasconcelos.

 

A SEGUNDA ARA

A segunda inscrição, que também se lê distintamente, foi igualmente interpretada por Leite de Vasconcelos. Esta é, pelo menos, a indicação que nos dá Fernando de Tavares e  Távora, no livrinho O Castelo da Feira, Porto, 1917, pp. 43-44, onde vem a primeira referência a esta epígrafe:

«Neste ano de 1917, outra inscrição apareceu, em pedra encontrada no recheio do cubelo do sudoeste (na torre de menagem), que se anda a reconstruir. / 60 /

Mais outra vez consultado, o Sr. Leite de Vasconcelos forneceu dela a seguinte leitura:

«Handevelugo Toiraeco L(ucios) Latrius Blaesus v(otum) I(ibens) s(olvit»>. e a seguinte tradução:

«Lúcio Latrio Bleso cumpriu de boamente o voto que fizera a(o deus) Bandevelugus Toiraecus».

* * *

Verificamos, portanto, que uma inscrição é dedicada Deo Tueraeo, ou seja, ao deus Tueraeus, cujo nome aparece no caso dativo, como é usual em inscrições deste tipo; a outra foi gravada em consequência duma promessa feita Bande Velugo Toiraeco, ou seja, a uma divindade de nome Banda Velugus Toiraecus (supomos ser Banda o nominativo correspondente ao dativo «bárbaro» em –e).

Na primeira, há o substantivo deus, indicação não rara na epigrafia votiva peninsular e colocada, aqui, porventura, para desfazer qualquer dúvida acerca do significado de Tueraeus, certamente uma expressão adjectival, a que se junta volens, com o presumível sentido de benévolo, atributo que quadra bem a uma divindade protectora.

Clicar para ampliar.

Na segunda, tal indicação não surge: cremos que pelo facto de o deus Banda, como também diremos mais adiante, ser já muito conhecido; mas, em vez de uma expressão adjectival, temas duas – Velugus e Toiraecus. Sobre Velugus, vacábulo que aparece aqui pela primeira vez, nada se sabe por enquanto; mas a palavra Toiraecus, cuja significação também se ignora, pode, pela sua semelhança fonética com Tueraeus, ser no fundo, o mesmo epíteto grafado diferentemente.

Será possível tal identificação? O deus Tueraeus e Banda Velugus Toiraecus serão o mesmo númen? Tueraeus e Toiraecus designarão, nesse caso, alguma característica locaI do deus Banda?

É o que vamos ver.

 

OS EPÍTETOS FUERAEUS E TOIRAECUS

Ambas as lápides já vieram a lume, por duas vezes, no «Arquivo do Distrito de Aveiro»:

– ARLINDO DE SOUSA, no artigo «Langóbriga», incluída no vol. VIII, de 1942, fasc. 31, pp. 214-215, transcreve Leite de Vasconcelos:

– DULCE ALVES SOUTO, no artigo Subsídios para uma Carta Arqueológica do Distrito de Aveiro no Período de Romanização, incluído no voI. XXIV, de 1958, refere-se (pág. 250) à primeira era e, na pág. 258, à segunda.

Mas é o mesmo Arlindo de Sousa, no erudito apontamento intitulado Vila da Feira Lusitano-Romana, que publicou no Boletim da Comissão de Etnografia e História (Junta da Província do Douro Litoral), «Douro-Litoral», Porto, 2.ª série, vol. VIII, 1947, pp. 52-59, que levanta uma hipótese, que se nos afigura do maior alcance: Diz Arlindo de Sousa:

«E estará este povo (Turduli Veteres) ligado por parentesco aos Turoduri, mencionados por Ptolomeu, que Barros Sibela coloca no Freixo de Numão (Antiguedades, p. 213), lugar da lápide consagrada aos Lares Turolici, cuja parte inicial Turo – parece estar ligada a Turo-dori (...)? A primeira parte dos nomes Tueraeus e Toiraecus, isto é, Tuer- e Toir- podem ser formas divergentes de Turo-. É possível que Toiraecus seja um epíteto tópico de Bandevelugus, e Tueraeus o epíteto tópico empregado em vez do verdadeiro nome do deus» (p. 58).

Nenhum dos investigadores que, depois de Sousa, falaram desta lápide atentou devidamente na sua frase: «É possível que Toiraecus seja um epíteto tópico de / 61 / Bandevelugus, e Tueraeus o epíteto tópico empregado em vez do verdadeiro nome do deus».

Compete, evidentemente, à Linguística justificar – ou repudiar – a asserção. A nós parece-nos, contudo, muito razoável e queremos desde já acentuar que, no domínio da epigrafia romana peninsular, o facto não é único:

1.º) Há nomes de divindades com grafias diferentes. Por exemplo:

– Arantius, Arentius;

– Adaecina, Adaegina, Ataecina, Ataegina;

– Turubricensis, Turubrigensis, Turibrigensis (epíteto de Atégina);

– Endovellicus, Endovelicus, Endovollicus, Endovolicus, Indovollicus, Enobolicus.

2.º) Também não é raro os deuses serem nomeados apenas pelos seus epítetos. Vemo-lo, por exemplo, numa lápide do Museu de Évora, em que a deusa Atégina é designada sob a invocação dea sancta turibricensis, ‘santa deusa turibricense’ (cfr. Leite de Vasconcelos, Religiões da Lusitânia, vol. lI, p. 153). Vemo-lo igualmente, com toda a probabilidade, numa inscrição de S. Tirso em que o deus Cosus é chamado unicamente Neneoecus, seu epíteto (cfr., a este propósito, Fermín Bousa Brey, A Deidade Galaica Cusuneneoeco, separata de «O Concelho de S. Tirso – Boletim Cultural», vol. V, n.º 2, Porto, 1957).

Tratar-se-á, efectivamente, da mesma divindade?

Cremos bem que sim, pois sendo Tueraeus e Toiraecus duas formas diversas do mesmo nome, certamente designarão a mesma divindade.

E, se os argumentos anteriores não bastam para o demonstrar, perguntamos: seria verosímil que duas divindades diferentes, de nome tão parecido, fossem cultuadas no mesmo lugar? Porque, dado que ambas as lápides foram encontradas no castelo, logicamente se conclui que aí se veneraram as divindades a que eram dedicadas, as quais aí teriam, quiçá, o seu templo, como, de resto, o sugere Fernando Tavares e Távora (orc., p. 42).

A resposta a esta pergunta pode ser dada, por exemplo, pelo insigne arqueólogo Félix Alves Pereira. Ao estudar as variantes Arantius-Arentius, atrás referidas, põe justamente o problema de saber se se trata ou não da mesma divindade, e diz peremptoriamente: «Seria inverosímil que na mesma região se tratasse de duas divindades diversas; deve afastar-se essa hipótese» (in «Revista de Arqueologia», Lisboa, vol. I, 1932, p. 19).

 

O DEUS BANDA

Outro argumento milita ainda a favor da identificação Toiraecus-Tueraeus.

Várias inscrições se descobriram na Península, dedicadas a uma divindade cujo nome começa pelo elemento Band-, com a terminação de dativo mais frequente em –e (Bande) ou –i (Bandi), elemento que aparece normalmente separado das palavras seguintes, como já tivemos ocasião de salientar em «Divindades Indígenas sob o Domínio Romano em Portugal», vol. I, pp. 57-84 (tese de licenciatura, que apresentámos à Faculdade de Letras de Lisboa, em 1969). Concluímos, nesse mesmo estudo, poder tratar-se «duma única divindade com epítetos variáveis de lugar para lugar, e formas linguísticas diferenciadas que podem corresponder a variantes dialectais ou à diversidade de estádios evolutivos da linguagem» (pág. 82), que provavelmente teria o significado de «senhor» (pp. 82-83).

Toirecus e Tueraeus seriam, pois, o mesmo epíteto do deus Banda, uma invocação própria da região de Vila da Feira, com duas grafias diferentes, mas análogas. Talvez acontecesse, então, o que sucede hoje com o culto à Virgem, venerada aqui sob a invocação de N.ª Sr.ª da Rocha, ali N.ª Sr.ª das Mercês, acolá N.ª Sr.ª do Monte, sendo sempre a mesma Virgem.

Dois exemplos confirmam este ponto. Um, refere-se precisamente à mesma divindade, Banda, e foi devidamente estudado pelo Sr. D. Fernando de Almeida, conceituado arqueólogo e nosso estimado mestre (in «Revista da Faculdade de Letras de Lisboa», III série, n.º 9, Lisboa, 1965, pp. 19-31): Banda surge com o mesmo epíteto – Isbbraia – em duas inscrições de Bemposta, Penamacor. O segundo exemplo relaciona-se com Arentius, divindade acima citada: encontraram-se em Cória (Espanha) duas aras onde o nome do deus traz também o mesmo epíteto, Amrunaecus (cfr. a este respeito, a revista da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Salamanca, «Zephyrus», vol. XVII, 1966, pp. 121-130).

 

CONCLUSÃO

Cremos, pois, ser fácil deduzir quão importantes são as duas aras de Vila da Feira, porquanto nos ajudam a compreender melhor as características tutelares do deus «Banda» e, dum modo geral, a complicada problemática que envolve este campo da investigação histórica.

Como os epítetos, segundo se supõe, devem estar relacionados com o povo (ou região), em que a divindade era cultuada, o ulterior progresso dos estudos linguísticos ou o aparecimento de mais dados epigráfico-arqueológicos certamente nos trarão nova luz sobre a história antiga desta risonha vila, que se orgulha de possuir um dos mais elegantes castelos de Portugal.

Cascais, Julho de 1970.

 

páginas 59 a 61

Menu de opções

Página anterior

Página seguinte